Evan Gershkovich (esq.), Paul Whelan e Aslu Kurmasheva (dir.) no avião de regresso a casa.
Evan Gershkovich (esq.), Paul Whelan e Aslu Kurmasheva (dir.) no avião de regresso a casa.GOVERNO DOS EUA/AFP

Seis meses depois e sem Navalny, conclui-se a maior troca de prisioneiros desde a Guerra Fria

Da Rússia foram libertados ativistas e jornalistas, para Moscovo foram espiões e um agente condenado por assassínio. Uma iniciativa há muito tratada nos bastidores e que tinha Navalny como uma das peças centrais.
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O presidente norte-americano, Joe Biden, recebeu na Casa Branca familiares dos prisioneiros que estavam a ser libertados, o líder russo Vladimir Putin foi acolher à pista do aeroporto, de tapete vermelho, os oito russos libertados em vários países na maior troca de prisioneiros desde a Guerra Fria. Uma operação que já estava a ser negociada há meses e que foi atrasada pela morte de Alexei Navalny. 

“Esta é a mesma troca em que, como esperávamos, Alexei Navalny deveria ser libertado em fevereiro deste ano. Mas Putin decidiu ‘virar o tabuleiro’, decidiu que nunca deixaria Navalny ir. E matou-o alguns dias antes de a troca poder ter lugar”, escreveu nas redes sociais Leonid Volkov, aliado de Navalny exilado na Lituânia. O arqui-inimigo de Putin morreu numa prisão no Ártico, onde cumpria uma pena de mais de 20 anos. Segundo os serviços prisionais, Navalny sentiu-se mal depois de dar um passeio e morreu de súbito. Após a sua morte, foi noticiado que as negociações para a sua libertação estavam a dias de se concluir. “Hoje regozijamo-nos com a libertação dos presos políticos, reféns de Putin, que sofreram no gulag de Putin”, disse. “A ‘troca de Navalny’ finalmente aconteceu. Mas sem Navalny. Isso é muito doloroso”, disse Volkov, que sobreviveu a um ataque com um martelo semanas depois da morte de Navalny.

A administração Biden confirmou que estava a trabalhar numa troca que teria incluído a libertação do líder da oposição russa, disse o conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Jake Sullivan. “Na verdade, no mesmo dia em que ele morreu, vi os pais de Evan [Gershkovich] e disse-lhes que o presidente estava determinado a fazer isso, mesmo à luz daquela notícia trágica, e que íamos trabalhar, dia e noite, para conseguir”, disse Sullivan.

Segundo um alto funcionário em declarações aos jornalistas, Biden assegurou o acordo em 21 de julho, o mesmo dia em que anunciou que já não se candidataria às eleições de novembro. “Não estou a inventar isto: uma hora antes de fazer a declaração, estava ao telefone com o seu homólogo esloveno, pedindo-lhes que fizessem os últimos preparativos para concluir o acordo”, disse o funcionário.

No total foram libertadas 24 pessoas: 15 estavam presas na Rússia e uma na Bielorrússia, tendo 12 delas tido como destino a Alemanha e quatro os EUA; em sentido oposto, três russos foram libertados dos EUA, dois da Eslovénia, um da Alemanha, um da Noruega e um da Polónia, numa ação concertada com os respetivos governos e tendo a Turquia como ponto para a troca. Em comunicado, os serviços secretos turcos (MIT) reivindicaram o seu papel de coordenação da troca de prisioneiros entre a Rússia e o Ocidente, envolvendo transferências em sete aviões. A presidência turca - que tem estado envolvida numa acesa troca de advertências com Israel - também fez saber que Joe Biden ligou a Recep Erdogan para agradecer os seus esforços.

Na realidade, o presidente norte-americano agradeceu a todos os líderes envolvidos. “Isto não teria sido possível sem os nossos aliados Alemanha, Polónia, Eslovénia, Noruega e Turquia. Estiveram connosco e tomaram decisões ousadas e corajosas, libertando prisioneiros detidos nos seus países.” Biden aproveitou para realçar a importância das relações internacionais, mostrando o contraste com o candidato republicano. “Para qualquer pessoa que questione se os aliados são importantes, hoje é um exemplo poderoso de por que é vital ter amigos neste mundo. As nossas alianças tornam o nosso povo mais seguro, e começámos a ver isso novamente.” 

Já o ex-presidente Donald Trump criticou o acordo dos EUA, tendo afirmado que é um mau precedente. “Resgatei muitos reféns e não dei nada ao país adversário, e nunca dinheiro. Fazer isso é um mau precedente para o futuro. É assim que deve ser, ou esta situação vai piorar cada vez mais. Estão a extorquir os Estados Unidos da América”, escreveu Trump na sua rede social Truth Social. 

Quem também se mostrou pouco agradado com o acordo foi o ex-presidente russo Dmitri Medvedev. Disse que gostaria de ver “os traidores da Rússia apodrecerem na prisão ou morrerem na prisão”, mas reconheceu que às vezes é mais benéfico “libertar” quem trabalhou para o país. Além do agente que matou um checheno em Berlim, os restantes russos são espiões, um hacker e um empresário com ligações ao Kremlin. “Que os traidores escolham agora febrilmente novos nomes e se disfarcem ativamente no programa de proteção de testemunhas”, acrescentou Medvedev.

Libertados

Vladimir Kara-Murza. NATALIA KOLESNIKOVA/AFP

Entre os 24 libertados, destaque para os seguintes:

Vladimir Kara-Murza
Herdeiro político de Boris Nemtsov, sobrevivente de dois envenenamentos, este ativista de 42 anos escolheu regressar à Rússia (como Alexei Navalny) e afrontar o poder. Por criticar a “operação militar especial” de Putin na Ucrânia foi condenado a 25 anos de prisão. Apesar de preso e de saúde débil continuou a escrever para o The Washington Post. 

Evan Gershkovich
Correspondente em Moscovo do The Wall Street Journal, o jornalista norte-americano de 32 anos foi acusado de espionagem no ano passado e condenado a 16 anos de prisão há dias. Os procuradores acusaram-no de “recolher informações secretas” sobre uma fábrica militar na região de Ekaterimburgo. A Casa Branca garantiu em junho que o repórter não é espião.

Paul Whelan
Detido em 2018 quando foi assistir a um casamento à Rússia, este antigo marine e consultor de segurança foi condenado em 2020 a 16 anos de trabalhos forçados por espionagem - Moscovo diz que foi recolher uma pen com informações. Whelan, que detém quatro nacionalidades, alega ter sido enganado e diz-se inocente.

Lilia Chanysheva
Trabalhou em consultoras internacionais em Moscovo antes de decidir regressar à sua região de origem, o Bascortostão (entre o Volga e os Urais) para liderar o escritório local da Fundação Anticorrupção de Alexei Navalny. Chanysheva, de 42 anos, foi presa e condenada por extremismo. Cumpria nove anos e meio de pena.

Alsu Kurmasheva
Diretora da Radio Free Europe/Radio Liberty (financiada pelos EUA e que emite para a Europa de Leste e Ásia Central), a jornalista russa-norte-americana de 47 anos vivia em Praga, mas foi presa em solo russo ao visitar a mãe, no ano passado. No dia 19 de julho foi condenada a seis anos e meio de prisão por disseminar "falsas informações" sobre o exército russo -- no mesmo dia em que o jornalista Gershkovich foi sentenciado. Esta coincidência levou alguns observadores a suspeitar de que um acordo de troca de prisioneiros podia estar iminente. 

Oleg Orlov
Dissidente soviético e copresidente da associação de direitos humanos Memorial - fundada em 1987 por Andrei Sakharov e encerrada pelo regime em 2021, sendo no ano seguinte distinguida com o Nobel da Paz -, Orlov, de 71 anos, foi preso por “desacreditar as forças armadas” e condenado a dois anos e meio de prisão.

Vadim Krasikov
Agente russo de 58 anos, foi condenado em 2021 a pena de prisão perpétua por um tribunal alemão pelo homicídio de Zelimkhan Khangoshvili, que tinha combatido as tropas russas na Chechénia e na Geórgia. Krasikov ficou conhecido como o assassino do parque Tiergarten, local onde, de bicicleta, se aproximou da vítima e disparou três vezes.

cesar.avo@dn.pt 

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