Do míssil supersónico recém-testado à possibilidade de um novo encontro com Donald Trump, aproveitando que o presidente americano vai estar na Coreia do Sul, não faltam notícias sobre Kim Jong-un, o líder supremo da Coreia do Norte, uma figura tão enigmática como poderosa, afinal o país é uma das nove potências nucleares. Ora, é decifrar o enigma de Kim, e o poder da dinastia a que pertence, aquilo que a desenhadora sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim faz neste O meu amigo Kim Jong-un, publicado pela Iguana, que já editou A Espera e Erva, duas outras notáveis reportagens gráficas sobre a Península Coreana.“A 8 de janeiro de 1984, nasceu Kim Jong-un, descendente da linhagem da montanha Baekdu”, escreve Gendry-Kim, cujos livros resultam de investigação e os passos dessa investigação integram a BD, sendo a sua própria figura desenhada, assim como a do marido francês (que lhe deu o Gendry, que juntou a Kim, o mais popular dos apelidos coreanos), e os dois cães com quem vivem na ilha de Gangwa. O facto de morar junto à fronteira torna-a ainda mais sensível a tudo o que opõe os dois países nascidos da divisão da Península no final da Segunda Guerra, quando os americanos aceitaram a rendição do exército japonês a sul do Paralelo 38 e os soviéticos a norte..Kim Jong-un é neto de Kim Il-sung, o homem que tentou a reunificação pela força entre 1950 e 1953, dando origem ao primeiro grande conflito da Guerra Fria. Russos e chineses apoiaram o Norte, enquanto os americanos vieram em socorro do Sul, e depois de perto de três milhões de mortes a guerra terminou com a linha de fronteira pouco diferente. O Norte manteve-se ditatorial, e isolado, o Sul evoluiu para uma próspera democracia, e acolherá quarta-feira a cimeira da Cooperação Económica Ásia-Pacífico, a APEC.Explicar a Coreia do Norte é explicar a família que a tem liderado nestas oito décadas. E por isso Gendry-Kim aborda a importância dos mitos fundacionais do regime, como a participação de Kim Il-Sung na guerrilha antijaponesa que tinha a montanha Baekdu como base. Essa heroicidade do primeiro dos Kim, que em 1948 proclamou a República Popular Democrática da Coreia, serviu para legitimar o seu poder, também o do filho Kim Jong-il, que lhe sucedeu em 1994, e desde 2011 o do neto Kim Jong-un. Uma dinastia comunista, mas cada vez mais ultranacionalista.A autora descreve a sua própria infância para dar a conhecer como na Coreia do Sul, sempre com a ameaça de nova guerra, o inimigo era imaginado: “os comunistas eram monstros com chifres e com um tumor de grandes dimensões e o seu líder, Kim Il-Sung, não fugia à regra. Na verdade, todas as crianças da minha geração pensavam assim”. E depois dá-nos a conhecer como, tendo decidido criar esta BD, se encontrou ao longo de meses com especialistas nas relações intercoreanas. Um deles, o jornalista Lee Jae-Hoon, fala de várias questões que afetam a dinastia Kim, como o nunca ter sido publicada uma fotografia do neto com o avô ou de um irmão mais velho ter sido afastado da sucessão (outro irmão foi assassinado). Outra fonte de informação é o cozinheiro japonês de Kim Jong-il, que publicou um livro sobre a vida privada da família Kim. Por exemplo, segundo Kenji Fujimoto, eram óbvias certas rivalidades.Muito interessante também é “o melhor amigo” de Kim Jong-un, dos tempos de estudante anónimo num colégio suíço, a descrevê-lo como “rapaz tímido e tranquilo com grande interesse por desportos, filmes e computadores”. Gendry-Kim cita no livro uma entrevista que “J.M.” deu à CNN. “J.M.” é o português João Micaelo, que depois da ascensão do ex-colega visitou Pyongyang.Também se aborda o tema da jovem filha, Kim Ju-ae. Futura líder, a quarta da dinastia dos Kim?.Toda a BD, onde uma vez mais se afirma a genialidade do traço de Gendry-Kim, é um misto de investigação sobre a personalidade de Kim Jong-un e de questionamento das relações intercoreanas. Há, claro, referência às duas cimeiras com Trump, e aos encontros com o presidente sul-coreano Moon Jae-in, em 2018, quando se acreditou que a Coreia do Norte poderia renunciar ao nuclear. Gendry-Kim inclui relatos da sua conversa com Moon, em que há elogios à capacidade de Trump para inovar diplomaticamente, mas interrogação sobre se a América não terá perdido uma oportunidade de paz ao exigir logo a desnuclearização total a Kim Jong-un. Sabe-se que este vê o arsenal legado pelo pai como a garantia de sobrevivência do regime. A situação degradou-se na Península desde então, e o livro conta isso, e na realidade vem completar obras anteriores de Gendry-Kim sobre a história das Coreias no século XX: Erva presta homenagem às “mulheres de conforto” durante a ocupação japonesa; A Espera fala das famílias divididas pelo Paralelo 38.No ano passado, entrevistei a autora sul-coreana, que veio a Portugal como convidada da Amadora BD. Sobre o tal aumento de tensão entre Norte e Sul, que descreve agora neste O meu amigo Kim Jong-un, um título irónico, disse: “Vivo muito perto da Coreia do Norte, na fronteira. Sentimos realmente a tensão. Ouvimos o barulho feito pela Coreia do Norte. Ouvimos também tiros porque perto da minha casa há um quartel, e militares a receber formação. Diariamente. Ficamos stressados, temos medo. Portanto, há realmente coisas a acontecer que são muito negativas entre as duas Coreias. E isso preocupa-me. Somos o mesmo povo. Tenho amigos estrangeiros que estiveram várias vezes na Coreia do Norte e disseram-me que, mesmo depois de 70 anos de separação, continuamos iguais. Foi o que me disseram. É incrível. Portanto, mesmo passado um século, acho que podemos continuar a ser iguais. Porque tivemos a mesma cultura muito tempo, éramos uma família. Mas atualmente a reunificação é realmente muito difícil, porque Kim Jong-un disse que agora são duas Coreias completamente separadas”. Entretanto, a Coreia do Sul tem um novo presidente, Lee Jae- myung, que já declarou querer dialogar com Kim Jong-un para assegurar a paz na Península. Como escreve Gendry-Kim mesmo no fim da sua BD, “da mesma forma que não se pode regressar ao passado, não se pode reverter a história. As escolhas de hoje determinarão o dia de manhã”..“Quis contar o sofrimento de muitas coreanas através da senhora Lee Ok-sun, personagem principal de Erva”.Como a preto branco se conta com brilhantismo uma história coreana