Como a Betesga se tornou uma rua tão pequena
Bastam cerca de 40 passos para percorrer a rua da Betesga de ponta a ponta. De um lado, onde antigamente existiam as ourivesarias Lisboa e Portugal, estão agora os tapumes da obra que renovará todo o quarteirão da pastelaria Suíça. Do outro lado, o Internacional Design Hotel, a pizzaria Dama e Vagabundo, e, entre eles, a centenária casa Manuel Tavares. É aí, na cave, que se encontra uma das muitas relíquias desta loja lisboeta fundada em 1860: um vinho do Porto Poças 1918 que está à venda por 3.940 euros. "São vinhos que estiveram mais de 100 anos em barrica a envelhecer e que depois são engarrafados. Portanto, são colheitas muito especiais", justifica Clara Ladeira, gerente da loja. "Nós costumamos dizer que aquilo já não é um vinho do Porto, é um néctar dos deuses. É realmente algo muito especial", acrescenta.
Quando este vinho foi colocado na barrica ainda a rua da Betesga não era o que é hoje, apontada como a mais pequena de Lisboa. Cartografia antiga mostra-nos que era bem mais comprida que atualmente, indo do Rossio até à Rua da Madalena. A planta da cidade de 1650 feita por João Nunes Tinoco, cuja cópia está exposta no Museu de Lisboa, não deixa margem para dúvidas quanto à então grande extensão da rua cujo nome significa, no dicionário, rua estreita ou beco sem saída. "O que acontecia é que até ao primeiro levantamento, de [João Nunes] Tinoco, em 1650, havia uma pequena betesga a meio da rua e eventualmente foi essa betesga, a existência da betesga, que originou o topónimo", especula Mário Nascimento, historiador daquele museu.
Já antes da construção do Hospital Real de Todos os Santos, no final do século XV e início do século XVI, no local onde agora encontramos o quarteirão da Suíça e a Praça da Figueira, existia esta rua. Quando se dá o terramoto de 1755, o hospital vem abaixo. O plano de reconstrução da baixa da cidade empreendido pelo Marquês de Pombal impõe uma ligeira alteração à Betesga. "Neste projeto de fazer uma cidade que era ortogonal, com ruas todas da mesma dimensão, paralelas, perpendiculares, organizadas entre si, a rua sofreu esse alinhamento e perdeu a pequena viela, o beco sem saída que provavelmente foi aquilo que originou o seu nome original", descreve o historiador.
Para o lugar do hospital estava prevista a construção de edifícios mas ali acabou por nascer de forma espontânea um mercado, o qual foi sofrendo melhorias ao longo de um século, até que em 1885, se tornou um edifício em ferro com três naves e quatro cúpulas. "A rua da Betesga confinava ou confrontava com essas paredes do mercado, como a rua do Amparo em cima, e a rua das Galinheiras, à sua esquerda", diz Mário Nascimento.
É em meados do século XX que a rua é encurtada. O mercado é demolido e dos seus escombros nasce a praça da Figueira. A rua da Betesga fica partida: resumida às duas extremidades, com a praça ao meio. "Como não poderiam existir duas ruas com o mesmo nome, a parte que foi mantida foi a parte inicial; a parte final foi convertida em Rua dos Condes de Monsanto", explica o historiador. A centenária Confeitaria Nacional, situada exatamente no mesmo local onde está agora, ganha outro endereço: em vez de rua da Betesga passa a pertencer à Praça da Figueira. A casa Manuel Tavares mantém a morada e a tradição.
Expressão universal
"O produto número 1 da casa é o vinho do Porto", assegura Clara Ladeira. Mas aqui há toda a espécie de vinhos, além de charcutaria, queijos, frutos secos e chocolates. "Temos aqui milhares de produtos num espaço relativamente pequeno. O ditado 'Meter o Rossio na Rua da Betesga' adequa-se muito a esta loja", admite. De onde surgiu o provérbio não sabe, mas o historiador Mário Nascimento diz que este "tem uma grandeza quase universal". "A expressão não é um exclusivo de Lisboa. Inúmeras cidades e vilas por este país têm Rossios como praças centrais e betesgas como pequenas ruas, vielas e becos sem saída. No caso de Lisboa há a feliz coincidência de o Rossio estar exatamente colado à tal pequena rua, que, na verdade, só é pequena porque foi encolhida", argumenta.
Com aquela zona a passar por mais uma operação de reabilitação, quem lá passa os dias só deseja que sirva para reanimar e levar mais moradores para a Baixa. "Os nossos políticos infelizmente têm apostado em tudo menos no mais correto que é fazer com que as pessoas venham viver para a Baixa... É só hotéis", queixa-se Clara Ladeira, que durante o confinamento viveu dias nunca vistos na loja que antes era um entra e sai de clientes. "Eu tive aqui dias de faturar o que nunca faturei. E continuamos com muitas dificuldades, continuamos com uma quebra muito acentuada na faturação". Valeu-lhe a alegria de ver o espaço que a família comprou há 28 anos ser eleito uma das 50 melhores lojas de comida do mundo pelo Financial Times.
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