Fazer pão em casa "foi sol de pouca dura"

José Neves nasceu na padaria e é lá que passa os dias, apesar do pouco trabalho. Faz contas às toneladas de farinha que tem armazenadas. A culpa não é de quem passou a fazer pão em casa, mas dos hotéis vazios e dos restaurantes fechados

As amassadoras da Panificadora do Areeiro, em Lisboa, nunca estiveram tanto tempo paradas. As máquinas, uma com capacidade para 80 quilos e outra para 120, têm funcionado bastante menos nos últimos meses. O pão é um produto essencial, a padaria continua a laborar, mas a pandemia, além de vidas, está a levar clientes. É num misto de saudosismo e de desolação que o proprietário mostra o espaço, onde estão apenas a trabalhar um padeiro e um pasteleiro. "Haviam de ver como é que isto era antes", nota José Neves, descrevendo depois o movimento que por ali havia até há um ano, antes do SARS-CoV-2 aparecer.

"Os primeiros funcionários entravam às 21.00 horas, e estava sempre gente aqui. Havia só aqui um período, entre as 17.30 e as 21.00, em que não havia padeiro. Pasteleiro havia sempre, 24 horas por dia. Agora não. Agora pegam às 23.30, às 3 ou 4 da manhã estão despachados e está cá um padeiro durante o dia para aguentar a cozedura do pão para as lojas, mais nada", compara José Neves, 59 anos, já com 44 anos de segurança social e, por isso, já a pensar na reforma. "Ficam cá os filhos. Fiz uma asneira e já lhes dei uma quota", ri-se.

Os dois rapazes conhecem o negócio, mas ao contrário do pai não dominam a técnica de fazer pão. "Desde amassar a massa a vender o pão ao balcão consigo fazer tudo", garante. "Nasci dentro de uma padaria. O meu pai tinha uma padaria. Eu comecei a trabalhar em 1977. Todos os dias a fazer disto vida. Por isso, olhe, não sei fazer mais nada. É isto que eu sei fazer e é isto que eu gosto de fazer."

Enquanto a amassadora mistura os ingredientes e bate a massa, José Neves continua a mostrar a panificadora. A cave transformou-se numa arrecadação de tabuleiros de plástico empilhados quase até ao teto. Estão vazios. A maioria, na ordem dos 80%, deixou de ser necessária, porque não há pão para lá pôr. O mesmo acontece com alguma maquinaria: uma divisora de massa, duas fatiadoras, um forno rotativo, duas câmaras frigoríficas, uma estufa.

Numa sala contígua estão armazenadas as sacas de farinha. "Antigamente comprávamos 30 toneladas por mês, agora compramos sete ou oito", conta. Os números mostram o impacto da pandemia no negócio de José Neves. "Se isto trabalhasse só para vender nas lojas era uma coisa; agora nós, com quarenta e tal funcionários... trabalhávamos com cinquenta e tal hotéis todos os dias... Está tudo fechado, estamos a trabalhar para as lojas, para os lares e pouco mais", explica.

A panificadora do Areeiro tem três lojas: a pastelaria encostada à fábrica, num cruzamento da avenida Estados Unidos da América; um ponto de venda na Almirante Reis e uma lojinha em Marvila. Mas, entre 70 a 80% do negócio da panificadora está na revenda, ou seja, na distribuição de pão e bolos para hotéis, restaurantes, escolas, centros de dia ou lares. "Por isso é que a gente está a sentir na pele a quebra nas vendas, porque os restaurantes estão fechados, os cafés estão fechados, os hotéis estão fechados, está tudo fechado", constata José Neves.

86 cêntimos de pão para hotel

Na lista de clientes, a panificadora tinha 54 hotéis, para onde distribuía todos os dias mais de cinco mil unidades de pão em miniatura de uma dúzia de qualidades diferentes. "Agora só estão seis ou sete abertos. Não levam todos, o que um levava antes", compara José Neves. "Fomos um dia destes a um hotel entregar uma fatura de 86 cêntimos de pão. Era a única coisa que aquele hotel precisava naquele dia, era aquele pão", conta. "Claro que, como é nosso cliente, temos de lá ir. Porque quando ele estava a trabalhar normalmente não era isso que ele gastava, não é? Mas não deu para o gasóleo, quanto mais para a farinha".

As escolas fechadas "é mais um rombo" para a panificadora. Só para os centros de dia é que a venda de pão aumentou. "Desde o verão para cá que consomem mais pão porque estão a fazer refeições para quem mais necessita. Antigamente não gastavam esse pão. Por exemplo, aqui o centro Maximiliano [Kolbe] gasta tanto pão num dia como gastava numa semana", especifica.

Empurrar com a barriga

Em abril de 2019 a empresa faturou em revenda 130 mil euros em pão; um ano depois, nesse mesmo mês, ficou-se pelos nove mil euros. "E este ano vamos pelo mesmo caminho", prevê o empresário da panificação, para quem alguns dos apoios do Estado são o mesmo que "empurrar com a barriga para a frente". Com cerca de 50 colaboradores, prevê avançar para lay-off em breve.

Sente a responsabilidade de produzir um bem essencial, mas, às vezes, tem dúvidas acerca da estratégia para tentar travar a pandemia. "Não sei se não era melhor isto tudo fechar mesmo durante 15 dias. Tudo fechado, tudo, tudo, tudo", desabafa. E as pessoas não tinham pão?, perguntamos. "Compravam e congelavam", sugere. "Ou faziam nas máquinas em casa, aquelas pessoas que andaram com essa ideia", acrescenta, com ar trocista. Sim, porque a moda de fazer pão em casa que marcou o primeiro confinamento dá-lhe para rir. Aquilo foi sol de pouca dura. Muita vontade, mas perderam a vontade depressa. Aquilo não sai como deve de ser, sai uma coisita... É como eu costumo dizer: tem duas côdeas, uma por baixo, outra por cima. É um pão com duas côdeas..."

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