Sri Lanka: a "Taprobana" de Camões onde há um santo José Vaz e um general Fonseka

A forma de lágrima do Sri Lanka não podia ser mais adequada à história recente do país, coberta por banhos de sangue muitos ódios entre comunidades budistas, hindus, católicas e muçulmanas que já mataram mais de 70 mil pessoas

Quem não conhece a primeira estrofe de "Os Lusíadas" de Luís Vaz de Camões? "As armas e os barões assinalados / Que da ocidental praia Lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram ainda além da Taprobana / Em perigos e guerras esforçados / Mais do que prometia a força humana / E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram".

A "Taprobana" (nome romano) é o Sri Lanka - antigo Ceilão - o país em forma de lágrima que foi este domingo de Páscoa palco de sangrentos atentados contra igrejas católicas. Uma violência a que a sua população já se vem habituando nas últimas décadas, fruto de ódios étnicos e também religiosos entre a maioria cingalesa (budistas), muçulmanos e os tamil (hinduístas e católicos romanos), que levaram à morte de mais de 70 mil pessoas.

Foram os portugueses os primeiros europeus a desembarcar na ilha de aparência paradisíaca, em 1505. O território era há séculos mítico na Europa pelas suas especiarias, sobretudo a canela - daí a invocação de Camões.

Há um santo José Vaz, canonizado pelo Papa Francisco em 2015. Nascido em 1651 na localidade indiana de Benaulin, em Goa, na época um território administrado por Portugal, foi ordenado sacerdote na Congregação de São Felipe Neri. Em 1687, foi enviado como missionário ao Sri Lanka, onde budistas e calvinistas exerciam uma forte pressão contra a Igreja Católica.

Vaz fundou mais de 15 Igrejas e 400 capelas, e traduziu o Evangelho nos dois idiomas do país, o tamil e o cingalês. Morreu em Kandy (Sri Lanka), a 16 de janeiro de 1711

O "famoso" Fonseka

Desses tempos de presença portuguesa ficou uma pequena comunidade cristã. Ficou também uma cidade / fortaleza, Galle, um nome cuja origem estará nos galeões portugueses, ou nas "galés", ou ainda no "galo" português, que depois os holandeses utilizaram como símbolo no local.

A fortificação portuguesa, sob a invocação da Santa Cruz, foi erguida junto com uma capela franciscana, mais tarde como prisão para Cingaleses que se opuseram ao domínio Português. Nos 150 anos de colonização portuguesa, foram criadas importantes feitorias, além de Galle, Colombo, Jafanapatão, Negumbo, Baticalo e Tricomalee.

Mas são nos apelidos de mais de metade da população, como Perera, Fernandes, Sousa, Silva, ou Fonseca , que essa herança histórica marca presença na atualidade.

O mais famoso general do país tem o sugestivo nome de Sarath Fonseka. Este oficial foi o arquiteto da estratégia do governo que venceu os tamiles em 2009, ano da morte do "Tigre" desta minoria que lutava por um estado independente no norte do país.

A guerrilha dos "Tigres de Libertação do Eelam Tâmil" (TLET), foi autora de inúmeros ataques suicidas e outros atentados contra alvos civis e militares. Entre as vítimas, o ex-primeiro-ministro indiano, Rajiv Gandhi , em 1991 por uma "mulher-bomba".

De qualquer forma, em mais de três décadas de conflito, não há lugar para inocentes e tanto os rebeldes quanto o Exército cingalês são acusados de abusos dos direitos humanos por organizações como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch.

Com a derrota dos tamiles há 10 anos, o país atravessou uma fase de aparente acalmia, interrompida apenas por ataques esporádicos dos maioritários budistas contra mesquitas e propriedades muçulmanas. Acabou por levar à declaração do Estado de Emergência em março de 2018 e estando agora o país a preparar-se para legislativas em 2020. Já este ano, o presidente do país, Maithripala Sirisena, anunciou que iria retomas a pena de morte, num país cuja última execução de um prisioneiro remonta a 1976.

Os "Burghers" portugueses

Num recente estudo de um investigador da Faculdade de Letras de Lisboa, Hugo Cardoso, foi identificada no Sri Lanka uma comunidade de "milhares de pessoas" falantes de crioulo, que tem como origem a presença dos portugueses.

"A língua é muito opaca, conseguimos imediatamente identificar algumas palavras, mas só depois de nos habituarmos à fonética é que começamos a reconhecer muitas mais palavras. Percebemos que o léxico é quase todo português, com transformações interessantes, com alguns arcaísmos e influência do holandês, do inglês e do tâmil. Mas, continua a ser fundamentalmente português", descreve o linguista.

Estas comunidades identificam-se como burghers -- palavra que significa "cidadãos" em holandês - e o termo passou a designar-se para todas as pessoas que tivessem uma ascendência euro-asiática incluindo os portugueses e também os holandeses, no Sri Lanka.

Nessa pesquisa, divulgada em março último, Hugo Cardoso registou também que a "Baila", um estilo de música muito popular no país, tem também raízes portuguesas. "Baila é um estilo de música do Sri Lanka, extremamente popular no país ao ponto de ser considerada a música nacional e que tem as suas raízes, tal como o nome indica, na presença portuguesa e nas tradições musicais destas comunidades burghers. Existe a baila cantada em crioulo português, mas também é cantada em tâmil ou cingalês", explica Hugo Cardoso.

Em 2014, o então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho visitou o país e esteve com elementos desta comunidade num orfanato apoiado pela AMI, cerca de 70 km a sul da capital, Colombo, onde plantou uma mangueira, árvore nativa da Ásia, descerrou uma placa alusiva à sua visita, içou uma bandeira portuguesa e ofereceu às crianças uma bola da Federação Portuguesa de Futebol.

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