Mário Soares não iria gostar das 250 páginas, que esta edição acrescenta, tal como não gostou da edição anterior?Sim. No essencial, as coisas não se alteram muito. O que se acrescenta aqui são mais detalhes sobre a vida íntima de Mário Soares. Portanto, sobre a sua vida extraconjugal. Tenho a certeza de que ele não iria apreciar, como não apreciou da outra vez..Ainda assim, Maria Barroso considerou-a muito honesta.Ela disse-me isso, na altura em que saiu a 1.ª edição. Telefonou-me a agradecer, porque ela também tinha colaborado. Disse-me que é um livro escrito com muita honestidade..Sente que havia algo mais para lá dessas palavras?Não, foi o único comentário que ela fez. Pode ser lido como se quiser. Eu li de uma certa maneira, porque penso que ela terá estado atenta a esses aspetos, que eram inéditos, que nunca tinham sido trazidos a público, e que provavelmente já saberia também, logo de início, através do marido. Havia este conteúdo que causava algum desconforto a nível familiar, embora eu deva dizer que ela não era completamente ignorante daquilo que acontecia a esse respeito. Mas uma coisa era saber, outra coisa é ver escrito. Portanto, é sempre mais complicado..Mas fala abertamente, sem pudor, da vida sexual de Mário Soares.É fundamental para definir a personalidade dele. Não é fundamental para definir as linhas políticas..Ele tinha várias vertentes, e algumas antagónicas, porque, tal como o pai - João Soares -, que foi padre católico e maçom, Mário Soares passou de comunista para anticomunista.Eu não considero que tenha havido um antagonismo muito grande entre o pai e ele, ou entre ele e o pai, melhor dizendo. Eles têm coisas extremamente parecidas, incluindo essa inclinação pelo sexo feminino, que era comum aos dois. Ele tinha uma grande admiração pelo pai, ele deve a sua educação política ao pai. É claro que há sempre aquela fase da juventude, de uma certa rebeldia, de não querer estudar ou não ser muito aplicado nos estudos..Pelo menos em Histórico-Filosóficas, a primeira licenciatura.Exatamente. Até porque o pai, sendo o proprietário de um colégio, fazia questão de que o filho tivesse boas notas, e não foi fácil nessa altura. Aliás, em toda a sua vida académica, Soares nunca procurou alcançar boas notas. Mas ele deve muita coisa ao pai e ele reconheceu isso. Portanto, essas lágrimas que ele verte na altura em que o pai morre, até numa situação complicada, porque ele até estava no exílio, têm que ver justamente com isso. Não considero que pode ter havido alguma atitude edipiana, que há sempre, portanto, em relação com a mãe. Mas não havia um antagonismo, nem havia uma rivalidade. Aliás, o João Soares, pai, nunca foi comunista. O Mário Soares foi e, portanto, a própria saída dele do Partido Comunista, no fundo, é um bocado uma convergência com as ideias do pai. Embora o pai estivesse muito ligado à Primeira República, onde chegou a ser ministro. Soares, naturalmente, achava também, como as pessoas mais novas, de outra geração, que a Primeira República estava um bocado ultrapassada, que era preciso ir mais além. Embora também seja verdade que Soares nunca renovou a Primeira República. Sempre manteve uma certa ligação a esses republicanos de antigamente. Embora ele quisesse avançar com ideias, com partidos ou com formações políticas que se libertassem um bocado desses espartilhos da Primeira República, que existiam muito naquela Oposição ao Salazar, nas primeiras décadas do salazarismo, que não eram do Partido Comunista. Soares, quando sai do Partido Comunista, quer continuar a sua carreira política como oposicionista, mas também não quer ficar completamente nas mãos desses representantes da Primeira República, quer outra coisa. E é isso que ele vai fazer, finalmente, quando cria a Ação Socialista Portuguesa, em 1963. Aí, então, já começa a encaminhar-se para o futuro Partido Socialista..Depois de estudar na Faculdade de Letras, de acordo com o livro, Mário Soares diz que perdeu dez anos da vida. Conseguiu recuperá- -los em termos académicos?Acho que ele não olhava para trás com esse tipo de lamentações. Era o que era, ele aceitava e não era lamuriante. Ele sempre foi assim em relação a tudo. Era uma pessoa que, penso, não se arrependia do passado e olhava muito para o presente e para o futuro. Depois de muitas conversas que tive com ele, e concretamente sobre esse período de estudos, nunca o ouvi considerar esse tempo como perdido. Se calhar, ele acharia que teria sido preferível ter ido logo para Direito, em vez de ir para Letras, porque Letras era um curso que não tinha -- Histórico-Filosóficas, como se dizia na altura - um grande futuro, a não ser como professor de Liceu. Não era isso que ele queria. Penso que ele não teria grandes capacidades pedagógicas e, portanto, só foi professor em substituição de professores no Colégio Moderno, que era o colégio da família, mas não quis nunca seguir a carreira como docente. Ele encaminhou-se para Histórico-Filosóficas, mas porque já estava na política. Isso tinha muito a ver com a visão do mundo, que era preciso ter, e achava que isso era importante, mas depois ele esqueceu as necessidades mais pragmáticas. Se ele queria ter uma carreira autónoma, seria o Direito, mas ele, em jovem, foi aconselhado a não seguir Direito, porque era uma carreira reacionária. Penso que até quem o influenciou para não seguir Direito foi o próprio Álvaro Cunhal, que foi um dos seus tutores, quando estava na legalidade, antes de entrar na clandestinidade, indo depois para a direção do Partido Comunista. Foi um dos tutores que o pai escolheu para ele, para tentar encaminhá-lo na vida e endireitá-lo um pouco e ser melhor, mais aparado nos estudos. Segundo a memória que tenho, Cunhal ter-lhe-á já dito - apesar de Cunhal ser licenciado em Direito - que o Direito era uma coisa para formar os quadros do regime, da ditadura, e, portanto, era uma coisa muito reacionária. Isso também, talvez, tenha tido influência para Mário Soares, inicialmente, ter escolhido Histórico-Filosóficas. Depois, ele compreendeu que Direito é que era, para consolidar uma carreira política..Mário Soares era um sobrevivente político, tendo em conta que houve períodos em que ele próprio duvidava da sua continuação no PS, nomeadamente no 1.º congresso do partido em democracia? Pode-se dizer isso, que ele teve muitos combates políticos e sobreviveu a todos, menos, eu diria, ao último, que foi a terceira candidatura [a Belém]. Uma coisa bastante infeliz. Ele não só perdeu com Cavaco Silva, mas perdeu com Manuel Alegre, porque teve mais votos do que ele. Acho que ainda terá sido mais humilhante ele ter perdido essas miniprimárias da esquerda. Foi o candidato oficial do PS, na altura liderado por José Sócrates. Mas Mário Soares tem esta característica de se erguer a cada derrota. Nunca perder a esperança. Ele, aliás, tem essa frase, que é famosíssima, citada milhares de vezes, que está nas páginas finais do Portugal Amordaçado, que é: “Só é derrotado quem desiste de lutar.” Antes do 25 de Abril, eram derrotas atrás de derrotas que a Oposição tinha. Depois do 25 de Abril, ele teve vitórias, mas também teve derrotas. E o principal combate, aquilo que no fundo prevaleceu e que fez dele um político com um lugar muito especial na nossa História recente, são as primeiras Presidenciais que ele disputou em 1986. Tudo indicava que iam levar à derrota..Contra Freitas do Amaral.Contra Freitas do Amaral. Praticamente ninguém acreditava. Houve umas Primárias da esquerda, antes, contra Freitas do Amaral, na segunda volta. Mas na primeira volta, que, enfim, à partida ninguém iria ganhar, contra outros candidatos. Mas ele tinha contra ele - e era uma sombra muito pesada sobre a sua candidatura - o Salgado Zenha. Antigo irmão político, pode dizer-se. Depois, o Zenha rejeitou essa expressão que o Soares usou, acho que numa conversa ou num debate entre os dois. Disse: “Ah, e tal, eu não sou irmão.” Mas, de facto, eles tiveram essa ligação fortíssima, fraternal, desde os Anos 40, quando estiveram juntos no combate político, até pela criação do PS. Isso definiu aquilo que é a biografia de Mário Soares, esse combate. Porque, como primeiro-ministro, já tinha chefiado três Governos, mas nenhum dos Governos foi um grande sucesso. Para já, nenhum deles chegou ao fim. Nenhum deles tinha maioria absoluta. Não foram Governos reformistas, tiveram de enfrentar dificuldades complicadas do ponto de vista financeiro, tiveram de negociar dois resgates financeiros com o FMI [Fundo Monetário Internacional]. Portanto, esses Governos do Mário Soares foram um bocado a correr atrás do prejuízo, não particularmente brilhantes. A única reforma de fundo que ele introduz nos dois primeiros Governos é o início da negociação da adesão à União Europeia, na altura, Comunidade Económica Europeia. E isso é muito curioso, porque ele inicia esse processo nos seus Governos iniciais, e cerca de 7 ou 8 anos mais tarde vai finalizar o processo e vai ser ele a assinar o Tratado de Adesão. Ele fecha um ciclo. Mas, fora essa reforma de fundo, se compararmos com os Governos de maioria absoluta de Cavaco Silva, que foram profundamente reformistas, os Governos de Mário Soares estavam muito atrás. Portanto, ele teve derrotas - a derrota de 85, contra o PSD de Cavaco Silva, embora aí já estivesse a preparar a candidatura às Presidenciais e, portanto, não seria ele a candidatar-se a primeiro-ministro. Mas é uma derrota muito profunda e, se calhar, outro dirigente político não aguentaria. Soares tinha, de facto, este estofo, esta característica especial de suportar todas as derrotas e partir, no dia seguinte, para novamente subir à montanha, como se não tivesse acontecido nada. Até mesmo nessa última derrota de candidatura, em 2006, às Presidenciais, eu perguntei-lhe: “Então, mas isso não o abalou?” E ele disse-me: “Não, depois segui a minha vida normal e atuei como se nada tivesse acontecido.” Eu não acredito que isso tivesse sido bem assim..Deixou cicatrizes?Deixou cicatrizes nele. Mas ele aparentemente tinha essa capacidade de recuperação que nós vemos pouco em políticos. Coisas que talvez liquidassem a carreira de um político, com ele não aconteceu. Basta ver, aliás, os dois primeiros Governos de que ele sai. Hoje em dia, penso que até a própria tendência do partido seria escolher outro candidato a primeiro-ministro. Como ele não teve sucesso, depois o Presidente da República, Ramalho Eanes, não aceitou que ele constituísse um terceiro Governo. O PS atirá-lo-ia borda fora. Depois, em 1980, quando ele não quis apoiar a reeleição de Ramalho Eanes, ocorre esse momento muito difícil em que ele vai praticamente contra todo o partido, que quer apoiar a recandidatura, como já tinha apoiado em 1976..Ele demite-se mesmo do cargo de secretário-geral?Ele não se demite, ele suspende. Ele inventa essa figura estranha da suspensão do cargo..Para que o partido apoiasse Ramalho Eanes. Para que o partido apoiasse, e ele ficava de fora. Não sei em quem ele votou, mas acho que não votou no PS. Pelo que eu percebi, não terá votado no Ramalho Eanes. Depois, ele regressa triunfante e reconquista outra vez o partido, que é uma coisa também inédita, inaudita, digamos, mas de facto ele tinha essa característica de renascer das cinzas de cada vez que tinha uma derrota. É isso que torna a carreira de Mário Soares única. Mas também porque Mário Soares teve, em certo momento, toda a direita a apoiá-lo, sem exceção, em 1975. Com o Comício da Fonte Luminosa, aquela resistência depois ao avanço do Partido Comunista e da extrema-esquerda no aparelho do Estado. E tem, cerca de uma década mais tarde, nessa tal Eleição Presidencial de 1986, toda a esquerda a apoiá-lo, sem exceção, na segunda volta. Nunca vi isto em nenhum político nacional e nem sequer estrangeiro. O facto de ele ter feito o jackpot do espetro político, da extrema-esquerda à extrema-direita, em diferentes fases da sua vida, reunindo tudo isso, também lhe dá características únicas como líder político.