Segurança e despique entre Macron e Mélenchon marcam campanha
A taxa de abstenção e as particularidades de cada uma das 577 eleições em tantos outros círculos eleitorais, sete semanas depois da segunda volta das eleições presidenciais, tornam quase impossível a divinação sobre os resultados das legislativas que se disputam em França hoje e dia 19. Os temas e os protagonistas foram herdados, em larga escala, do escrutínio que confirmou Emmanuel Macron no Palácio do Eliseu por mais cinco anos. Até o presidente acabou por fazer parte integrante de uma campanha que nos últimos dias foi dominada pelas falhas e abusos das forças policiais.
O tom entre as forças da atual maioria parlamentar (Renascimento, ex-República em Marcha, que concorre em aliança com outras pequenas formações sob o nome Ensemble) e a coligação Nova União Popular Ecológica e Social (Nupes) azedou nos últimos dias e é disso exemplo a tentativa do ministro do Interior Gérald Darmanin de impedir que os resultados da aliança das esquerdas fossem contabilizados juntos, ao contrário, por exemplo, da Ensemble. O Conselho de Estado, a mais alta instância jurídica administrativa, acabou por dar razão à Nupes, levando o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, a cantar vitória e a denunciar as "manigâncias" de Darmanin e de Macron.
O Ministério do Interior tem estado sob fogo desde o início da campanha. Primeiro com o fiasco da final da Liga dos Campeões de futebol, mais tarde com o caso de uma mulher baleada mortalmente pela polícia depois de o condutor do veículo em que seguia não ter parado numa operação de controlo. Darmanin arrisca-se a ser o elemento tóxico do governo remodelado há menos de um mês e agora chefiado por Élizabeth Borne. A forma como as forças policiais agiram no exterior do Stade de France, na final entre Liverpool e Real Madrid, atacando adeptos ingleses, crianças incluídas, com gás lacrimogéneo, e fazendo vista grossa aos bandos criminosos que assaltaram ingleses e espanhóis, foi um "fracasso", como reconheceu o chefe da polícia de Paris, Didier Lallement. Mas essa admissão surgiu quase duas semanas depois e em resultado da indignação do outro lado do canal da Mancha. Sentimento que foi inflamado com as acusações do ministro do Interior. Segundo Darmanin, a responsabilidade dos acontecimentos deveu-se aos adeptos dos red devils, que compareceram em até 40 mil a mais sem bilhete ou com falsificações, fruto de uma "fraude organizada, industrial e monumental".
Para agravar a situação, a Federação Francesa de Futebol revelou que as imagens de videovigilância foram entretanto apagadas. Além da imagem de impreparação dos organizadores, a polícia voltou a mostrar que o seu modo de funcionamento passa pelo uso de força excessiva, quando não brutalidade. Que o digam os coletes amarelos, quando as suas manifestações foram reprimidas com balas de borracha que deixaram entre 15 e 30 (consoante as fontes) sem uma vista. Resultado: Darmanin foi retratado numa manchete do Libération como um Pinóquio e 76% dos franceses não acreditaram nas declarações do ministro, segundo uma sondagem publicada no Le Figaro.
Para agravar a situação, uma semana depois da final de futebol, três agentes da polícia dispararam nove tiros em direção a um carro cujo condutor, sem carta e com cadastro, terá recusado parar, no centro de Paris. A ocupante do lugar do passageiro morreu, tendo este acontecimento desencadeado mais uma frente de debate e de acusações políticas. "A polícia mata e o grupo faccioso [sindicato da polícia] Alliance justifica o tiroteio e a morte por "recusa de obediência". Onde está a vergonha?", reagiu Mélenchon no Twitter. O candidato a primeiro-ministro disse que é o quarto caso similar em tantos outros meses e prometeu mudanças nas forças de segurança.
Macron respondeu com uma visita a uma nova brigada da gendarmaria para mostrar a sua rejeição a quem "insulta" as forças da ordem. Esquecendo o dever de reserva a que o presidente deve obedecer, Macron pediu uma "maioria forte e estável", criticou os extremos que "propõem acrescentar crise à crise, voltando atrás nas grandes escolhas históricas" e criticou as propostas de Mélenchon.
O ex-trotskista não perdeu a oportunidade de entrar em diálogo com o presidente, denunciando o "visível nervosismo" de Macron por este se ter envolvido na campanha, depois de o ministro Bruno Le Maire o ter apelidado de "Chávez francês". Desde a derrota nas eleições presidenciais, Jean-Luc Mélenchon tem vindo a repetir que é possível uma vitória da Nupes nas eleições legislativas, o que se traduziria numa coabitação. Na semana passada, Macron mostrou-se pouco entusiasmado em designar Mélenchon, ainda que a Nupes venha a ter mais deputados, ao afirmar que "o presidente escolhe a pessoa que nomeia como primeiro-ministro, olhando para o parlamento. Nenhum partido político pode impor um nome ao presidente".
Para o líder da França Insubmissa, o presidente "escolherá o chefe do governo na Nupes", se esta tiver uma maioria, "como é feito em todos os países democráticos do mundo". Na realidade, o chefe de Estado não é obrigado a nomear o líder do partido ou coligação com maior representação na nova assembleia. Mas se escolher outra pessoa arrisca-se a sofrer uma moção de censura. A outra opção é dissolver a assembleia e convocar novas eleições.
Só com maioria parlamentar é que Macron verá avançar a sua agenda de redução de impostos, reforma da segurança social e aumento da idade da reforma, o oposto do sentido que Mélenchon propõe: baixar a idade da reforma para os 60 anos, introduzir impostos sobre a riqueza nas empresas e nos trabalhadores com salários elevados, e aumentar o salário mínimo em 15%. Do seu lado estão mais de 170 economistas, entre os quais Thomas Piketty. Num texto no Journal du Dimanche, as personalidades acolhem a alternativa ao neoliberalismo "face à precariedade endémica, à guerra e à transição ecológica".
Com as sondagens a indicarem uma liderança, ainda que simbólica, à Ensemble (28% contra 27% da Nupes), o diretor-delegado da empresa de sondagens Ipsos alerta para a "fragilidade" das projeções, tendo em conta as transferências de votos da primeira para a segunda volta.
Com 6293 candidatos em 577 círculos eleitorais são muitas as curiosidades entre os pretendentes a deputados. No sudoeste, no departamento do Lot, se o secretário-geral d"Os Republicanos Aurélien Pradé fez campanha num Renault 4L, os adversários à esquerda responderam na mesma moeda clássica: pelo PS, Rémi Branco conduziu uma furgoneta Citroën H - modelo que, em Portugal, serviu de biblioteca itinerante ao serviço da Gulbenkian -, e pela coligação das esquerdas Nupes Elsa Bougeard dirigiu um Citroën 2CV. Branco é um dos 63 socialistas que se rebelaram contra a coligação. Já no Renascimento de Macron há 87 dissidentes que concorrem contra um candidato da coligação Ensemble, tendo sido expulsos em consequência. Foi o caso da 9.ª circunscrição (representante do Magrebe e África ocidental), onde Élisabeth Moreno, ministra da Igualdade até à remodelação, arrisca não ser eleita após notícias de que a sua filha vai ser julgada por tráfico de droga. No norte, em Lille, o deputado da França Insubmissa Adrien Quatennens fez do comício um espetáculo musical com o próprio a cantar e tocar guitarra e bateria num grupo com outros militantes do partido, Les InSousols.
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