Será que a China se prepara para reconhecer um governo talibã?

Insurgentes continuam a aproximar-se de Cabul, à medida que avança a retirada do pessoal diplomático ocidental. Presidente diz que não deixará que a guerra cause mais mortes.
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Quando no final da década de 1990 os talibãs detinham o poder, o Afeganistão era praticamente um Estado pária, contando com o apoio apenas do Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Agora, numa altura em que os insurgentes continuam a conquistar terreno e se aproximam de Cabul, a história poderá ser diferente se acabarem por derrubar o atual governo afegão. E a China, apesar dos desafios que isso representa, poderá estar na linha da frente do apoio.

Segundo a Reuters, a "máquina de propaganda" de Pequim tem vindo "calmamente a preparar" os chineses "para que aceitem o cenário cada vez mais provável" de o governo chinês "ter que reconhecer os talibãs" como um "governo legítimo". Isto depois de, a 28 de julho, o chefe da diplomacia da China, Wang Yi, ter recebido, em Tianjin, uma delegação dos talibãs que incluía o seu líder político, o mullah Abdul Ghani Baradar. O cofundador dos talibãs, que terá sido um dos mais próximos comandantes do falecido líder mullah Omar e esteve detido entre 2010 e 2018, é parte da equipa que tentou negociar um acordo político com o governo afegão em Doha.

"Estar lado a lado com o chefe da diplomacia chinesa cria a impressão de que uma grande potência mundial apoiou o grupo politicamente e que o seu objetivo final é depor o governo afegão", disse Nishank Motwani, um especialista em temas afegãos da ATR Consulting, ao South China Morning Post. Na sua opinião, os talibãs acreditaram com esse encontro ter maior legitimidade para avançar militarmente, mesmo não tendo recebido qualquer indicação concreta nesse sentido, devendo seguir o exemplo do Paquistão nas relações com a China, que passa por ignorar "a perseguição em massa aos uigures" (minoria muçulmana) na província de Xinjiang.

No encontro com os talibãs, Wang Yi disse que a retirada das tropas norte-americanas e da NATO revelava "o falhanço das políticas da América" e que Pequim esperava "desempenhar um papel importante no processo de reconciliação pacífica e reconstrução no Afeganistão". Além disso, disse esperar que os talibãs não apoiem o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, que considera uma "ameaça direta à segurança nacional da China". Pequim não pode também esquecer o potencial que pode existir de apoio a extremistas islâmicos que alimentem um movimento separatista em Xinjiang - que faz fronteira (são cerca de 70 quilómetros) com o Afeganistão.

O facto de o país vizinho poder tornar-se num porto de abrigo para os terroristas é uma ameaça para a China, cujos interesses económicos e políticos na região são agora maiores. O embaixador afegão em Pequim, Javid Ahmad Qaem, tem procurado alertar para o risco das falsas promessas dos talibãs em relação a este tema.

Ao contrário dos EUA ou da Rússia, a China nunca esteve em guerra com os talibãs. Quando estes chegaram ao poder, em 1996 (seriam afastados pela invasão norte-americana após os atentados do 11 de Setembro de 2001), já a China tinha evacuado a sua embaixada. Foi em 1993, quatro anos após a União Soviética ter retirado as suas próprias tropas do país e um ano após a queda do governo comunista. Nos últimos anos, apesar de manter relações com o governo afegão, Pequim tem também desenvolvido esforços de aproximação aos talibãs. Após o encontro de 28 de julho, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, chegou a dizer que o interesse da China podia ser "positivo".

Mas um eventual reconhecimento da China a um governo talibã poderá dar-lhes o apoio de um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Ou pelo menos travar qualquer resolução, devido ao direito de veto. Na prática, a China mantém uma política de não-interferência nos assuntos internos de outros países.

No dia em que os talibãs conquistaram mais duas capitais provinciais (controlam já 20 de 34) e em que os EUA e outros países ocidentais aceleram a retirada do seu pessoal diplomático e aliados afegãos, o presidente Ashraf Ghani quebrou o silêncio. "Não vou deixar que a guerra imposta ao povo cause mais mortes", disse, numa declaração televisiva, alegando ser uma "missão histórica" travar a violência.

Ghani não fez contudo qualquer menção a uma possível demissão, alegando que está a desenvolver contactos políticos que visam a paz - a ideia será nomear uma delegação com poder para negociar com os talibãs. Entretanto, o presidente defendeu "a remobilização das forças de segurança e defesa" como "prioridade máxima".

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