Mundo
25 agosto 2020 às 11h18

A açoriana que criou quatro filhos e agora é campeã do português

Nasceu por acaso nos Estados Unidos, mas acabou por emigrar para lá com os pais já adolescente. Filha de açorianos do Pico, Leslie Ribeiro Vicente fixou-se em New Bedford e aí criou família. Doutorada em Educação, é hoje a diretora da Discovery Language Academy, um bastião da cultura portuguesa na antiga cidade dos baleeiros. Neste verão o DN republica algumas das reportagens integradas na rubrica sobre portugueses e luso-americanos de sucesso Pela América do Tio Silva. Este artigo foi publicado originalmente a 29 de setembro de 2017.

Leonídio Paulo Ferreira

Encontro-me com Leslie Ribeiro Vicente no Jim DeMello Internacional Center, um edifício que o empresário luso-americano que lhe dá o nome quer que seja uma espécie de base para as instituições portuguesas em New Bedford. Ora, Leslie, açoriana de 51 anos, dirige uma dessas instituições, a Discovery Language Academy, que conta com 125 miúdos a aprender português ("mais os adultos", nota).

Apesar do objetivo ser chegar a 200 alunos, a escola de português da antiga cidade baleeira é já caso de sucesso, tendo recebido a visita do secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro. "Ficámos a saber que fomos escolhidos para um projeto piloto chamado Português mais Perto", conta Leslie. A Discovery Language Academy é muito mais que um emprego para ela. Afinal, foi já depois de criar os quatro filhos que descobriu a paixão pelo ensino de português, licenciando-se, fazendo o mestrado e o doutoramento em Educação.

Caminhamos pela Union Street, principal rua desta cidadezinha do litoral do Massachusetts, até ao Museu da Baleia. Nele se recorda o passado de New Bedford, no qual os açorianos têm um papel, contribuindo com boa parte das tripulações que andavam na caça à baleia. Vale bem a visita, não só pelos materiais históricos, como pelo espólio fotográfico. Herman Melville, o autor de Moby Dick, andou por aqui no século XIX.

"Nasci na América por acaso", diz-me Leslie, por entre risos. A conversa é no café Tia Maria, com um galo de Barcelos na fachada não vá alguém ter dúvidas de que é território luso-americano. Ouve-se fado como música ambiente, apesar dos cabelos loiros do casal na mesa ao lado me fazer suspeitar que não são luso-americanos. Leslie acena-me com a cabeça, concordando. Não os conhece, diz, mas também acrescenta que "há muito interesse por Portugal mesmo fora da comunidade. É uma doidice agora por Portugal, sobretudo depois de a seleção ser campeã da Europa". Graças a Cristiano Ronaldo e uma dezena de outros futebolistas de talento, "agora é cool ser português", garante-me a diretora da Discovery Language Academy, que conta com este entusiasmo para atrair mais alunos, sobretudo de famílias que esqueceram de ensinar a língua aos filhos e agora se arrependem. "Há pais que nunca aprenderam português mas querem que filhos falem a língua do país de onde vieram os antepassados", explica.

Mas voltemos à história pessoal de Leslie, cuja mãe já grávida foi visitar familiares em San Diego e "acabou por demorar-se tanto tempo que eu nasci lá". Com três meses voou para os Açores com a mãe, que vivia no Pico com o pai, e assim foi criada em Portugal, a falar português, apesar de o nascimento na Califórnia lhe ter dado o passaporte americano por bónus. "Na verdade, sempre fui cidadã americana. Só agora estou a pensar em pedir a nacionalidade portuguesa", nota Leslie, que fala um português fluente, com um ligeiríssimo sotaque americano.

Desses tempos de criança no Pico, onde o pai era gerente da Caixa Económica na Madalena, ficaram memórias muito fortes do fascínio pela América, de onde a família lhe enviava prendas que não havia em Portugal. "Lembro-me de um frigorífico de brinquedo, que acendia uma luz. E de um carro a pedal, um carocha, que fez grande sucesso".

A opção de emigrar acabou por acontecer tinha Leslie 12 anos. Foi com a mãe para New Bedford, onde vivia uma tia, cujo marido era sócio de um barco de pesca. Os tios, porém, acabaram por se dar mal com o frio do Inverno e foram-se. Mas o pai de Leslie, entretanto, veio também para New Bedford e ela cresceu aí, mais o irmão e a irmã.

"Ao princípio não gostava muito disto. Era inverno quando vim de vez. Queria voltar para os Açores, para São Roque", conta. Falava pouco inglês, apesar das explicações que tinha tido no Pico com a professora Leocádia, ex-emigrante em Nova Iorque. Foi para uma escola bilíngue, depois por já falar um pouco melhor o inglês passou para uma escola secundária. "Foi tudo muito difícil. O meu inglês não chegava para a ciência ou a matemática", recorda. Mesmo assim, diz, "safei-me. E fui para a universidade. Escolhi uma perto de Lowell, no Massachusetts, mas longe. Queria ter liberdade, viver fora da casa dos meus pais. Fui estudar Ciências Políticas, mas de novo deparei-me com dificuldades. Uma coisa era o Street English, outra o Academic English. Também sentia saudades de casa e mudei-me para uma universidade mais perto, a atual UMass Dartmouth".

Leslie estudava mas nunca deixou de trabalhar. Restaurante ou loja, no fins de semana ou em part-time. Entretanto, teve um acidente de carro e a vida deu uma reviravolta. "Casei-me com o polícia que passou a multa", conta, a rir-se. Chama-se Steven Vicente, filho de açorianos de São Miguel. É o pai dos filhos de Leslie, uma rapariga e três rapazes.

Com o nascimento de Sasha, e a trabalhar numa loja de roupa, os estudos acabaram por ser esquecidos. Foi promovida a gerente da loja, depois desafiada a coordenar uma cadeia de lojas. "Era uma vida louca. A miúda a ficar com os avós. Eu sempre de um lado para o outro. Depois vieram os outros. E eu e o Steven chegámos à conclusão de que mais valia dedicar-me a cuidar das crianças".

Hoje Sasha tem 29 anos e é polícia como o pai. Os irmãos têm entre 25 e 17. Joey é o mais novo. No meio Tyler e Lucas. Estudaram todos na escola católica onde um dia Leslie descobriu a vocação de professora de português. "O diretor perguntou-me se era capaz de dar aulas de espanhol. Disse que não, mas que de português talvez. De início eram uns 20 minutos, para as crianças tomarem contacto com a língua. E os pais gostaram e passei a dar aulas a várias idades. Depois veio outra diretora que me pediu para dar aulas de português à escola toda. Estudei currículos, traduzi para português os de outras línguas e fui-me adaptando o melhor possível", continua a contar, agora que caminhamos de volta à Discovery Language Academy, onde tudo está decorado com temáticas portuguesas e as salas bem equipadas.

Cruzamo-nos com Jim DeMello. É um filantropo, grande figura da comunidade portuguesa. Leslie fala-me também de José Soares, empresário da construção civil, que um dia, quando soube que faltava dinheiro para os livros dos alunos de português na antiga escola da professora, mandou comprar o que fosse preciso. "Livro e caderno de exercícios, 70 dólares por estudante. Nunca me esquecerei".

Com os filhos mais crescidos, os mais velhos até já criados como se costuma dizer, Leslie decidiu voltar à universidade em 2011. E foi um regresso de grande sucesso: licenciatura (com algumas equivalências), mestrado e por fim doutoramento pela UMass Dartmouth. Depois, tudo se conjugou. Numa ida ao Inner Bay, restaurante com donos portugueses, falaram-lhe do projeto de Jim DeMello para criar uma única escola portuguesa, que substituísse as duas que havia no norte e no sul de New Bedford. Chegou-se a comprar um terreno para a construir, mas depois apareceu a hipótese de adquirir o edifício na Union Street. E agora Leslie é diretora executiva, liderando uma equipa de dez professoras que estão a ajudar a manter a força da língua e da cultura portuguesa na cidade. "Os miúdos têm um grande orgulho em Portugal e gostam de tudo o que é do país. Trouxe-lhes um CD dos Delfins e adoraram", contra esta mãe de quatro filhos que hoje é a campeã da língua portuguesa em New Bedford.

Em New Bedford