Víctor Manuel Avilés: "Seria suicídio para qualquer força política no Chile voltar a falar de um processo constituinte"
Quando se diz que a Constituição chilena é herdada da ditadura de Pinochet, esquecemos que o texto já sofreu várias alterações. O que resta do texto original de 1980?
A Constituição de 1980 adotou muitas normas históricas do constitucionalismo chileno. E diria que grande parte dessas normas ainda lá estão. Em 1980, foram introduzidas inovações, muitas delas criticadas do ponto de vista da sua incompatibilidade com um sistema democrático. Praticamente todas já não existem. Já não existe a inamovibilidade dos comandantes em chefe do exército, já não existe a preponderância do Conselho de Segurança Nacional, formado por militares, em matéria política. E as reformas mais complexas do sistema eleitoral já se fizeram. O texto atual foi objeto de mais de 60 leis de reforma constitucional, que modificaram dezenas de artigos. A Constituição já não tem a assinatura de Pinochet, mas a do presidente Ricardo Lagos, eleito democraticamente. Dito isto, o que resta hoje é uma Constituição tolerável e modificada, sem os elementos mais fortemente criticados da Constituição de Pinochet.
Ainda assim, em 2020, gerou-se uma revolta que levou à decisão de mudar totalmente a Constituição. Por que houve essa necessidade?
Houve um setor que sempre manteve as críticas à Constituição, devido à sua origem. E também porque esta é uma Constituição que os chilenos nunca tornaram sua. Nunca houve um patriotismo constitucional. Por outro lado, há a tática política desenvolvida por professores como Ernesto Laclau e a sua mulher Chantal Mouffe, que passa pela determinação de problemas específicos, o incentivo desses conflitos e, por fim, a conclusão desses conflitos com um grande tema comum. Estes elementos específicos eram as necessidades sociais pontuais que estavam a criar crises no Chile. Problemas de pensões, do sistema de saúde, necessidade de maior proteção do meio ambiente... E conseguiu-se, com sucesso, convencer um grande setor da população de que o inimigo comum era o texto constitucional. Essa tática política fez eco num governo que estava a enfrentar uma situação de revolta popular. O interesse do governo de voltar à ordem pública junto ao interesse desta esquerda desafiante que estava a seguir esta tática confluíram na ideia de que havia que avançar para uma mudança constitucional. As sondagens nos meses anteriores demonstravam que o tema era praticamente irrelevante para a cidadania.
Essa tática também explica um pouco porque, na primeira tentativa de refazer a constituição, tantos independentes foram eleitos para a Assembleia Constituinte?
Em causa está um grupo de esquerda que veio desafiar a esquerda que tinha governado o Chile, com a crítica de que era uma esquerda que tinha trabalhado com base no consenso e numa constituição herdada. Mas também muitos movimentos sociais com necessidades diferentes, num contexto em que o sistema político tinha demonstrado ser pouco eficiente para solucionar o problema económico das pensões, etc. Havia muita crítica aos políticos e aos partidos. Foi um sucesso eleitoral enorme para os independentes, com os problemas conhecidos, porque não há transparência sobre quem financia os independentes e os cidadãos não têm conhecimento pleno de quais são as posições destes candidatos independentes diante de outros temas diferentes dos que defenderam na campanha.
Foi por isso que falhou essa primeira tentativa, com o “não” a vencer o plebiscito de 2022 com quase 62%?
Penso que a grande surpresa dos cidadãos teve a ver com o comportamento bizarro da Assembleia Constituinte, com elementos perturbadores. E aconteceu uma conjuntura notável. No Chile, durante anos tinha-se ouvido que o sistema de pensões tinha ficado com o dinheiro das pessoas. Na pandemia, uma das políticas sociais – na minha perspetiva muito negativa – foi permitir que as pessoas pudessem retirar dos organismos privados que administravam os fundos uma parte das suas poupanças para as pensões. Os cidadãos receberam ajudas do seu próprio dinheiro. Isso levou a que percebessem que os fundos estavam disponíveis e eram seus. Logo, valorizaram-nos mais. Como parte do discurso da esquerda para mudar a Constituição era a mudança do sistema de pensões para sistemas mais solidários ou mutualistas, os cidadãos sentiram que os seus fundos estavam ameaçados. E começaram a ver com receio a mudança constitucional. Isso teve influência na grande rejeição da proposta.
Mas o Chile não se ficou por aí e tentou de novo mudar a Constituição, confiando desta vez em peritos para escrever uma primeira base e depois numa nova assembleia constituinte, mais pequena. Apesar disso, o texto foi rejeitado em 2023...
Este novo processo surgiu quando muitos setores da direita diziam que não fazia sentido que existisse, simplesmente porque houve outro setor da direita que apelou a rejeitar o texto do processo anterior partindo do pressuposto que era preciso fazer uma nova Constituição, mas uma boa Constituição. E esse setor honrou o compromisso assumido com a cidadania e avançou. Mas aprendeu com os erros anteriores. Por exemplo, refletiu em bases ou princípios iniciais, que depois se deviam desenvolver num texto. Não foi uma folha em branco como no processo anterior. Depois, privilegiou-se o sistema de votação do Senado, com menos membros na Constituinte que reuniam mais votos dos eleitores, o que normalmente se traduz em pessoas de ideias mais centradas. Essas práticas, junto com um menor prazo de redação e a participação de peritos redatores no texto inicial, fez com que se esperasse um bom resultado.
E por que é que isso não aconteceu?
Bom, a eleição dos conselheiros constitucionais trouxe uma surpresa. Uma esmagadora maioria eram do Partido Republicano, um partido da nova direita, sendo que muitos deles nunca pensaram que iam ter que liderar um processo constituinte. Provavelmente pensaram que iam participar como grupo minoritário, logo não responsável pelo processo. Depois das eleições, deparam-se com a realidade de que foram eleitos com maioria, e isso obriga-os a assumir as rédeas do projeto. De qualquer forma, foi um projeto que refletiu muitas das preocupações da cidadania e da esquerda, não foi completamente impermeável. Mas a esquerda rapidamente assumiu a tática política de assinalar que este grupo de direita se estava a comportar de forma errada, como se tinha comportado a maioria da constituinte anterior. Essa mensagem ressoou fortemente na cidadania e, ao mesmo tempo, foi sugerido que o projeto representava um retrocesso do ponto de vista do aborto e dos direitos das mulheres. Isto, somado ao facto de também ter surgido um novo grupo de direita que também era a favor da rejeição, levou a que finalmente o texto fosse rejeitado. Com uma percentagem menor [56%], mas rejeitado.
No meio disto tudo, um presidente da nova esquerda, Gabriel Boric, que estava a contar com a primeira versão do texto, tem que governar com a velha Constituição, que dizia ser horrível.
O presidente dizia "nada pode ser pior do que um texto escrito por quatro generais" e depois teve que se retratar. Afinal podia aparecer algo pior, segundo o seu pensamento. O presidente tem um programa de governo que tem tido dificuldade em implementar não por causa da Constituição, mas porque não tem maioria suficiente no Congresso eleito democraticamente. Essa situação também não tinha solução com uma nova Constituição. O problema do presidente é mais de fundo e é o problema que vão ter provavelmente todos os presidentes chilenos no futuro, que não vão ter maioria parlamentar devido à atomização do Congresso. É um tema que oxalá o Congresso pegue e faça uma reforma constitucional para conseguir um mecanismo de governo que funcione.
Falámos da influência da nova esquerda, da nova direita. A sociedade está assim tão radicalizada?
A nova direita surge com o Partido Republicano, sob a liderança de José Antonio Kast. Não é uma direita particularmente radical. Depois surgiu uma terceira direita, no contexto da votação do texto constitucional redatado pelos republicanos, pela segunda direita. Este grupo é provável que esteja a procurar assumir posições de liderança para desafiar a candidatura de Kast. Mas não me parece que seja um grupo radical do tipo libertário, na linha do [presidente argentino Javier] Milei. Há uma mistura de gente ali. Por isso, penso que o que vai acontecer este ano, nas eleições municipais, é que se vão medir as forças entre a direita tradicional, a direita do Partido Republicano e alguns lobos isolados, digamos assim, deste terceiro grupo. E é provável que nas presidenciais haja uma maior concentração da direita em torno de figuras mais de centro-direita.
Acha que é possível, depois desta experiência de Boric e do receio de uma direita mais radical, que nas próximas eleições haja uma convergência de novo ao centro?
Sim. No caso da direita, o Partido Republicano não governou, mas teve a responsabilidade no processo constituinte e, lamentavelmente, terminou por fracassar também. Por conseguinte, já tiveram "experiência de governar" e ficaram numa posição incómoda. E penso que todas essas experiências vão apelar a fortalecer grupos mais centristas.
E o futuro da Constituição do Chile?
Penso que há mudanças que se devem fazer no Congresso e há mecanismos para o fazer. O quórum para as reformas constitucionais é baixo, são só quatro sétimos, um quórum em termos de direito internacional comparado relativamente baixo, normalmente são três quintos ou dois terços. Por isso, acho que haverá mudanças por aí, mudanças para aperfeiçoar o sistema eleitoral, por exemplo. Mas há vários cenários possíveis. Não descarto, por exemplo, que num potencial governo de direita, se tente reativar desde a esquerda, na oposição, um novo processo constituinte. Não vai acontecer de imediato, porque hoje em dia seria um suicido para qualquer força política voltar a falar de um processo constituinte quando a cidadania ficou farta de processos constituintes e assim o demonstrou com os votos. Contudo, nesta etapa, penso que os movimentos que querem atacar a Constituição vigente vão começar a levantar temas onde vai ser precisamente a Constituição o travão. Vou dar um exemplo. A 8 de março, na comemoração do Dia da Mulher, Boric defendeu a necessidade de avançar para um aborto integral. Um conceito que, até agora, não é conhecido, mas que vai mais além do aborto atualmente permitido. E é provável que a Constituição seja vista como um obstáculo no avanço desse conceito de aborto integral, que não se sabe muito bem o que é. Assim sendo, se existe uma maioria no Chile que quer avançar num aborto mais livre, algo que também não sei se existe, a Constituição vai ser um obstáculo. E a partir daí, destes temas, pode-se começar de novo a levantar o discurso de que é necessário mudar a Constituição.
E no fim de tudo, todos os temas que levaram as pessoas às ruas em 2020, o aumento do custo de vida, a insegurança, tudo ficou igual...
Não, está pior, porque os processos constituintes prolongados no tempo, e logo processos de mudança de toda a Constituição, geram uma grande incerteza na tomada de decisões familiares, mas também decisões de investimento. E tudo isso gera menos crescimento económico, menos trabalho e isso, lamentavelmente, tende a agravar os problemas. Penso que o próprio processo constituinte pode ter gerado o agravamento de alguns dos problemas.
susana.f.salvador@dn.pt