"A Tunísia está ingovernável desde a Revolução"

Entrevista ao historiador Adel Ltifi sobre a situação política na Tunísia, que vota na segunda volta das presidenciais neste domingo e na semana passada votou nas legislativas.
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O tunisino Adel Ltifi, historiador do Mundo Árabe Contemporâneo e professor na Universidade Sorbonne Nouvelle em Paris, analisa a situação política do seu país antes de dois candidatos antissistema disputarem a segunda volta das presidenciais, este domingo, e depois de as legislativas do fim de semana passado terem deixado o Parlamento tunisino fragmentado e sem uma maioria clara.

O professor universitário Kaïs Saïed e magnata dos media Nabil Karoui, dois candidatos antissistema, venceram a primeira volta das presidenciais da Tunísia a 15 de setembro. Qual foi a mensagem que os eleitores quiseram passar?
É muito importante olhar para a taxa de participação, já que é preciso ver que 60% dos eleitores não foram votar. Isto significa que há um desgosto geral pela política na Tunísia, tendo em conta os falhanços consecutivos após a Revolução. Mas há um maior envolvimento dos jovens que querem uma renovação da vida política e querem, sobretudo, uma certa moral que acompanhe a política, tendo em conta o que viram dos dois grandes partidos, os islamistas do Ennahda e do Nidaa Tounes. Nabil Karoui é alguém um pouco populista, no sentido social do termo, isto é, ele jogou muito com as necessidades quotidianas de uma parte da população tunisina, que se encontrou um pouco à margem. Tudo isto remete, na minha opinião, para o que chamamos de políticas públicas, que dizem respeito aos cidadãos no seu dia a dia, à saúde, educação, transportes e tudo, mas também no sentido político do termo, de pessoas com necessidade de envolvimento moral e de transparência da vida política.

Nabil Karoui estava preso desde agosto e foi libertado esta semana, apesar de ainda ser suspeito de evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Qual será o impacto da libertação de Karoui a poucos dias da segunda volta deste domingo?
Vamos ver as consequências no domingo. Desde a libertação houve um debate entre os dois candidatos, um debate que foi francamente terra a terra, não houve conteúdo. Não notámos que a presença de Karoui tenha mudado alguma coisa. Eu penso que haverá repercussões jurídicas, porque aparentemente ele vai apresentar queixa por considerar que a justiça afetou a sua campanha eleitoral, logo poderá fazer uma tentativa até de anular os resultados das eleições e isso poderá ser grave. Mas talvez não vá até ao fim com a sua queixa, talvez se vá contentar em apresentar-se como o líder da segunda força política tunisina e vá tentar, aos poucos, impor-se como um homem político forte com o segundo maior grupo no Parlamento.

Saïed ganhou na primeira volta. É ultraconservador e quer mudar o sistema. A sua eventual vitória representa um perigo para a Tunísia?
Saïed representa um perigo porque é ambíguo ao nível da sua pessoa, mas também daqueles que o rodeiam e do seu projeto político. Ele próprio diz que não tem oposto, é um pouco bizarro e não sabemos o que pode fazer. Depois há essa ambiguidade entre os que o rodeiam, quem empreendeu esta campanha. Ele fala de jovens sem os identificar institucionalmente, dizer como é que se chamam, como é que os podemos contactar, o que é um pouco bizarro. Mas, o que é certo é que há um grande grupo de ultra islamistas que estão à sua volta. As suas posições em relação à igualdade das mulheres nas questões de herança são claras, ele é contra, logo ele volta muitas vezes à referência da sharia [lei islâmica]. Ele nunca disse claramente que se demarca de qualquer grupo islamista que é ultra conservador, diz muitas vezes que está aberto a toda a gente. São fórmulas que utiliza para ganhar a confiança de todos, da esquerda à direita, e isso é inquietante, não sabemos o que vai fazer. Eu, pessoalmente acho que ele vai, visto que o seu objetivo, o seu projeto ou o que ele apresenta como ideia ser praticamente irrealista, vai ficar na ausência total e na anuência total no palácio presidencial de Cartago.

Nas eleições legislativas do último domingo, o Parlamento tunisino ficou muito dividido e não há um partido com maioria. A Tunísia está agora ingovernável?
A Tunísia está ingovernável desde a Revolução. Os islamistas sentiram-no eles próprios em 2011. Pensavam que Ben Ali tinha detido o poder e que agora era a vez deles o deterem, mas esqueceram-se que foi o povo que se libertou, que há liberdade de expressão e que é muito difícil controlar as ruas. Agora, quando falamos da Tunísia falamos da rua e não há ninguém, não há nenhuma força política, que controle as ruas. Isso é importante. A nível político é verdade que temos um mosaico ao nível do Parlamento e, sobretudo, que há divergências enormes. Aparentemente, uma grande maioria de partidos que podemos classificar de liberais e nacionalistas recusaram categoricamente aliar-se com os islamistas. Os islamistas do Ennahda, que ganharam com uma maioria muito, muito frágil, também não têm interesse em aliar-se com outro grupo que se chama Coligação da Dignidade, porque é um grupo ultraortodoxo e que dá uma má imagem aos chamados islamistas moderados como o Ennahda. Logo, acho que vai haver ou um bloqueio e um apelo a outras eleições ou um governo com uma maioria muito curta que vai ser muito vulnerável e veremos, em um ou dois anos, a repetição das eleições.

Mas que tipo de governo pode sair destas eleições?
Não temos a certeza. A não ser que, num toque de magia, o partido de Nabil Karoui decida se aliar ao Ennahda. Seria um pouco bizarro e no debate na televisão ele disse que esse cenário seria impossível. Mas o problema na Tunísia é que o que dizemos à noite pode mudar durante a manhã, ainda não temos muita certeza. Há talvez uma outra possibilidade com o partido do ainda chefe de governo, Youssef Chahed, que se chama Tahya Tounes, Viva a Tunísia, que poderia aliar-se teoricamente, visto estarem no poder há três anos, com o Ennahda. Mas recentemente eles também disseram que vão preferir estar na oposição. O problema é que atualmente uma grande maioria dos partidos declararam que não vão participar diretamente num governo. Vamos ver um governo muito frágil com uma oposição muito forte no Parlamento.

Se Kaïs Saïed ganhar na segunda volta das presidenciais que relação terá com o Parlamento, onde não tem partido político para o representar?
Eu penso que ele vai ser eleito, visto que quase todos os partidos de esquerda, de direita e moderados apelaram a votar em Kaïs Saïed. O problema é que não temos referência sobre o que poderá fazer na relação com o Parlamento. O que ele diz é que ficará no Palácio de Cartago, fará as suas propostas e vai ver como o Parlamento vai reagir e respeitar a sua decisão. O que significa que, se não há maioria parlamentar, francamente, não vai fazer nada. Eu acho que se houver uma formação de um governo, toda a vida política vai transferir-se do palácio presidencial e da sede do governo para o Parlamento. Vai ser o espaço do verdadeiro poder, porque Kaïs Saïed com uma personalidade fraca e com a ausência de um apoio político ao parlamento vai ficar isolado no Palácio de Cartago. É o mais provável.

As conquistas da Primavera Árabe estão ameaçadas?
Podemos falar de conquistas? Bom, houve a saída de alguns ditadores, falo de Kadhafi na Líbia, de Saleh no Iémen, de Ben Ali na Tunísia... Mas, fora isso, descobrimos que no mundo árabe a ditadura não é o verdadeiro obstáculo à democratização das sociedades e à modernização política. Há estruturas sociais tradicionais e é isso o mais importante. Mesmo na ausência da ditadura vimos, com as revoluções, que houve um aumento de todas as culturas pré-estatais, isto é, o confessionalismo, a religião, os islamistas, o tribalismo, o regionalismo... tudo formas de culturas pré-estatais que atacam o Estado. E é isso que explica a fraqueza. Na Tunísia o Estado está melhor estruturado, a sociedade está estruturada mais em volta de categorias socio-profissionais, os jovens, os trabalhadores, os funcionários, advogados, médicos, mais do que em torno de identidades locais como as comunidades religiosas ou as comunidades tribais. Além disso, há uma forte tradição da administração tunisina com a sociedade civil, mas não acho que o caso tunisino seja transferível para os outros países árabes, porque a realidade social é diferente. Contudo, acredito que apesar do que se passa no mundo árabe e do caos total que vemos na Líbia ou no Iémen ou na Síria, haverá um futuro para estas sociedades. Mas será muito doloroso. No mundo árabe o problema é a fraqueza do Estado não é um problema de ditaduras.

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