Leão XIV no seu primeiro aceno à multidão e ao mundo: "O mal não prevalecerá".
Leão XIV no seu primeiro aceno à multidão e ao mundo: "O mal não prevalecerá". EPA/VATICAN MEDIA HANDOUT

Um papa emigrante que diz não a Trump e Vance

Um americano missionário que quis ser peruano: a inesperada escolha de Robert Prevost para o trono de Pedro parece uma resposta à imagem do papa-Trump postada pela Casa Branca. Talvez, como Leão I, espere conseguir parar os bárbaros.
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Minutos após o seu nome ser pronunciado na varanda na Praça de São Pedro, impondo um silêncio  confuso nos diretos televisivos (malgrado fazer parte de algumas listas de papabile, poucos sabiam quem era), a conta de Twitter do cardeal americano-peruano Robert Francis Prevost, ministro do governo Vaticano de Francisco, não tinha sequer 19 mil seguidores. Talvez por isso, a poderosa mensagem do seu último post, de 14 de abril, não integrou qualquer dos perfis que foram sendo publicados sobre ele em antecipação do conclave — nem os primeiros textos sobre o 267º papa que surgiram logo após o anúncio.

“Enquanto Trump e Buckle usam a sala oval para festejarem a deportação ilícita de um residente americano, o antes salvadorenho indocumentado e atual bispo auxiliar de Washington Evelio Menjiva pergunta: ‘Não veem o sofrimento? A vossa consciência não vos interpela? Como podem ficar calados?’

É, é certo, aquilo a que se dá o nome de “retuite” — Prevost partilhava um tuite escrito por outra pessoa, que por sua vez referia o artigo escrito por Menjivar no Catholic Standard. O qual, sob o título “Esta provação é a paixão” relaciona a paixão de Cristo com a provação a que nos EUA estão a ser submetidas as comunidades imigrantes e refugiadas. 

Mas no seu perfil, em que se identifica apenas como “católico, agostiniano [pertence à Ordem de Santo Agostinho], bispo”, Prevost não tem a advertência “retuites não são concordâncias”. Podemos pois concluir que concorda com o fortíssimo texto de Menjivar sobre a deportação em massa de imigrantes e a sua pungente exortação:  “Tragicamente, este ataque brutal ocorre perante o silêncio de muitos — ou mesmo a sua aprovação. Aos de vós que estão calados ou que acham que isto não vos diz respeito, aos de vós que não estão perturbados por isto — ou pior, que aplaudem — particularmente os que são católicos, pergunto: não veem o sofrimento dos vossos vizinhos? Não se apercebem da dor e da tristeza e do medo e ansiedade muito reais que estas injustas ações do governo e das polícias estão a causar? A vossa consciência não vos interpela? Como podem manter-se calados? Nos seus ensinamentos finais, Jesus disse-nos que seremos julgados pela forma como respondemos ao sofrimento dos outros.”

“Vai-te a ele, Santo Padre”

Não foi, de resto, a única vez que, nos últimos meses, Prevost, aliás Leão XIV, verberou, por interposto escrito, a administração Trump. A 3 de fevereiro, partilhara um tuite onde se lê “JD Vance [o vice-presidente dos EUA] está enganado: Jesus não nos pede que hierarquizemos o nosso amor pelos outros”. Trata-se do título de outro artigo, desta vez do National Catholic Reporter, que refere uma entrevista televisiva de Vance, recém-convertido ao catolicismo (que, recorde-se, esteve com Francisco na véspera da respetiva morte), na qual este garantiu existir um ensinamento cristão segundo o qual se ama primeiro a família, depois o vizinho, depois a comunidade, depois os cidadãos do teu país e depois disso tudo o resto do mundo. Para concluir: “Muita da extrema-esquerda inverteu isso completamente.”

Em resposta à referida partilha de Prevost, alguém escreveu, logo após o anúncio de que foi eleito papa, “o catolicismo tornou-se woke” — uma acusação que se foi espalhando entre as legiões trumpianas, à mistura com o crisma de “marxista” (que de resto fora igualmente aplicado a Francisco). 

Há, porém, outro tipo de respostas: “Get his ass, Holy Father” (Vai-te a ele, Santo Padre); “Isto é justiça poética por Trump ter feito pouco do catolicismo com aquela imagem ridícula na semana passada” (referindo a imagem, partilhada pelo presidente americano e pela conta oficial da Casa Branca, de Trump paramentado de papa).

Justiça poética é algo que sucede por acaso, ou por obra e graça do espírito santo — não por deliberação. E se a maior parte do mundo não conhecia as posições de Prevost, tão claramente  expressas na sua conta de Twitter, decerto os cardeais que o escolheram só podiam estar bem cientes da mensagem que a sua entronização significa. 

Uma mensagem que se pode igualmente divisar na escolha do nome papal. Se o último Leão (XIII), apontado como o papa que tentou conciliar o “mundo moderno” e a ciência com a religião, foi também, como muitos comentadores e jornalistas já frisaram, o iniciador da doutrina social da Igreja Católica com a sua encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas, 1891), o primeiro Leão é, diz-nos o mito, o papa que enfrentou e mandou para trás o bárbaro Átila quando este se preparava para invadir a Itália romana. Quiçá Prevost se queira prefigurar como alguém determinado em resistir aos bárbaros, ou pelo menos convencê-los a recuar — “Deus ama todos e o mal não prevalecerá”, proclamou no seu primeiro discurso a um mundo em que as hordas malignas parecem cada vez mais fortes.

Um americano muito do sul

Certo é que a sua nomeação é uma surpresa, mesmo se tanto o diário francês Libération como o americano New York Times (NYT) o apontavam como alguém que podia, precisamente, desmentir a ideia feita de que um cardeal dos EUA, por se tratar de uma das grandes potências, não pode ser papa. 

Porque este nascido em Chicago de pai de origem francesa e italiana e mãe de origem espanhola, licenciado em filosofia e matemática e doutorado em Direito Canónico, referido como um bom cozinheiro e ex-tenista, é um americano muito especial. Escolheu passar uma grande parte dos seus 69 anos — duas décadas, com um interregno em Roma pelo meio — no Peru, tendo mesmo obtido em 2015 a nacionalidade peruana e sido ali missionário, pároco, professor e bispo (nomeado por Francisco, que o conheceu precisamente naquele país, em 2018, quando ali foi de visita). É pois um americano que faz a ponte entre o norte e o sul; talvez até mais, pelo seu relacionamento com Pérou Gustavo Gutierrez, o teólogo peruano teórico da teologia da libertação, e pela sua longa experiência com as comunidades pobres do Peru, do sul que do norte.

E um prelado que, além de fazer parte do grupo de “bergoglianos”, se apresenta como um defensor da vida modesta (“Um bispo não deve ser um pequeno príncipe sentado no seu reino, mas sim mostrar-se humilde, próximo das pessoas que serve, andando no meio delas, sofrendo com elas”, disse numa entrevista em maio de 2023 ao Vatican News, pouco depois de assumir o seu lugar no governo do Vaticano) e da via sinodal defendida por Francisco, assim como, aparentemente, da inclusão de mulheres nos lugares de decisão da sua igreja, que alguns consideram a mais “revolucionária reforma” do anterior papa.

“Acho que a sua nomeação é mais que um gesto do papa para mostrar que agora também temos mulheres aqui”, disse na já mencionada entrevista ao Vatican News, referindo as mulheres que Francisco indicou para o seu ministério (o Dicastério que escolhe os bispos, fazendo dele, nas palavras do Libération, o "super diretor de recursos humanos do episcopado mundial”). “Elas oferecem um contributo real, importante, nas nossas reuniões, quando discutimos os dossiers dos candidatos.” 

No entanto, no mesmo ano (2023), terá dito, segundo o NYT, que “clericalizar mulheres” não resolveria os problemas da igreja e poderia até criar novos, mesmo se há quem garanta que nunca fechou essa porta, considerando apenas “não ser ainda o momento”.

Não é pois fácil perceber o que Leão XIV pensa de facto sobre o papel das mulheres na Igreja Católica, como não foi fácil, até ao fim, percebê-lo no que a Francisco disse respeito. Há, como no caso do anterior papa, sinais contraditórios — sendo que o atual pontífice parece, de acordo com o que dizem dele, bem mais cuidadoso nas palavras e gestos que o seu antecessor.

Mas, como ao seu antecessor, conhecem-se-lhe pronunciamentos adversos às uniões homossexuais (enquanto cardeal argentino, Francisco opôs-se duramente à legalização do casamento das pessoas do mesmo sexo e chegou mesmo a certificar que se tratava de um triunfo do demónio): diz o NYT que em 2012 Prevost se referiu ao “estilo de vida homossexual” e às “famílias alternativas compostas de casais do mesmo sexo e seus filhos adoptados” como “crenças e práticas contrárias aos Evangelhos”.  

E, como no caso de Francisco, é alvo de acusações de “olhar para o outro lado” no que respeita aos abusos sexuais de menores na Igreja Católica. Uma dessas acusações diz respeito ao tempo em que, enquanto alto responsável dos agostinianos na zona de Chicago no início do século XXI, terá permitido a um sacerdote que teria abusado sexualmente de menores viver numa reitoria muito perto de uma escola católica. E no Peru foi em 2022 acusado de, como bispo, não ter aberto uma investigação contra dois padres também acusados de abuso — facto negado pela sua diocese.  

Como no caso de Francisco, que foi em muitos aspetos surpreendente, é preciso esperar para ver que tipo de leão é Prevost.

Leão XIV no seu primeiro aceno à multidão e ao mundo: "O mal não prevalecerá".
Robert Prevost. Uma escolha “surpreendente e reveladora”
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