Renda acessível, um hotel, uma escola e uma nova rua: o futuro dos terrenos do Miguel Bombarda

Pedido de informação prévia que está nos serviços municipais prevê que edifício do antigo hospital dê lugar a um hotel. Imóveis classificados ficam como museus, laboratório vai abaixo.
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São mais de quatro hectares no centro de Lisboa, num terreno murado fechado há anos e com edifícios classificados em risco de degradação. Em 2019 o antigo hospital Miguel Bombarda foi um dos imóveis do Estado integrado no Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE) e afetado à habitação para arrendamento acessível. Três anos depois as intenções ainda não saíram do papel, mas já há um esboço de como ficará, futuramente, o antigo hospital psiquiátrico e os terrenos adjacentes, contíguos à rua Gomes Freire. O processo está, atualmente, na fase de Pedido de Informação Prévia (PIP), nos serviços da Câmara de Lisboa, aguardando a conclusão dos pareceres técnicos dos serviços da autarquia, após o que será submetido à apreciação dos vereadores. Pelo caminho, poderá ainda sofrer alterações.

De acordo com a proposta de loteamento que está nos serviços camarários, e que o DN consultou, nos terrenos do Miguel Bombarda serão construídos três novos lotes de habitação, com seis a oito pisos, destinados a arrendamento acessível. Mas não só. Está também prevista a construção de um estabelecimento hoteleiro, com um número de camas ainda por definir, que ficará instalado no edifício do antigo convento de Rilhafoles e onde funcionou o hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, desde a sua abertura, em 1848, até ao encerramento definitivo em 2011. Há ainda um quinto lote, que ocupará a antiga cozinha, e a que será dado um uso comercial, previsivelmente de restauração.

No âmbito desta operação urbanística, uma parte dos terrenos (que são propriedade do Estado) será cedida à Câmara de Lisboa para a construção de uma escola básica 123 (com os três ciclos do ensino básico), com capacidade para mil alunos, e um jardim infantil. Já o conjunto classificado desde 2010 como sendo de interesse público - que abarca o pavilhão Panótico, uma singular construção em círculo que funcionou como enfermaria/prisão, e o Balneário D. Maria II - será requalificado, ficando como "equipamentos culturais/museológicos".

Resultado de um protocolo entre a secretaria de Estado da Habitação a e Câmara Municipal de Lisboa, a proposta de loteamento para os terrenos do Miguel Bombarda está a ser desenvolvido pelos próprios serviços camarários, embora se mantenha na propriedade da Fundiestamo, empresa que gere parte do património imobiliário do Estado.

De acordo com o processo, o "edifício Panótico, antigo pavilhão de segurança, deverá desempenhar a função de equipamento cultural, central na definição do que foi o hospital Miguel Bombarda e focado na especificidade da sua função", e será "enquadrado por um projeto de espaço público" a definir posteriormente. Também o Balneário D. Maria II "deverá ser reabilitado como espaço museológico".

Por outro lado é proposta a demolição do edifício do Laboratório do hospital e de várias oficinas e anexos que foram sendo construídos para dar apoio aos serviços hospitalares. Mas, se neste último caso se trata de construções sem qualquer valor, o mesmo não é válido para o Laboratório, com o próprio processo a sublinhar o "elevado valor histórico no contexto hospitalar" associado a esta construção. Do processo consta já um parecer "informal" da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) a dar assentimento à demolição, dado o facto de este edifício não estar incluído no conjunto classificado, e desde que seja feita uma recolha exaustiva de todos os elementos e uma reprodução 3D do Laboratório. Na fase seguinte, de licenciamento do projeto, este parecer "informal" terá que se transformar numa posição formal da DGPC.

A demolição do edifício do laboratório é justificada por duas circunstâncias que tornam particularmente difícil a intervenção nos terrenos do Miguel Bombarda. Um "território de características muito particulares, que dificultam a implantação de nova construção" devido à topografia de "desníveis acentuados" - um planalto que se situa "consideravelmente acima de todas as ruas envolventes". Mas também pela dificuldade de acessibilidade ao complexo, que tem atualmente um "único acesso viário". A proposta de loteamento prevê, por isso, uma "nova via de ligação" que atravessará o interior do complexo, ligando a Rua Gomes Freire à rua Gonçalves Crespo, um novo eixo viário considerado fundamental face ao desenho do futuro complexo, com novos prédios de habitação e equipamentos escolares

Desde há muito que está identificada a carência de estabelecimentos escolares na freguesia de Arroios e os terrenos do Miguel Bombarda deverão servir agora para dar resposta a essa lacuna. O projeto que está ainda em avaliação na câmara prevê a cedência à autarquia de cinco parcelas de terreno, uma das quais com cerca de 15 mil metros quadrados, com vista à construção de uma "escola básica 123 para cerca de 1000 alunos, com 12 turmas do 1º ciclo e 25 turmas de 2º e 3º ciclo". O edifício das antigas enfermarias, com um formato de "poste telefónico", deverá ser "integrado no contexto escolar, tirando pleno partido da sua configuração funcional e espacial". O documento alerta, no entanto, para "constrangimentos patrimoniais, topográficos e de acessibilidade que terão de ser equacionados". A implementação deste novo equipamento municipal "obedecerá a um programa específico sobre execução da SRU [Sociedade de Reabilitação Urbana, a empresa municipal responsável pelas obras públicas em Lisboa]".

Previsto fica também um segundo equipamento escolar, um Jardim Infantil com capacidade para 75 crianças, com "três salas de atividade" e a instalar num edifício já existente, que deverá ser reabilitado. De um total de 42 255 metros quadrados que integram esta operação urbanística, um total de 18 693 metros quadrados integram parcelas a "ceder ao município".

Quanto aos novos lotes para habitação, a proposta de loteamento aponta para 248 fogos, distribuídos por três lotes, com uma altura máxima de fachada de 19 metros. Para já, o processo aponta para tipologias inferiores a T3, mas deixa a questão em aberto:"Considerámos que, no âmbito dos programas de Renda Acessível as tipologias seriam inferiores a T3 e com uma área média de 90 metros quadrados, o que poderá vir a ser alterado em fase de licenciamento. Quanto ao estacionamento a operação urbanística deverá ter "um mínimo de 128 e um máximo de 185 lugares de estacionamento de uso público". Um destes lotes terá uma "frente comercial" para a rua Gomes Freire. Segundo confirmou o DN junto do Ministério das Infraestruturas os lotes habitacionais do futuro empreendimento "serão exclusivamente afetos à promoção pública".

Mas a rentabilidade dos projetos do Fundo Nacional para a Reabilitação do Edificado tem, obrigatoriamente, de chegar aos 4% e é isso que explicará a previsão de um estabelecimento hoteleiro, sobre o qual pouco é adiantado, nomeadamente quanto ao número de camas previsto, apontando-se apenas para um lote de três e cinco pisos. "O edifício do antigo convento de Rilhafoles, sendo um edifício de valor patrimonial, a recuperar, com uma estrutura funcional específica, prevê-se que venha a acomodar um programa hoteleiro, conforme indicação da Fundiestamo".

A proposta de loteamento para o Miguel Bombarda terá agora de passar no crivo da vereadora do urbanismo e, posteriormente, no da maioria da vereação da autarquia. Dado resultar de um trabalho prévio dos próprios serviços da câmara, mas também atendendo à complexidade do projeto, nomeadamente por envolver património classificado, um cenário possível é que venha a ter uma aprovação condicionada, sujeita a alterações. Mesmo avançando para a fase seguinte, de licenciamento do projeto, é expectável que o resultado final demore ainda vários anos.

Construído entre 1730 e 1750 na antiga Quinta de Rilhafoles, para a Congregação da Missão dos Padres de São Vicente de Paulo, o então chamado Convento de Rilhafoles viria a receber, após a extinção das ordens religiosas, o Real Colégio Militar.

Em 1848 o edifício passa a acolher o primeiro hospital psiquiátrico do país (Hospital de Rilhafoles). Em 1892 o médico psiquiatra Miguel Bombarda assume as funções de diretor - ficará para sempre ligado ao hospital, pelas melhores e pelas piores razões. Responsável pelo desenvolvimento da psiquiatria como especialidade médica, e por notáveis melhorias no hospital, Miguel Bombarda seria assassinado a tiro a 3 de outubro de 1910, no seu gabinete, por um doente. Figura cimeira da sua época, convicto republicano, morreu em vésperas da implantação da República, não chegando a ver a revolução que ajudara a preparar.

susete.francisco@dn.pt

A fotografia de 1931 publicada originalmente com este artigo é, na verdade, do Hospital Júlio de Matos. As nossas desculpas pelo equívoco.

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