André do Rap. Justiça brasileira tenta desesperadamente prender criminoso que deixou escapar

Após sucessão de distrações das autoridades e uma decisão controversa, mas baseada na lei, de um juiz do Supremo Federal, um dos maiores traficantes internacionais de cocaína, condenado a 25 anos, saiu da prisão pela porta da frente e depois fugiu
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Na manhã de sábado, dia 10 de outubro, André do Rap, um dos mais perigosos criminosos do Brasil, saiu pelo próprio pé da penitenciária da cidade de Presidente Venceslau, no estado de São Paulo, e nunca mais foi visto. Porquê? Porque o Congresso Nacional, a presidência da República, a polícia, o ministério público, um juiz de primeira instância e o Supremo Tribunal Federal (STF), numa sequência de desleixos, de erros e de decisões controversas, assim o permitiu. Agora, a justiça do país quer prender Rap outra vez. Mas já não sabe onde ele para.

André Oliveira Macedo, conhecido no mundo do crime como André do Rap por a determinada altura da sua vida ter tentado ser cantor profissional daquele ritmo musical, é acusado de comandar o tráfico internacional de drogas entre o Brasil, a partir do porto de Santos, no estado de São Paulo, e a Europa, através de portos italianos.

Segundo a polícia brasileira, ele é um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa do Brasil, além de principal elo de ligação no país com a "Ndrangheta, a máfia da região da Calábria, no sul de Itália.

Hoje com 43 anos, celebrados este mês, foi preso pela primeira vez em 2001, aos 23, e solto em 2008.

Em 2014, no contexto da Operação Oversea, que investigou uma rede de tráfico internacional de cocaína e resultou na apreensão de 3,7 toneladas da droga, passou a ser procurado pela Interpol.

A partir de 2018, acredita o Departamento Estadual de Investigações Criminais brasileiro, André do Rap tornou-se líder o tráfico de drogas do PCC em substituição de Wagner Silva, cujo nome de guerra era Cabelo Duro, assassinado à porta de um hotel luxuoso no bairro de Tatuapé, em São Paulo, por tiros disparados por dois homens de capuzes, coletes e armas longas, segundo a polícia.

Cabelo Duro, por sua vez, sucedera a Rogério de Simone, o Gegê do Mangue, executado numa reserva indígena no estado de Ceará por criminosos que aterraram no local de helicóptero, numa emboscada planeada por outros líderes do PCC presos - trocaram papelinhos de cela em cela, entretanto apreendidos pela polícia, a dar essa ordem.

Depois de cinco anos foragido, Rap foi finalmente preso a 15 de setembro do ano passado numa aparatosa ação da polícia civil de São Paulo, com o apoio de uma equipa de 23 agentes do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (GARRA), do Grupo de Operações Penitenciárias Especiais (GOPE) e da Divisão Antissequestro, num condomínio de luxo no bairro Itanema, em Angra dos Reis, região balnear do estado do Rio de Janeiro.

Na residência, foram apreendidos dois helicópteros, um deles avaliado em cerca de sete milhões de reais, e uma lancha de 60 pés, avaliada em seis milhões. Foi a lancha, por estar em nome de uma empresa de fachada, que ajudou a polícia a encontrar o criminoso.

Do seu passado criminal, constam duas condenações, a última na sequência da Oversea, num total de 25 anos de prisão.

E como é que um dos principais criminosos do Brasil acaba solto com a complacência da justiça brasileira? Tudo começa num artigo, o 316º do código penal, que determina que uma prisão preventiva, a situação em que Rap se encontrava, deve ser renovada de três em três meses.

Como nem a polícia, nem o ministério público, nem o juiz de primeira instância a cujas mãos o processo de Rap foi parar se preocuparam em renovar essa prisão preventiva, ao deparar-se com um pedido de habeas corpus, Marco Aurélio Mello, hoje em dia o juiz mais antigo do STF, decidiu aplicar a letra da lei e determinar a saída do traficante da cadeia.

"O paciente [André do Rap] está preso, sem culpa formada, desde 15 de dezembro de 2019, tendo sido a custódia mantida, em 25 de junho de 2020, no julgamento da apelação. Uma vez não constatado ato posterior sobre a indispensabilidade da medida, formalizado nos últimos 90 dias, tem-se desrespeitada a previsão legal, surgindo o excesso de prazo", escreveu Mello.

A questão, entretanto, antes de ser jurídica, é política: o artigo em causa faz parte do "pacote anticrime", principal projeto do consulado do ex-ministro da justiça e da segurança Sérgio Moro. O "pacote anticrime" acabou, no entanto, desvirtuado ao ser discutido no Congresso Nacional, uma vez que os parlamentares pretenderam garantir mais direitos a réus e investigados - o artigo 316 não só não constava da proposta original de Moro como o próprio ministro pediu a Jair Bolsonaro para retirá-lo.

Mas o presidente da República, em fase de aproximação ao poder legislativo e já a afastar-se do seu ministro, que acabaria por se demitir menos de seis meses depois, recusou-se, sob o argumento de que "na elaboração de leis, quem dá a última palavra sempre é o Congresso, derrubando possíveis vetos". "Não posso sempre dizer não ao parlamento, pois estaria fechando as portas para qualquer entendimento", escreveu Bolsonaro nas redes sociais na ocasião.

A decisão monocrática - sem consulta ao plenário de 11 juízes que compõe o STF - de Marco Aurélio Mello gerou natural controvérsia dentro e fora do tribunal.

Luiz Fux, atual presidente do órgão, revogou a decisão do colega por, segundo ele, "ser contrária ao entendimento desta corte" por beneficiar um líder do tráfico que "permaneceu por cinco anos foragido e foi condenado por tráfico de quatro toneladas de cocaína".

Mello contra-argumentou: "O presidente, lamentavelmente, implementou a autofagia, o que fragiliza a instituição que é o STF". "É lamentável, gera uma insegurança enorme e acaba por confirmar a máxima popular de 'cada cabeça uma sentença'", disse.

Para o autor da decisão original, Fux "adentrou no campo da hipocrisia" ao suspender-lhe a decisão. "Foi um horror, eu não jogo para a turba".

O debate tornou-se até pessoal, com piadas de Mello ao cabelo do colega de tribunal. "Tenho umas fotografias em congressos com ele, de 30 anos atrás, e houve uma mudança fabulosa (...) gostaria de saber o remédio que ele toma [para crescer o cabelo] e tomar também. Vamos patenteá-lo e ganhar dinheiro".

Fux, no entanto, sublinhou que no meio de todo o processo, André do Rap "debochou da Justiça", pois aproveitou-se da decisão "para evadir-se imediatamente" e "cometeu fraude processual ao indicar endereço falso".

Colocada a questão em plenário, todos os membros do STF votaram contra a liberação de Rap, isolando Mello.

Fora do STF, as reações também foram sobretudo críticas ao juiz mais antigo da corte.

Políticos como João Doria, o governador do estado onde o criminoso estava detido, São Paulo, acusou Mello de "colocar um bandido em liberdade". "Agora a recaptura dele vai custar dois milhões de reais, a minha vontade é mandar a conta para o juiz!", exclamou.

Já na comunidade jurídica houve quem festejasse a atitude do juiz. "A lei não foi obedecida, portanto o Estado tem que arcar com a consequência disso", disse o advogado criminalista Fernando Parente à edição brasileira da BBC. "Acho que a pergunta a ser feita não é se o Marco Aurélio errou ou acertou, a pergunta é: por que é que o Estado não cumpriu a lei que ele mesmo criou para si?".

"A ideia dessa lei é reforçar o fato de que a regra no Brasil é a liberdade e não a prisão, como em qualquer estado democrático de direito. A regra vale para o André do Rap, mas também para o João, para o Zezinho. Há inclusivamente um levantamento do jornal O Globo mostrando que o Marco Aurélio concedeu a mesma decisão para algo como 80 pessoas. Só que isso nunca apareceu. Mas quando foi com o André do Rap, aí apareceu e deu essa repercussão toda", concluiu o advogado.

Para o colunista do portal UOL Tales Faria, o veterano juiz "errou, acertando". "O artigo 316 tenta evitar que se repita uma malandragem de procuradores da Lava Jato e do próprio juiz Sérgio Moro que desacreditou em boa parte uma operação de combate à corrupção, e por isso a Lava Jato está sendo desmantelada. Moro e os promotores mantinham os investigados em prisão temporária por prazo indeterminado, até que eles aceitassem fazer uma delação premiada forçada. É quase confissão sob tortura", defende.

"O artigo 316 veio para corrigir isso. Mas não quer dizer que a liberação do preso seja automática. Tem que sofrer uma análise prévia do juiz sobre aquele preso e os riscos para a sociedade caso ele seja solto. Marco Aurélio não fez nada disso. Apertou o botãozinho, como se acionasse uma bomba, e criou uma confusão do tamanho de um bonde [carro elétrico]".

Os serviços de inteligência do governo de São Paulo afirmam que André do Rap não foi surpreendido com a sua saída da prisão - segundo eles, o traficante dizia aos colegas de cela e também aos agentes penitenciários que não demoraria muito tempo detido. "Não passo o Natal aqui", afirmava.

Os mesmos serviços também acreditam que em vez de ir para o Guarujá, estância balnear perto de Santos onde garantiu às autoridades que iria ficar até a sua situação penal ser resolvida, terá voado para Maringá, no estado do Paraná, e daí para o Paraguai.

Áureo Fausto Filho, advogado de Rap, nega planos antecipados de fuga. "Essa história é folclore, Maringá era a cidade mais próxima para pegar um voo comercial, ele não pegou um voo para São Paulo no sábado porque só tinha no domingo. Essa história de ter um jato alugado não é verdade".

O responsável pela prisão de Rap em setembro do ano passado, o delegado Fábio Pinheiro Lopes afirmou, por sua vez, que a recaptura "não é impossível", mas que "não será nada fácil, vai exigir um tempo".

"Ele passou muitos anos foragido. A maior dificuldade que a polícia tem para prender, além de enfrentar o seu poderio financeiro, que é muito alto, passa também pela sua rede de relacionamento dentro e fora do Brasil. Ele já morou na Holanda e tem um relacionamento muito estreito com a 'Ndrangheta".

Agentes federais, entretanto, seguem a pista de um vídeo de quatro segundos publicado pela namorada do narcotraficante no aeroporto de Presidente Prudente, cidade vizinha a Presidente Venceslau, no dia em que André do Rap foi solto, diz o portal UOL.

O advogado do traficante assegurou que não sabe do paradeiro do cliente. "A última vez que estive com ele foi no sábado. Não tive mais notícia. Claro que eu não sabia que ele ia fugir, o conselho que lhe daria era que se entregasse".

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