Trump contra Harvard. “É surreal. A medida leva-nos a tempos em que se tentou encarcerar o pensamento”
Mário Centeno sublinha o étimo latino da palavra para lembrar que universidade significa também universalidade, o todo, a comunidade em que se cresce e aprende. “Sempre que se coloca em causa a independência da universidade, penso nessa origem”, diz o governador do Banco de Portugal ao DN, relevando “o caráter livre” destas instituições. “As universidades são de todos e devem receber a todos”. E entraves ao seu desenvolvimento “são entraves ao futuro”.
Mário Centeno, titular de um cargo que extravasa o âmbito nacional, prefere “entrave” a “ataque”. Mas é de um ataque se trata, a mais recente diretiva do governo federal norte-americano dirigida a Harvard, a mais antiga universidade dos EUA. Também a mais conceituada do planeta e a primeira a resistir às tentativas censórias da Casa Branca em relação à liberdade de pensamento: depois de reduzir as subvenções federais à instituição em 2,6 mil milhões de dólares (2,3 mil milhões de euros), obrigando a universidade a autofinanciar uma parte significativa das suas extensas atividades de investigação e a intentar judicialmente contra o governo federal tentando travar o congelamento das verbas, Trump retira a Harvard o direito de admissão de estudantes estrangeiros. Se a medida não for revertida – neste momento, encontra-se bloqueada por decisão de uma juíza de um tribunal federal de Boston -, então portugueses e outros cidadãos não norte-americanos deixam de poder estudar em Harvard.
Segundo o ‘site’ na Internet, a universidade acolhe este ano cerca de 6.700 “estudantes internacionais”, o que corresponde a 27% do total anual de alunos. A maioria destes estudantes está a frequentar estudos de pós-graduação e provém de mais de 100 países diferentes.
De 1995 a 2000, Mário Centeno foi um dos estrangeiros de Harvard, onde fez o doutoramento em Economia. Conhece a casa. “Fica-me muito difícil falar de uma medida desta natureza. Há 140 nacionalidades em Harvard. Na minha classe éramos 40 alunos, representando 30 nacionalidades dos quatro cantos do mundo. Europa, Ásia, África. E essa era a expressão máxima desta característica universalista. O conhecimento não existe se não for livre”.
As consequências de uma medida destas “serão nefastas”, diz o economista, citando um outro ex-aluno, o advogado e antigo presidente da universidade Derek Bok: se acha que a educação é cara, tente a ignorância. “Muitas das pessoas que procuram Harvard ficam a trabalhar nos Estados Unidos, contribuindo para o conhecimento no país. É uma situação surreal”. Mário Centeno revisita a história. “A humanidade já assistiu a muitos livros queimados. Estas dificuldades que agora são colocadas a Harvard são semelhantes às que enfrentámos sempre que se tentou encarcerar o pensamento”.
“Trump quer fazer de Harvard um exemplo”
O Despacho de 22 de maio de 2025 de Descertificação do Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio de Harvard é, para Margarida Mano, “um ataque explícito à liberdade de expressão e à liberdade académica, colocando em causa a própria independência das Universidades”.
E sendo a liberdade académica “um princípio fundamental da Universidade traduzido na autonomia da investigação, na liberdade de investigar e explorar conhecimento novo; na liberdade no ensino, no direito de escolher os conteúdos e métodos de ensino sem outras restrições que não académicas e éticas, enfim, num ambiente de liberdade de expressão de opiniões e ideias, mesmo que sejam controversas ou desafiem o status quo", estamos perante “um despacho assustador não só do ponto de vista dos princípios da sociedade, mas também dos princípios e dos processos de um Estado de Direito”.
Para a vice-reitora da Universidade Católica Portuguesa (UCP), “a ideia de que receber estudantes internacionais é dar-lhes um privilégio especial é aberrante”, na medida em que “a educação e a mobilidade não podem ser um privilégio em sociedades desenvolvidas”. A professora continua: “ Não o era há milénios, na Europa, no Norte de Africa, na Ásia, e não pode ser hoje num mundo global, onde muitos dos países que se dizem fortes retiram a sua força da globalização”. Concluindo: “É impossível fazer o conhecimento avançar fechado em si próprio.”
De um modo informal, quase fake, “o despacho promove a denúncia e perseguição de estrangeiros, não "imigrantes" laborais, incluindo registos áudio e vídeo, fazendo recordar o pior das perseguições políticas do último século”, diz Mano, que chegou a ser nomeada ministra da Educação e da Ciência para o governo de Passos Coelho que não chegou a entrar em funções, em 2015.
O que acontecerá às universidades portuguesas, e europeias em geral, se esta situação se consolidar nos EUA? “Podemos naturalmente, levantar apenas um pouco a cabeça e ver um impacto positivo, que já se tem vindo a sentir nos últimos meses, em concreto também na UCP, de fuga de cérebros americanos que procuram nas universidades portuguesas as condições de desenvolvimento da ciência que deixaram de ter nos EUA. Portugal pode e deve aproveitar esse momento para criar condições de atração e retenção de mestres e cientistas que nos permitam dar saltos qualitativos em áreas de conhecimento que nos são caras”, responde a vice-reitora, porém sem ilusões. “ Se levantarmos bem a cabeça veremos um horizonte onde o mundo não ganhará com a consolidação deste tipo de políticas nos EUA”.
Se há uma ideia final a sublinhar, neste contexto, Mano releva esta: “ É uma constante política de intimidação da Administração Trump. Make Harvard an example. Fazer de Harvard um exemplo parece ser o lema. E a importância do exemplo de Harvard é global."
“ Trump nunca entraria em Harvard”
Carlos Fiolhais lista os presidentes americanos. “John Adams, John Kennedy, Franklin Roosevelt, George W. Bush e Barack Obama têm em comum o facto de terem estudado em Harvard. Trump tem um mero bacharelato em economia feito na Pensilvânia porque nunca teria conseguido entrar em Harvard”, constata, considerando o despacho “um ataque sem precedentes a Harvard, tentando retirar-lhe todos os seus estudantes estrangeiros, vindos dos quatro cantos do mundo”.
Mas o cientista está confiante. “A universidade vai resistir e já iniciou um processo num tribunal de Boston contestando a ordem presidencial por manifesta ilegalidade. Se os EUA forem um Estado de direito, ganhará a força da razão contra a razão da força”.
Para Fiolhais, a luta de Harvard é bem mais do que uma luta pela legalidade. “É uma luta em defesa da inteligência e contra a estupidez”. Invocando os fantasmas do antissemitismo e do marxismo, Trump “está simplesmente numa cruzada anti intelectual”. Fiolhais continua: “Ao pretender matar à fome a melhor universidade do mundo está a desprezar o valor do intelecto, do saber, da ciência. Como eu e David Marçal dissemos no nosso livro «A Ciência e os seus inimigos», Trump não passa de um ignorante. Não é ainda um ditador, por estar num Estado de direito, embora queira sê-lo. Não sabe, nem quer saber, de coisa nenhuma que não seja ele próprio”.
Para o professor universitário e ensaísta português, “ou a Europa, incluindo Portugal, escolhe decididamente o lado do saber, pondo-se ao lado de Harvard, ou estará condenada. Como condenado está Trump. As suas ocasionais vitórias serão só de Pirro”.