A terra americana que os portugueses fizeram paraíso de boémios e gays tem embaixadora
Neste verão o DN republica algumas das reportagens integradas na rubrica sobre portugueses e luso-americanos de sucesso 'Pela América do Tio Silva'. Este artigo foi publicado originalmente a 30 de junho de 2017
Bandeiras americanas, bandeiras vermelhas e verdes portuguesas, muitas. E bandeiras arco-íris, talvez ainda mais. Bem que Liliana de Sousa me avisara que a velha fama de cidadezinha boémia de Provincetown tinha nos últimos anos atraído também a comunidade gay e que os casais homossexuais da Nova Inglaterra, muito deles gente com estudos e abastada, andavam a comprar as casas aos lusodescendentes por bom dinheiro. A culpa é de Tennessee Williams, Eugene O"Neill, Norman Mailer, John dos Passos (este de origem madeirense) e Edward Hopper, que se refugiavam aqui em meados do século XX, escrevendo, pintando e tudo o mais que lhes apetecesse, perante o olhar tolerante da comunidade luso-americana que "não queria saber do que faziam os de fora desde que não chateassem os de cá", explica Liliana, que cresceu em Provincetown, onde mora ainda o irmão Fernando, nascido em Olhão, como ela, mas criado, também como ela, neste recanto do Massachusetts, a pontinha de Cape Cod. "O meu irmão, que foi polícia, aparece num dos livros de Norman Mailer, que se passa aqui", conta a mulher que é famosa por todos os anos promover o Festival Português de Provincetown, sempre quatro dias em junho, de quinta-feira a domingo.
"Vivo em Boston há muitos anos, mas esta continua a ser a minha terra. Venho aqui quase todos os fins de semana e passo cá grande parte do verão", conta Liliana, a melhor das embaixadoras que Provincetown podia ter.
Fizemos quase 200 quilómetros desde Boston até Provincetown e mesmo o potente Mazda demorou quase três horas porque os sinais ao longo da estrada avisam contra quaisquer acelerações. Foi tempo bem aproveitado, porque quando entramos no casario de madeira organizado ao longo de duas ruas paralelas ao mar (Commercial Street e Bradford Street) já sei um pouco mais da vida da minha entrevistada: o pai era pescador e fazia redes de pesca no Sul dos Estados Unidos, para a apanha do camarão, até que teve um acidente. Entre voltar para Portugal e continuar na América optou pela segunda hipótese, mandando chamar a mulher, a filha e o filho menores que viviam em Olhão. Esse juntar da família era um sonho do pai, João, conta Liliana, mas o algarvio sempre achou que o Sul dos Estados Unidos não era terra para viverem.
Provincetown acabou por ser o destino dos Sousa porque o pai já lá tinha estado ilegal quando andava nos bacalhoeiros da Terra Nova, mais acima, no Canadá. E assim um dia lá chegaram à América Maria do Rosário, a mãe, uma Liliana com 12 anos e sem saber falar inglês e Fernando, o tal mano que conviveu com Norman Mailer a ponto de figurar num dos seus romances.
Liliana é uma figura-chave da comunidade luso-americana do Massachusetts tinha-me dito ainda em Lisboa Miguel Vaz, da FLAD, amigo da minha guia em Provincetown e ele próprio um visitante regular da encantadora cidadezinha (três mil habitantes no inverno, umas vinte vezes mais no verão). Antiga funcionária do Consulado de Portugal em Boston e quadro durante muitos anos da TAP na América, Liliana organiza o Festival Português da capital do Massachusetts mas brilha sobretudo nos festejos de Provincetown.
"É uma festa que dura quatro dias. E nela divulgamos a cultura portuguesa aos americanos, ensinamos-lhes o que é a nossa herança. Recebemos sempre umas 20 a 30 mil pessoas durante o festival, de todas as partes da América", explica Liliana. "Temos provas de vinhos portugueses, temos desfiles de ranchos folclóricos, de bandas filarmónicas. Há também fado, que os americanos adoram", acrescenta, cheia de entusiasmo. E no domingo há procissão, missa e bênção da frota. Este ano veio de propósito de Fall River, outro bastião português no Massachusetts, o bispo Edgar da Cunha, que não terá deixado nenhum barco de pesca por benzer.
A primeira paragem que fazemos em Provincetown é na casa de Donald Murphy, um dos principais organizadores do festival. Tem visitas mas abre as portas com entusiasmo para beijar a amiga Liliana. "Para nós portugueses é o Donald Murfado. Na escola só tinha colegas portugueses e pensava ser também português, até descobrir que era irlandês" conta a rir Liliana. Donald, um engenheiro de 75 anos, sorri e diz que é tudo verdade. Como se tivesse sido combinado, veste uma T-shirt alusiva à 65.ª bênção da frota, em 2012. Agora realizou-se a 70.ª, a par do 22.º Provincetown Portuguese Festival. Cerveja para todos, entretanto, com Murfado a mostrar que é mesmo Murphy pois enche a sua caneca com uma Guinness, coisa mais irlandesa não há. Ou talvez seja só uma cerveja preta. Mas, fico a saber, é um apreciador de caldo-verde, não dispensando a rodela de chouriço.
É antiga a história de Provincetown. Habitada por índios, viu chegar em 1620 os peregrinos do Mayflower, que aqui se instalaram até perceberem que a terra, arenosa, não era grande coisa para a agricultura e mudarem-se para Plymouth. A seguir à independência dos Estados Unidos, começaram a instalar-se na terra os baleeiros, muitos deles dos Açores e outras partes de Portugal. Remonta pois ao século XIX no mínimo a presença portuguesa em Provincetown, mas ao longo das gerações foi-se perdendo a língua e mesmo alguns apelidos deixaram de parecer portugueses, como os casos das famílias Pereira que passaram a ser Perry.
Liliana pega no telefone e combina com a amiga Maureen encontrarmo-nos junto ao porto. Conhecem-se desde crianças e Maureen descende dessas famílias mais antigas. "Foi o meu pai, grande amigo do pai dela, que descobriu que o nome original da família era Saraiva", conta Liliana.
Ancorados estão vários barcos, mas dois saltam à vista: o Berço de Deus e o António Jorge. Maureen chega, entretanto, com o namorado, Emanuel de Figueiredo, que lhe foi apresentado pela amiga. É divorciado e tem dois filhos. "Sou lisboeta, nascido em Chelas e criado nos Olivais. Emigrei com 25 anos e estou há 40 na América", diz-me Emanuel, num português perfeito. Ainda visitante de Provincetown, não lhe falta vontade de passar mais tempo na terra da nova companheira."Gosto disto. Desta presença do mar. Desta herança portuguesa", admite. Ao longe, grafitados a preto e branco na parede de um armazém de pesca, avistam-se três rostos de mulheres. "São portuguesas. É uma homenagem à mulher portuguesa", explica em inglês Maureen.
Os pais de Liliana regressaram ao Algarve, depois de os filhos terem crescido. Mas a mãe, quando enviuvou, veio de novo para a América, para um lar onde os filhos pudessem estar próximos. Liliana, essa, casou primeiro com um rapaz de Provincetown, das antigas famílias portuguesas, mas depois veio o divórcio. O segundo casamento foi com um americano de origem sueca, que já morreu. É o pai dos seus dois filhos, "Maria, de 31 anos, que estudou em Brown e fez depois o doutoramento em Engenharia Biológica na Universidade da Pensilvânia, também da Ivy League, e Erik, de 28, professor de ciências e com um mestrado em Educação", revela, sem esconder o orgulho. Maria vive hoje em Filadélfia, Erik na zona de Boston.
Mais uma paragem, desta vez na Portuguese Bakery, onde Liliana me apresenta a Arnaldina Costa Ferreira, nascida em Olhão há 65 anos e já com muitas décadas de América. "Já provou os folares de Olhão? É a melhor coisa da vida", diz ao jornalista acabado de chegar a dona da loja pintada de branco e enfeitada pelas bandeiras de Portugal e dos Estados Unidos. Abrem sempre na Semana Santa, que é uma espécie de início da época alta, e fecham no final de outubro, quando o frio começa a chegar e Provincetown volta a ficar quase deserta. Com o dia ensolarado que está, o movimento é já muito na Commercial Street e Arnaldina, ajudada pelo marido, não tem um minuto de descanso. Além do pão e dos folares de Olhão, vende também bolos e salgados. Inspeciono a vitrine e descubro que a patinha de veado se vende a 2,99 dólares, o pastel de nata a 2,89 e as rabanadas a 2,30. Já o pastel de bacalhau vale 2,55 dólares.
Chega a hora de almoço e Liliana desafia-me para um prato regional: Clam Chowder, uma sopa de amêijoas com natas. Peixe e marisco é o forte nos restaurantes da cidade, tal como em Boston, cidade que no verão tem uma ligação por ferry a Provincetown. Na rua, um ou outro cumprimento. Liliana não passa despercebida, há sempre alguém que se lembra da menina do liceu local ou da organizadora do Festival Português. Troca umas palavras com Joy McNulty, dona do Lobster Pot, onde tivemos o nosso almoço e que é visita obrigatória na passagem pela cidade.
"Sinais de Portugal por aqui não faltam. E é isso que quero relembrar às pessoas. A nossa história aqui", diz-me Liliana depois de passarmos por um monumento aos soldados da terra que combateram pelos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial e onde posso ler nomes como Frank Cabral, Manuel Henrique, Albert Avellar, James Lopes, William Souza, Edward Silva, muitos Perry, talvez os tais Pereira, e também Manuel Cook, provavelmente alguém que herdou o apelido americano de um antepassado português que tinha como profissão cozinheiro. A minha anfitriã leva-me ainda à Portuguese Square, o coração de Provincetown.
Reentramos no carro de regresso a Boston e Liliana aproveita para contar mais uma das muitas histórias que conhece de portugueses de Provincetown. "Já ouviu falar do Manuel Zorra, que era guarda do Al Capone?", lança-me esta mulher que estudou Business Administration e que hoje ajuda a gerir uma clínica pediátrica porque não consegue "estar parada". "Foi nos tempos da Proibição. Até há um livro sobre ele: The Sea Fox. Era de Olhão, como eu". Manuel Zorra, ou Zora, ou ainda Manny Zorra, que era como o famoso gangster para quem trabalhava o tratava. Com a Lei Seca a proibir o álcool nos Estados Unidos nos anos 1920 e 1930, o barco de pesca de Zorra dava muito jeito para transportar whisky, rum e outras bebidas. Regressou ao Algarve já velho e contou as suas façanhas aos jornalistas portugueses, morrendo em 1979, com 84 anos. "Diziam aqui que ele exagerava um pouco. Que era um bocado mentiroso, não sei", sublinha Liliana, deixando-se levar pelo riso que é sua marca.
Passamos por uma série de pequenos hotéis, destinados à avalanche de turistas que vão começando a chegar em busca das praias. E atravessamos Truro, outra cidadezinha. "É aqui que vivem agora muitos portugueses. Venderam a casa em Provincetown aos casais homossexuais e compraram aqui uma mais barata", explica Liliana. Estas mudanças sociais em Provincetown também afetam o seu Festival Português. "Os gays querem participar no desfile e nós não temos nada contra. Mas pedimos que se vistam com as cores de Portugal, pode ser até uma T-shirt. E não tem havido problemas. São pessoas com muita educação, que gostam muito de cá viver, mesmo que já não precisem como antes de um refúgio", diz.
Mais um telefonema (o carro tem sistema de alta voz) e um convite de uma amiga para Liliana assistir em Lowell, perto de Boston, a um jantar com cantigas ao desafio, à moda dos Açores. Pergunta-me se alinho. Claro, respondo, afinal não estou a fazer reportagens sobre a comunidade portuguesa na América? E a noite foi no Clube do Espírito Santo.