A Frente de Mulheres de Fé foi uma das organizações que se manifestou contrária ao projeto.
A Frente de Mulheres de Fé foi uma das organizações que se manifestou contrária ao projeto.NELSON ALMEIDA / AFP

Sociedade brasileira bloqueia projeto “bárbaro” antiaborto

Deputado bolsonarista evangélico queria que vítimas de abuso sexual que interrompessem a gravidez tivessem pena superior à do violador. Nas redes e nas ruas, manifestações obrigaram-no a recuar.
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Me deixem nascer, por favor, eu imploro”, gritou a atriz que interpretou o papel de um feto no Senado, a câmara alta do Congresso do Brasil. A encenação, alvo de críticas e piadas na internet, foi a última ofensiva da bancada parlamentar evangélica para aprovar um projeto que prevê que uma vítima de abuso sexual que opte pelo aborto além do teto de 22 semanas sofra prisão de seis a 20 anos. A pena seria superior à de um violador, que é de seis a 10 anos. Como a sociedade civil se mobilizou, o projeto, considerado urgente pelos conservadores, em larga maioria no Congresso, mas chamado de “barbárie” nas ruas e nas redes, foi, para já, engavetado.   

Nessa mobilização da sociedade civil, a esquerda - e não só - conseguiu inverter o debate e furar a “bolha”, ao concentrar-se na questão da dosimetria das penas da adolescente abusada e do violador e não apenas nos argumentos habituais da saúde pública e da liberdade da mulher. Maria Hermínia Tavares, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planeamento, congratulou-se, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, com a reação.

“A sociedade recorreu a todos os instrumentos disponíveis: manifestações de rua, artigos na imprensa, entrevistas e debates nas TVs, tudo rapidamente traduzido para o dialeto das redes sociais. Passados meros três dias da aprovação do pedido de urgência, pesquisa do instituto Quaest evidenciou que as manifestações nas redes eram amplamente contrárias ao que já se tornara conhecido como “projeto de lei do estuprador”, escreveu.
“Vigorosa, a sociedade impôs a primeira derrota de vulto à extrema-direita ali onde ela se sente mais à vontade para semear a intolerância religiosa e o desrespeito a visões diferentes das suas sobre vida privada e formas de ser das famílias”, concluiu. 

Constituída por bispas, pastoras, diáconas, missionárias, catequistas, religiosas consagradas e lideranças comunitárias cristãs, a Frente de Mulheres de Fé foi uma das organizações que se manifestou contrária ao projeto. “Exigimos o arquivamento do projeto de lei do Estupro e do Estuprador em nome das 252.786 meninas-crianças, que foram forçadas a dar à luz entre 2010 e 2019 por terem sido abusadas por seus pais, padrastos, tios, sacerdotes, pastores, padres, missionários, primos, vizinhos, avôs, irmãos”.

Chamado online de líder da “bancada do estupro”, o autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante, viu-se obrigado a recuar. “O projeto pode ser amadurecido, enfrentar os violadores com penas maiores, estamos dispostos a fazer ajustes no texto, nunca vi um projeto de lei entrar na Câmara e sair no Senado igual a como entrou”, disse na última quarta-feira. Cavalcante é deputado do PL, o partido de Jair Bolsonaro, e considerado o representante na Câmara dos Deputados do televangelista Silas Malafaia, fervoroso apoiante do ex-presidente.

Mas uma semana antes, quando Arthur Lira, o presidente da Câmara, aprovou o projeto de Cavalcante com caráter de urgência, para tentar ganhar a aprovação dos evangélicos na eleição para a chefia da casa no próximo ano, o deputado acreditava que estava a garantir uma vitória política sobre o presidente Lula da Silva. “Será um bom teste para o Lula provar aos evangélicos se o que ele assinou na carta era verdade ou mentira”, disse Cavalcante, referindo-se a um documento de 2022 do então candidato presidencial endereçado aos líderes protestantes do Brasil em que dizia ter compromisso “com a vida plena em todas as suas fases”.

“O cidadão [Sóstenes Cavalcante] diz que fez um projeto para me testar”, respondeu Lula, em entrevista à rádio CBN, dia 18. “Eu quero ver se uma filha dele fosse violada, como é que ele ia se comportar (...) Quem está abortando na verdade são meninas de 12, 13, 14 anos. É crime hediondo um cidadão estuprar uma menina de 10, 12 anos e depois querer que ela tenha um filho. Um filho de um monstro”.

O pastor Henrique Vieira, deputado evangélico do partido de esquerda PSOL, também atacou Cavalcante: “Deixe-me ver se compreendi corretamente: parlamentares da bancada evangélica vão apostar a vida de mulheres e meninas vítimas de estupro para ‘testar o presidente da República’?”. “O fundamentalismo religioso está usando o ‘nome de Deus’ para fazer um tipo hediondo de populismo que, no fundo e no fim, profana a dignidade humana e a sacralidade da vida de cada brasileira neste país”, continuou no canal GloboNews. E rematou: “A fé, a espiritualidade e os afetos religiosos do povo não podem continuar sendo usados como componentes de uma máquina de morte e criminalização da vida das mulheres e meninas deste país”.

No Brasil, o aborto é autorizado por lei desde 1940 em casos de gravidez decorrente de violação e risco à vida da gestante, bastando para isso o consentimento dela ou de seu responsável legal, até 22 semanas. E, desde 2012, por entendimento do Supremo Tribunal Federal, também é permitido em casos de anencefalia do feto - má-formação congénita incompatível com a vida fora do útero e caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo.

As penas para gestantes que abortem além dessas condições variam de um a três anos de reclusão. No caso dos que participam do aborto, quem ajudar a gestante com o consentimento dela está sujeito a pena de um a quatro anos de reclusão. As penas são maiores - até 20 anos - em casos não consensuais ou que tenham como consequência lesões graves ou a morte da gestante.

Porém, a questão do aborto no Brasil vem sofrendo com avanços e recuos ao longo da história. Ainda em 2020, por exemplo, Damares Alves, então ministra da Mulher na gestão de Bolsonaro, agiu para impedir que uma criança de 10 anos fosse submetida ao procedimento.

Entretanto, segundo dados do jornal Folha de S. Paulo, em 2022, só a clínica privada Musa, de Rosario, na Argentina, país onde a interrupção da gravidez é, desde 2021, assegurada por lei até às 14 semanas, sem necessidade de justificar os motivos, recebeu 1140 mulheres para realizar o aborto seguro, das quais 301 eram brasileiras, o que faz delas quase 90% das estrangeiras que procuram a clínica.

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