A falsa guerra civil na Síria
Apesar dos aviões de Hitler e de Mussolini convencionou-se chamar guerra civil ao conflito que decorreu em Espanha entre 1936 e 1939. Talvez este tipo de antecedente explique porque continuamos a chamar guerra civil ao conflito que existe na Síria desde 2011. Mas não passa de uma simplificação: nem o regime de Bashar al-Assad nem os rebeldes estariam hoje a combater se não houvesse potências que vieram em seu socorro e logo desde o primeiro momento. Consoante as simpatias geopolíticas, o dedo ora é apontado mais ao Irão, que apoia Assad, ora à Turquia, patrona de vários grupos rebeldes. E estamos a falar de dois países da região. Mas há também o envolvimento de potências bem mais distantes, seja a Rússia, que se tornou desde 2015 o grande garante de sobrevivência do governo de Damasco, sejam os Estados Unidos, que mesmo tendo como prioridade assumida o aniquilamento do Estado Islâmico não deixaram de atacar em várias ocasiões bases e derrubar aviões de Assad.
Reino Unido, França, Israel, Arábia Saudita, Qatar, até a Austrália, podem ser incluídos neste rol de países que, com justificações várias, vieram envolver-se na tal guerra civil síria, uns de forma mais ostensiva, outros discretos, através mesmo de milícias. Se nos recordarmos da Guerra Civil Espanhola, também assim foi: Alemanha e Itália abertamente ao lado dos insurgentes liderados pelo generalíssimo Franco, democracias ocidentais discretas no apoio ao governo republicano, União Soviética eficaz a patrocinar os seus aliados mesmo em prejuízo da unidade do campo antifranquista, brigadas internacionais com voluntários de ideologias e bandeiras diversas.
Há quem diga que a Guerra Civil Espanhola foi o ensaio para a Segunda Guerra Mundial. A da Síria provavelmente não é ensaio para nada, mas a sua demora - três vezes mais anos do que o embate entre a república espanhola e os franquistas - gerou efeitos muito para lá das fronteiras, desde a emergência de uma organização jihadista mais extrema e mortífera do que a Al-Qaeda até uma vaga de refugiados imensa, em ambos os casos impactando a Europa. Não só os atentados terroristas ordenados ou inspirados pelo Estado Islâmico fizeram-se sentir no Reino Unido, na França, na Alemanha, na Espanha e por aí fora, como a associação populista da violência aos fluxos de migrantes explica a força hoje da extrema-direita em vários países, com a AfD alemã como o exemplo mais perfeito.
Da Síria veio também a oportunidade para o Irão reforçar a sua rede de influência regional assente nas comunidades xiitas, com a transferência de armamento para o Hezbollah libanês a não passar despercebida a Israel, que ataca cirurgicamente. E sobretudo deu oportunidade à Rússia de se exibir militarmente fora do espaço ex-soviético, ainda por cima vindo em socorro de um velho aliado, o clã Assad, e em defesa das suas únicas bases navais no Mediterrâneo.
Com o Ocidente a hesitar no ataque direto a Assad e depois a concentrar-se na resposta ao Estado Islâmico, coube à Turquia o papel quase exclusivo de armar os rebeldes sírios, de início defensores da democracia (depois reforçados por jihadistas vários que o próprio regime libertou para denegrir a oposição). Fê-lo em resposta aos apelos dos Estados Unidos ainda no tempo da presidência de Barack Obama, fê-lo por uma natural revolta da opinião pública turca pela violência com que Assad decidiu reprimir a versão nacional da Primavera Árabe, fê-lo também no âmbito de uma política externa neo-otomana querida a Recep Erdogan e que ainda recentemente o levou a enviar militares para a Líbia em apoio do governo reconhecido pela ONU.
Claramente, o impacto da guerra na Síria tem-se feito sentir de forma muito dura na Turquia. Recebeu três a quatro milhões de refugiados e agora prepara-se para mais um milhão na sequência da ofensiva final de Assad na província de Idlib; viu Istambul e Ancara serem atacadas pelo Estado Islâmico tal como o foram Manchester, Marselha ou Berlim; idealizou uma aliança de conveniência com a Rússia para contrabalançar a falta de coesão dentro da NATO (com culpas cruzadas) e que agora se revela cada vez mais contranatura, apesar das negociações em curso; viu o separatismo curdo encarnado pelo PKK que há anos negociava uma solução pacífica de repente a ganhar força graças ao sucesso dos peshmergas tanto na Síria como no Iraque contra os jihadistas, com as milícias curdas a receber apoio militar global e a tentarem criar um Estado no norte do Iraque e ao longo da fronteira entre a Síria e a Turquia; agora, numa situação complicada dada a força da aliança entre Assad e o presidente russo Vladimir Putin, Erdogan joga cartadas extremas, por um lado apelando à solidariedade da NATO, por outro pondo em causa o acordo com a UE para conter os refugiados, caso não haja mais apoio dos 27. A Grécia nisto ser a grande vítima entre os europeus, e não a Alemanha ou a França, é mais um elemento trágico a juntar aos muitos causados pela guerra na Síria, até porque sobretudo as suas ilhas estão no limite da capacidade de acolhimento de sírios, mas também de gente vinda de tão longe como o Afeganistão.
Na Guerra Civil Espanhola ganharam os rebeldes, na da Síria o provável é ganhar o regime, resta saber por quantos anos. Imaginem o que se descobrirá um dia nesta última se em Espanha ainda há valas comuns a ser identificadas e as memórias do conflito continuam a azedar tanto a vida política como as relações pessoais? Sim, na hora de fazer o balanço final, percebe-se que a palavra "civil" nestas guerras tem que ver sobretudo com quem é que morre mais. Meio milhão.