A Europa terá hoje uma locomotiva ou a via cortada
Por onde começar estas presidenciais que hoje acabam? Esta lição de vida para os franceses e, pelo menos, para os aparentados deles, os europeus... Foi pré-campanha e campanha, intensas como quase todas, mas cheias de surpresa e de rutura como poucas. Das presidenciais 2017 até podia dizer-se que seriam o começo de um desastre, não fosse essa alternativa ter sido adiada. Ao que parece Marine Le Pen sairá perdedora logo à noite - e ainda bem, como objetivamente deve (mesmo por um jornalista) ser dito da peste, qualquer delas, até azul-marinha. Se Emmanuel Macron ganhar - talvez, como é obrigatório dizer das eleições modernas mesmo quando as probabilidades são muito fortes -, fica só uma certeza curta: não será o 7 de maio a decidir o destino da França.
São necessárias mais duas voltas, a terceira e a quarta, daqui a seis semanas, para as legislativas decidirem que o que maio ganhou foi confirmado por junho. E se Macron ganhar, depois do Eliseu, a maioria parlamentar, só então se poderá passar a uma esperança vaga: talvez, quiçá, enfim, se os acasos estiverem para aí virados, a França possa mudar. Tão pouco de garantido, para tantos dias de emoção...
A França expôs-se, aproveitemos a oferta. Na quarta-feira, o canal televisivo de notícias CNews convidou para uma entrevista Robert Bourgi, um dos homens que mais influenciaram estas eleições. Mas comecemos pelo entrevistador, Jean-Pierre Elkabbach, para assinalar que estamos a falar do "système", palavrão de que não pode prescindir qualquer conversa sobre política francesa. No dia em que Mitterrand ganhou as suas primeiras presidenciais, em 1981, pondo fim a quase um quarto de século de domínio gaullista, a multidão eufórica reunida na praça da Bastilha não pedia a cabeça de nenhum dos políticos. Mas este grito, além dos de vitória, era o mais ouvido: "Elkabbach, dehors!", fora com aquele que dominava a televisão oficial... Aos 80 anos, o velho senhor tevê ainda hoje domina os estúdios, desta vez num canal de informação contínua, que acabou de estrear em fevereiro, como para não perder esta campanha eleitoral. O patrão do CNews é Vicent Bolloré, amigo de Sarkozy e apoiante, quando calha, dos "maires" socialistas de Paris. O sistema.
Entrevistado, pois, Bourgi, a quem Elkabbach, velha raposa, lançou para começo de conversa: "Vem muito bem vestido." O casaco de tweed, embora de corte original, não merecia tamanho elogio - não fosse estar vestido pelo homem que ofereceu três fatos a François Fillon. A generosidade para com o candidato do partido gaullista Les Républicains (LR) causou, como se sabe, a queda de um dos dois pilares da política francesa. Robert Bourgi, franco-senegalês-libanês, conselheiro de Presidentes africanos e abridor de portas no Médio Oriente...
Robert Bourgi já tinha dado uma entrevista, em 2011, ao Journal du Dimanche, onde descrevia com minúcia as suas idas ao presidencial Eliseu e a Matignon, o palácio do primeiro-ministro, para entregar malas de francos e euros (de uns e de outros, porque o seu vaivém atravessou a mudança de moeda). Os doadores eram líderes africanos; os principais contemplados eram Chirac e Villepin, chefes gaullistas e não se pense que tudo ia para o partido. Enfim, era uma das consequências de uma antiga ligação, política e financeira, nascida ainda com o general De Gaulle no poder e que até tem direito a batismo próprio: "Françafrique".
Apesar dos pormenores e da gravidade da acusação, essa entrevista ao jornal não teve consequências. Nenhumas. Nem tão-pouco levou a um prudente distanciamento por parte dos dirigentes gaullistas: depois da entrevista, o ex-primeiro-ministro Fillon continuou a recorrer ao advogado Bourgi para viagens de contactos por África. E, depois de Fillon ganhar as primárias para ser candidato dos republicanos, em fins de 2016, ei-lo a aceitar fatos de tão sulfurosa amizade... Na entrevista ao canal televisivo, Bourgi permitiu-se ser exato: não, não foram três, mas dois fatos e "um blazer e calças cinzentas", tudo por 18 mil e tal euros. E sublinhou a continuação da convivência com os grandes do gaullismo: "Ainda na semana passada almocei com Sarkozy, no Ritz". A Elkabbach e aos franceses, atónitos, ele reconfirmou as maletas de dinheiro a governantes: "Só um recusou, Raymond Barre".
A V República em cuecas, com um silêncio que se manteve durante meia dúzia de anos depois do protagonista a contar. As enormidades sobre malas de dinheiro tinham sido publicadas e esquecidas. Mas em 2017, pois coincidia com uma campanha eleitoral, bastaram ridículos, apesar de caros, três pares de casacos e calças para que uma sanção, a mais legítima delas, o voto popular, fizesse cair um dos culpados. Pormenor acrescido, Robert Bourgi sugeriu na entrevista à CNews que o ex-presidente Sarkozy estava na origem da história dos fatos, truque para minar um adversário dentro do partido LR... Jean-Pierre Elkabbach sorria com o cinismo dos que pactuaram com tudo e ainda têm o prémio de ganhar um scoop... Tirando os efeitos tecnológicos, a antiga Roma não se espantaria e haveria de reconhecer os seus próprios vícios nas vésperas de Átila lhe chegar às portas.
Pilar número um derrubado por escândalo, o gaullista, o outro pilar, o socialista, desmaiou de fraqueza. Vindo da responsabilidade de cinco anos chochos, François Hollande, pela primeira vez na V República que dura desde 1958, foi o presidente que não quis concorrer a um segundo mandato. À desistência do líder, os socialistas acrescentaram a escolha de Hamon, um candidato tão fraco como o inglês Jeremy Corbyn e tão esquerdista quanto ele, uma insistência que leva a supor que certos socialistas interiorizaram que, se calhar, por estes tempos, a vitória é não ganhar. Foram 6 por cento de votos na primeira volta das presidenciais que vão levar a um desastre nas legislativas. Ganharam um parêntesis cómodo que tem por desvantagem não saberem se vão sair dele. Ainda mais que a direita apodrecida - que pode esperar não ser tão canibalizada pelo centro de Macron - o PS, de título do livro que a França escrevia, arrisca-se a passar para uma nota de rodapé.
Mas hoje, domingo de voto, importa escrever sobre os protagonistas em jogo. Como se a História procurasse a inteligência que os políticos se negam ter, chegou-se a uma escolha clara. E antagónica. De um lado, a FN que passou décadas a ser marginal, mas a crescer porque o sistema, regalado em ser sistema, a deixava crescer. Com o poder sem saber como integrar a imigração, à extrema-direita bastava a diabolização do outro. Com os abalos do terrorismo, aos Le Pen bastava ser pelo fecho das fronteiras - "os aduaneiros", foi a arma contra o terrorismo brandida por Marine, no único debate da segunda volta (uma ironia, seria como escolher o pintor naïf Henri Rousseau, o Aduaneiro, como o representante do país que precisou de Renoir e Manet e os teve). À crise económica e financeira, a FN bastou-lhe fingir defender os programas mais conservadores da velha esquerda, protecionismo e estatismo, paga-se, logo se vê com quê...
Não fosse o concurso de circunstância que levou ao suicídio dos gaullistas e dos socialistas, teríamos hoje um candidato deles, um ou outro, a confrontar-se com Marine Le Pen. E, provavelmente, pela cintura sanitária à volta do lepenismo, que já acontecera uma vez com o pai Le Pen, em 2002, o sistema voltaria a manter o sistema. Adiando, para as próximas presidenciais, em 2022, quando a FN reapareceria um pouco, mas talvez já definitivamente, mais forte. Acontece, porém, que surgiu o En Marche!, só com um ano de vida, com um candidato com várias falhas - demasiado novo, 39 anos, demasiado banqueiro, trabalhou para os Rothschild - mas com uma vantagem que nem todos perceberam à partida: ele era a resposta clara, à outra proposta clara. Ele era quem, no osso, se opunha aos Le Pen. Nada como o ténis para se aderir de imediato a um desporto novo - há uma rede a separar e há um duelo.
De repente, os mais lúcidos ficaram com uma esperança que não tinham antes da campanha francesa. Entraram nela mais uma vez preocupados pelo aviso antigo de Charles Péguy, católico e de direita, que nestas palavras falou para todos: "O triunfo dos demagogos é passageiro, mas as suas ruínas são eternas." Tiremos o "eternas", tão religioso, mas depois do brexit e de Trump era o que mais nos faltava colocar uma terceira pedra pesada sobre o nosso próximo destino.
A campanha de Marine Le Pen foi feita para comprovar-se que ela era Le Pen, com o aditivo novo que são os truques à Trump. As fake news, as provocações, as mentiras grosseiras ditas em palco televisivo, sem a preocupação de que amanhã muito será desmentido - alguma coisa há de ficar... Nem se foi poupado à última descarga de gigabytes de intox, no derradeiro dia, mais uma vez sem qualquer preocupação de esconder a indecente manobra. Eles tomam os cidadãos por manada - pela justa razão de que há muito de manada nos cidadãos.
Contra isso estaríamos hoje em pânico se Marine tivesse como adversário não este ou aquele republicano ou socialista - porque a maioria deles é evidentemente honesta - mas um representante do sistema, que esse evidentemente está desacreditado. Mas não aconteceu assim, porque aconteceu política nesta campanha. Houve dois campos, claros: soberanistas contra europeus; extrema-direita contra democracia; fronteiras contra a realidade (o mundo já não é assim). E mesmo as questões delicadas, sendo as maiores a defesa e a emigração, encontraram respostas antagónicas: só uma invocou a Europa, que mais do que bandeira é condição. A Europa precisa de um país grande com este desejo de renovação. Vamos tê-lo?
Não está garantido, nem com a vitória de Emmanuel Macron hoje, nem com a extensão da sua vitória presidencial a uma maioria parlamentar em junho, que En Marche! vá lá... Mas pela primeira vez desde há muito, a França deu aquele primeiro passo sem qual não há andar.
Enviado a Paris