Veredicto de Rittenhouse ameaça reacender a violência racial nos EUA

Em agosto de 2020, no meio dos protestos antirracistas marcados pelo vandalismo, o jovem foi para a rua armado. Acabou por matar duas pessoas e ferir outra. Alega legítima defesa.
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À porta do tribunal de Kenosha, no Wisconsin, os ânimos têm estado exaltados numa pequena escala. De um lado há bandeiras onde se lê "Black Lives Matter", que as vidas dos negros importam, e se pede "justiça para as vítimas". Do outro, cartazes em que se alega que "a legítima defesa não é um crime". No interior do edifício, 12 jurados decidem desde terça-feira o destino de Kyle Rittenhouse, que a 25 de agosto de 2020, no meio de protestos antirracistas e contra a violência policial, matou duas pessoas e feriu uma terceira com uma espingarda semiautomática. O veredicto do jovem que na altura tinha 17 anos, seja de culpado ou inocente, ameaça reacender a chama da violência racial nos EUA.

"Independentemente do resultado deste caso, exorto à paz em Kenosha e em todo o nosso estado", escreveu no Twitter o governador do Wisconsin, o democrata Tony Evers. "Peço a todos os que optam por se reunir e exercer os seus direitos da Primeira Emenda [liberdade de expressão] para o fazerem em segurança e pacificamente", acrescentou. Mas depois de ter sido criticado pela resposta tardia aos eventos do ano passado, Evers anunciou que tinha colocado 500 membros da Guarda Nacional de prevenção, caso haja sinais do regresso da violência. Os protestos à porta do tribunal têm sido de reduzida dimensão, mas isso pode mudar quando houver veredicto.

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O julgamento começou há duas semanas e desde terça-feira que os jurados (cinco homens e sete mulheres escolhidos à sorte de um grupo de 18 que assistiu às audiências) estão reunidos para tentar chegar a uma decisão. "Eu não fiz nada de errado. Eu defendi-me", alegou no banco de testemunhas um emocionado Rittenhouse, que arrisca ser condenado a prisão perpétua se for considerado culpado. A acusação rejeita a ideia de que as mortes ocorreram em legítima defesa, com os procuradores a argumentar que o arguido provocou o incidente, usando a imagem de alguém que levou "uma arma para um combate corpo a corpo".

Os eventos remontam a agosto de 2020, quando as ruas de Kenosha estavam a ferro e fogo depois de o polícia Rusten Sheskey, na resposta a um incidente doméstico, ter atingido com sete tiros o afro-americano Jacob Blake (que ficou paralisado). Os protestos contra a violência policial degeneraram em atos de vandalismo, com propriedades e carros incendiados.

Dois dias depois do tiroteio, Rittenhouse, que vivia em Antioch (no Ilinóis, a 30 minutos de Kenosha), pegou numa caixa de primeiros socorros e numa espingarda e juntou-se a outras pessoas armadas, preparadas para defender os seus bens.

Na noite de 25 de agosto, numa rápida sucessão de eventos que estão parcialmente documentados em vários vídeos (os jurados pediram ontem para os rever), Rittenhouse matou Joseph Rosenbaum, de 36 anos, e Anthony Huber, de 26, tendo também ferido Gaige Grosskreutz, que tem agora 28, todos eles brancos. O juiz Bruce Shroeder decidiu que não podiam ser apelidados de "vítimas", alegando que essa é uma palavra que tem uma conotação forte.

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No seu testemunho, o arguido alegou que Rosenbaum o perseguiu, atirou-lhe um saco para cima e fez um gesto para agarrar a sua arma. Tendo temido que esta pudesse ser usada contra ele, Rittenhouse atingiu-o com quatro tiros. Num dos vídeos, vê-se como ele foge de um pequeno grupo de manifestantes, que o tentam atacar e tirar a arma. Já no chão, dispara uma vez contra Huber (que tinha usado o seu skate para o atingir) e contra o braço de Grosskreutz, que chegou a apontar uma arma ao jovem. Em tribunal, Grosskreutz indicou que estava no protesto para ajudar com cuidados médicos (recebeu treino de paramédico) e que tinha levado a arma porque já o tinha feito noutras manifestações. Naquela noite, acreditava que o arguido era um "atirador ativo", já que as pessoas apontavam para ele a dizer que tinha acabado de matar alguém e estava a querer fugir.

Para uns, Rittenhouse representa os vigilantes armados que contaram com o aval de algumas forças policiais para irem para as ruas no meio dos protestos contra a violência policial. Para outros, nos círculos conservadores e pró-armas, é um herói. "Os manifestantes atacaram-no violentamente. Ele provavelmente teria sido morto", disse o então presidente Donald Trump durante uma ação de pré-campanha em Kenosha, em setembro. Detido pouco depois do ataque, Rittenhouse foi libertado após o pagamento de uma fiança de dois milhões de dólares (quase 1,8 milhões de euros), dinheiro angariada pelos seus apoiantes.

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Além do potencial regresso da violência, o veredicto poderá ter consequências no direito à legítima defesa e posse de armas. A decisão de ilibar Rittenhouse poderá passar a mensagem de que qualquer um pode ir armado onde quiser e, quando a situação ficar complicada, disparar a sua arma sem sofrer qualquer consequência. Nos últimos anos, muitos estados norte-americanos têm alargado a lei da legítima defesa, que já não se aplica só à ideia de defender a casa ou o carro, mas pode ser usada sempre que as pessoas se sintam ameaçadas. Isto numa altura em que as autorizações para transportar armas em público estão também a ser alargadas.

susana.f.salvador@dn.pt

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