"Usei a bandeira iraniana no fato de astronauta porque sempre tive orgulho na minha herança cultural"

Fez fortuna nas telecomunicações e com esta financiou uma ida ao espaço em 2006. Anousheh Ansari agradece à América por todas as oportunidades, mas não esquece o Irão natal. Falou com o DN em Lisboa, onde esteve para participar no Glex Summit 2021, organizado pelo Clube de Exploradores de Nova Iorque e pela Expanding World, do português Manuel Vaz.
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Leu o célebre livro ou viu o filme Persépolis, de Marjane Satrapi, iraniana hoje a viver em França?
Li o livro.

Crescer no regime do xá, assistir a todas as transformações da revolução de 1979 e, de repente, ver a fação religiosa tomar o poder e ter de se exilar com a sua família, é a história de Satrapi, mas é também a sua, adolescente então como ela?
Sim, acho que é a história de muita, muita gente depois da revolução. Eu saí em 1984, portanto foi semelhante. Eu vivi a revolução e vi o pós-revolução, a guerra e o que esta fez ao país.

Portanto, saiu durante os primeiros anos da guerra com o Iraque?
Sim.

O exílio foi difícil para uma jovem iraniana? Imagino que a sua ligação ao país era muito forte...
Foi difícil. Quando saí não sabia que não iria voltar ao meu país. Tal como muita gente pensei que acabaria por regressar, mas claro que não foi esse o caso para a maioria das pessoas e é sempre difícil. Para mim, foi a primeira vez que saí do meu país, nunca tinha viajado para o estrangeiro e tinha 16 anos, o que é sempre uma idade complicada em que passamos por muitas mudanças. Acrescentar a isso uma nova cultura, um novo país, uma nova língua - eu não falava inglês -, foi assustador, muito assustador, mas eu também ansiava por viajar e tinha o grande desejo inato de estudar ciência porque queria ser uma inventora e queria ir ao espaço, e sabia que essas oportunidades não se me apresentariam se tivesse ficado no Irão. Portanto, esse desejo de avançar e de construir uma nova vida para mim era mais forte do que os meus medos.

A América foi a sua primeira escolha?
Bom, nessa época não foi propriamente uma escolha, foi onde eu poderia sobreviver porque a minha tia vivia nos Estados Unidos e tinha feito o pedido para a minha mãe, a minha irmã e eu obtermos o visto de residência. Levou 12 anos até conseguirmos ter residência e podermos ir para lá, o que foi mesmo a tempo, na altura em que as coisas ficaram muito complicadas no Irão. Foi essa a razão para irmos para os Estados Unidos, se fosse noutro país que tivéssemos família teria sido para aí que teríamos ido, pois foi a minha tia que nos sustentou nos primeiros tempos.

Mas, no fim, pelo sucesso que teve, provou ser o sítio certo?
Foi o melhor lugar. Foi um sítio fantástico para estar porque aprendi também toda essa nova cultura de que não havia limites para aquilo que eu conseguiria realizar... e isso não seria assim para mim no Irão, na sociedade em que vivia, com todas aquelas restrições e barreiras culturais e sociais, principalmente para as mulheres. Estar nos Estados Unidos e ficar a saber, principalmente com o apoio do meu tio, o marido da minha tia, que estava num novo país, numa nova cultura, e que teria de começar de novo, mudar as minhas crenças e que não havia nada que me estivesse proibido de fazer se o quisesse fazer, que a decisão era minha e que seria eu a conduzir a minha vida, foi muito bom. Tive muita sorte por ter tido essa oportunidade.

As notícias positivas no Irão sobre o seu voo espacial em 2006 foram uma surpresa para si?
Foram, mas elas começaram pelo público, não foi o governo que fez de mim notícia, apesar de terem ficado contentes por ver o nome do Irão nas notícias. Foi algo conseguido por uns jornalistas de uma revista científica chamada Nojum, que é uma revista iraniana associada à Sky & Telescope. Eles tentaram cobrir a história como parte do programa de astronomia e entraram em contacto comigo quando eu estava em Moscovo, na Star City, a fazer o meu treino. Eles tentaram falar comigo pela internet e entrevistar-me, e depois de eu ter verificado que eles eram legítimos, que não tinham motivações políticas e que apenas tentavam cobrir a excitação das viagens espaciais, falei com eles. Aí, eles começaram esta série baseada nas entrevistas que me fizeram, televisionaram-na e penso que foi assim que surgiu toda esta excitação com a minha viagem.

E o próprio regime iraniano ficou entusiasmado?
Sim, mesmo o próprio regime, toda a gente ficou entusiasmada. Sabe, eu sempre tive o cuidado suficiente para não achar que as minhas crenças são melhores do que as dos outros, toda a gente tem as suas próprias ideias.

Decidiu usar a bandeira iraniana no seu fato...
Sim, decidi. Eu sempre tive orgulho na minha herança cultural iraniana. Há muita gente que deixou o Irão, que vive noutros países e que não fica muito entusiasmada em ter uma relação com alguém do Irão. Chamam a si próprios persas, o que está muito bem porque o país nasceu do império persa há muito tempo, mas não há nenhum país chamado Pérsia hoje em dia. Eu digo que sou iraniana e as pessoas sabem de onde eu venho quando o digo, não tenho medo e tenho orgulho nisso porque há lá muitas coisas boas.

Também sente orgulho na história de mais de 2 mil anos, com muita ciência e cientistas?
Ciência, cientistas e muita história na astronomia. O meu pai nasceu numa cidade de onde vieram muitos dos nossos astrónomos famosos. Portanto, a ciência, a astronomia, uma poesia maravilhosa, um espantoso amor pela vida, tudo isso vem do Irão, da nossa cultura, e eu tenho muito orgulho nisso. Penso que somos um dos poucos países que têm um Ano Novo que é celebrado num feriado não religioso porque está associado com a primavera e ligado a um acontecimento astronómico.

O Noruz...
Sim, o Noruz. Portanto, sim, tenho orgulho em tudo isso e gosto que o mundo conheça um lado diferente do país e perceba que o Irão não é só aquilo que aparece nas notícias.

Este desejo de ir ao espaço como cidadã estava muito enraizado em si? Em primeiro lugar, é preciso haver dinheiro disponível, mas também é preciso ter preparação, o estado de espírito certo e até mesmo a condição física necessária. Foi algo por que teve de lutar muito para conseguir?
Sim. Eu queria fazer isto desde muito nova. Não tinha um plano exato para o fazer, ou seja, não sabia como é que iria ao espaço, só sabia que queria ir e que acabaria por fazê-lo, só precisava de encontrar uma forma de o conseguir. Assim, estive sempre numa busca contínua da maneira de atingir o objetivo. Quando fui para os Estados Unidos tornei-me engenheira eletrónica e, mais tarde, empresária de sucesso em várias empresas com o meu marido, mas nessa altura vi Dennis Tito, que foi o primeiro turista espacial, e toda a controvérsia que existiu à sua volta. Assisti a isso e percebi que uma das maneiras como poderia ir ao espaço era ter dinheiro para comprar um bilhete, isso tornou-se uma motivação para conseguir ganhar esse dinheiro. Nem nessa altura, nem hoje, alguma vez tive o desejo de fazer dinheiro pelo dinheiro, não sou adepta de luxo, mas para experienciar as coisas que são importantes para mim sou capaz de ir atrás do dinheiro para as concretizar. Fui para a Rússia para treinar e parte do treino consistia em aprender russo porque todos os painéis e manuais na Soyuz estão em russo, o que também foi fantástico. Gostei muito do tempo que lá passei e do que aprendi sobre a cultura deles, que tem algumas semelhanças com a iraniana.

Como é que vê este movimento de privados, de Richard Branson e Jeff Bezos, a irem para o espaço? É importante a cooperação entre os privados e os governos?
Penso que será esse o futuro da exploração espacial. Enquanto as agências espaciais governamentais se concentram na exploração verdadeiramente científica para ir a Titã, a Marte, a outras luas, para ver se há sinais de vida e explorar o universo, há oportunidades mais imediatas de ir ao espaço em voos comerciais. Mas no estado incipiente em que estamos ainda, especialmente nos anos mais recentes, termos o apoio do governo tem ajudado a lançar a indústria, o que é essencial. Penso que vai haver tantas novas oportunidades de negócio no futuro, penso que é muito semelhante aos primeiros tempos da internet em que só os governos, as universidades e os bancos a usavam, depois, quando apareceu a Netscape - há muito tempo - e a seguir outros browsers que permitiram realmente fazer coisas na internet e o acesso se tornou mais fácil, surgiu todo um novo mundo de inovação. Ninguém pode recuar 25 anos e adivinhar que iria haver a Uber, a Airbnb, a Yelp e todas as outras coisas. Foi algo que aconteceu porque o acesso se abriu. Eu vejo o espaço exatamente da mesma maneira - quando os custos e o acesso ao espaço se democratizarem, penso que haverá muito mais inovação. Foram os primeiros tempos da tecnologia dos satélites que tornaram todos estes novos dados e imagens disponíveis e proporcionaram todos estes novos negócios que usam os dados de diferentes maneiras, e vejo isso a crescer imensamente no futuro.

As suas realizações pessoais como cientista, como empresária, fazem que se veja a si mesma como um exemplo a seguir, não só para as mulheres, mas especialmente para as muçulmanas?
Penso que os exemplos são importantes em tudo, mas principalmente quando estamos a tentar fazer qualquer coisa de inovador. Para as mulheres em todo o mundo, especialmente para as mulheres muçulmanas, há barreiras culturais que lhes são impostas pela família e o facto de verem alguém com quem se podem identificar, que fez alguma coisa que elas possam acreditar que não pode ser feita por mulheres, muda esse estigma e muda a maneira como elas pensam sobre isso. Acho que esse é o primeiro passo para se conseguir realizar alguma coisa de maior, para romper com a nossa própria barreira mental que nos impede de tentar. Depois, há a questão da perseverança, o continuar a tentar e tentar para chegarmos onde queremos chegar e aprendermos com os nossos fracassos. Portanto, sim, penso que é importante e fico contente por ser uma das muitas mulheres muçulmanas que fazem coisas extraordinárias no mundo, e ser um exemplo para as jovens, no Médio Oriente, por exemplo, que querem ser astronautas.

Quando estive no Irão ouvi o elogio do lema zoroastriano "bons pensamentos, boas palavras, boas ações". Faz sentido para si?
Sim. É um pilar básico de todas as religiões e um bem básico para todas as sociedades - bons pensamentos, boas palavras, boas ações.

leonidio.ferreira@dn.pt

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