Igreja de São José, em Pequim. Foi fundada no século XVII por dois jesuítas, um deles português. Foi reconstruída no século XX.
Igreja de São José, em Pequim. Foi fundada no século XVII por dois jesuítas, um deles português. Foi reconstruída no século XX.

China, o grande desafio geopolítico para a Igreja Católica

Francisco conseguiu acordo com Pequim para a nomeação de bispos, renovado em 2024 por quatro anos, o que dá tempo a Leão XIV para definir a sua própria estratégia chinesa.
Publicado a
Atualizado a

“Francisco tinha essa mágoa de não ir à China. Sonhava com o Japão e com a China desde jovem. Acabou por não poder ir para as missões porque teve a operação aos pulmões. Mas era jesuíta e sonhou sempre com o Extremo-Oriente. Até porque há uma tradição. De facto, os jesuítas andaram por lá. O próprio Francisco Xavier olhou para a China. Houve sempre contactos, inclusive de missionários portugueses”, diz o padre e ensaísta Anselmo Borges, que destaca no legado do papa argentino o acordo de 2018 com a República Popular da China, sobre a nomeação de bispos.

O acordo foi negociado pelo cardeal Pietro Parolin, o secretário de Estado do Vaticano, e que depois de renovado em 2020 e 2022 por dois anos, foi em 2024 renovado por quatro anos. Isso dá ao novo papa tempo para definir a relação com a China, oficialmente não existente. Veremos o que o cardeal Robert Prevost, agora Leão XIV, pensa fazer, mas Luís Tomé pensa que o facto de o papa ser dos Estados Unidos não vai trazer complicações extra, até por este ter outras prioridades. “Creio que vem para balancear Trump e os trumpianos. Será um papa que vai defender os imigrantes e os refugiados, o clima, a paz, equilibrar os evangélicos e moderar católicos como o vice-presidente JD Vance”, afirma o diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa.

“Creio que vem para balancear Trump e os trumpianos. Será um papa que vai defender os imigrantes e os refugiados, o clima, a paz, equilibrar os evangélicos e moderar católicos como o vice-presidente JD Vance.”

Luís Tomé, diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa

O ministério chinês dos Negócios Estrangeiros não demorou a felicitar Leão XIV, tal como apresentou as condolências aquando da morte de Francisco. E se Xi Jinping não ter estado no funeral papal não dá azo a interpretações (a tal ausência de relações diplomáticas), já Taiwan ter sido representada pelo antigo vice-presidente Chen Chien-jee, um católico, e não pelo presidente Lai Ching-te, foi notado. Tanto no funeral de João Paulo II como na primeira missa de Francisco, os então presidentes taiwaneses compareceram. A dúvida é se Lai assistirá à primeira missa pública de Leão XIV, no dia 18. A Santa Sé continua a ter laços diplomáticos com Taiwan, que Pequim considera desde 1949 ser uma província rebelde. E o triângulo Vaticano-China-Taiwan é tão complicado que ninguém se atreve a fazer previsões, até porque a ilha (que formalmente se chama República da China) está no centro das tensões geopolíticas entre a China e os Estados Unidos.

“Apesar da aproximação entre o Vaticano e Pequim durante o pontificado do papa Francisco, o futuro dependerá da evolução de duas questões cruciais: a Santa Sé é um dos 12 Estados do mundo e o único europeu que reconhece a soberania de Taiwan, pelo que Pequim continuará a pressionar o Vaticano para trocar a sua posição diplomática e considerar Taiwan parte integrante da República Popular da China; e Pequim continua a nomear bispos católicos, daí resultando a divisão entre uma igreja sancionada pelo regime e uma ‘igreja clandestina’ fiel à Santa Sé, pelo que o Vaticano continuará a tentar que todos os bispos estejam em plena comunhão hierárquica com o Papa”, sublinha Luís Tomé.

Já para Luís Cunha, autor de Taiwan - Paz e Guerra, “o Vaticano deverá prosseguir os esforços de aproximação à China. O papa dará continuidade ao acordo assinado com Pequim em 2018, numa tentativa de conciliação entre a Igreja oficial, controlada pelo PC Chinês, e a Igreja clandestina, fiel ao Vaticano. No entanto, o regime comunista continua a reprimir os cristãos. Recorde-se que a Santa Sé reconhece Taiwan, que tem em Roma a sua única embaixada na Europa. O eventual reconhecimento da República Popular da China teria implicações graves não só para o governo de Taiwan, mas para os cristãos da ilha. A China e o Vaticano têm as diplomacias mais antigas do mundo. Pode ser que um dia se entendam”.

"O papa dará continuidade ao acordo assinado com Pequim em 2018, numa tentativa de conciliação entre a Igreja oficial, controlada pelo PC Chinês, e a Igreja clandestina, fiel ao Vaticano. No entanto, o regime comunista continua a reprimir os cristãos."

Luís Cunha, autor de 'Taiwan - Paz e Guerra'

Sobre o sucessor de Francisco ser americano, Luís Cunha admite que “em tese até pode servir de mediador entre os Estados Unidos e a China, mas nesta fase todas as leituras são prematuras. O futuro a Deus Pertence”.

O lado geopolítico do triângulo Vaticano-China- Taiwan merece igualmente a apreciação do general Carlos Branco: “Não se preveem alterações significativas nas relações entre o Vaticano e a China, onde vivem cerca de 12 milhões de católicos, 0,85% da população. É improvável que o Vaticano venha a estabelecer relações diplomáticas formais com a China. O Vaticano tem mostrado interesse em melhorar as relações com Pequim, a China procura legitimar internacionalmente a ‘sua Igreja católica’. Apesar das tensões, existe diálogo entre os dois Estados. A assinatura em 2018 de um acordo entre o Vaticano e a China sobre a nomeação de bispos, com o intuito de regularizar a situação dos bispos católicos na China representou um passo, ainda que curto, na aproximação entre os dois Estados. Tudo se alteraria se o Vaticano renunciasse ao reconhecimento de Taiwan, o que é extremamente improvável nas atuais circunstâncias. A eleição de um papa oriundo da Ásia poderia ter feito a diferença.”

"Tudo se alteraria se o Vaticano renunciasse ao reconhecimento de Taiwan, o que é extremamente improvável nas atuais circunstâncias. A eleição de um papa oriundo da Ásia poderia ter feito a diferença.”

Carlos Branco, general

Também poderia ter feito a diferença se o cardeal Parolin tivesse sucedido a Francisco, e era um dos papabili, tal como o filipino Luis Antonio Tagle (cuja mãe é de origem chinesa). “Sempre houve uma dificuldade na relação da Igreja com os países comunistas. Havia relações com o Vaticano, com a Santa Sé, até 1951. Depois, essas relações foram cortadas, mas o papa Francisco conseguiu um acordo com a China, reconhecendo que havia aquela Igreja que chamam ‘Patriótica’. Houve o reconhecimento desses bispos e há agora acordos para nomear bispos. E, significativamente, quando o papa Francisco morreu, a China apresentou pêsames e o governo declarou que quer aprofundar as relações com o Vaticano. É uma situação complexa por causa de Taiwan”, acrescenta Anselmo Borges.

"Significativamente, quando o papa Francisco morreu, a China apresentou pêsames e o governo declarou que quer aprofundar as relações com o Vaticano. É uma situação complexa por causa de Taiwan.”

Anselmo Borges, padre e ensaísta

Se olharmos para a lista de países visitados por Francisco nos 12 anos de pontificado, ali estão, bem a Oriente, o Cazaquistão, a Mongólia, a Coreia do Sul, o Japão, a Papua-Nova Guiné, o Sri Lanka, o Bangladesh, a Birmânia, a Tailândia, a Indonésia, Singapura, as Filipinas e Timor-Leste. Só estes dois últimos, colonizados por espanhóis e portugueses, têm uma maioria de católicos. De especial significado para o papa que defendia uma Igreja das periferias foi a visita à Mongólia em 2024, um país que até tem um cardeal apesar de serem poucos os católicos. “Às vezes não é fácil ver realmente tudo o que está por trás das viagens papais. Por exemplo, para visitar a Mongólia, o avião de Francisco teve de sobrevoar a China. Teve de ter autorização do governo chinês. E houve até troca de cumprimentos oficiais durante o sobrevoo. Um dos objetivos da viagem à Mongólia era certamente mandar uma mensagem à China, país que não tem relações diplomáticas com a Santa Sé, mas que está numa região onde o papa Francisco esperava que se pudesse expandir muito a religião católica”, sublinhava, em conversa recente, Dennis Redmont, que chefiou a delegação da Associated Press em Roma e que acompanhou ao longo de décadas as viagens dos papas. Quase que se pode perguntar se a ida a Ulan Battor não se destinava tanto aos dois mil católicos mongóis como aos 12 (ou seis, depende das fontes) milhões de católicos chineses.

"Um dos objetivos da viagem à Mongólia era certamente mandar uma mensagem à China, país que não tem relações diplomáticas com a Santa Sé, mas que está numa região onde o papa Francisco esperava que se pudesse expandir muito a religião católica."

Dennis Redmont, jornalista americano

Sobre o que pode fazer Leão XIV, o jornalista americano, que vive em Lisboa, diz que a continuidade de Parolin à frente da diplomacia papal poderia ser um sinal de querer manter a política de conciliação com a China. E, sobre o lado chinês, o facto de “a China ter já enviado mensagem oficial de parabéns quer dizer que Xi não olha só para o Kremlin e o desfile de Putin, mas que respeita o poder de mais de 1400 milhões de católicos. Reconhece que, na realidade, o papa tem ‘divisões’”, assinala Redmont, numa alusão à célebre frase atribuída a Estaline a minimizar a força da Igreja.

Quem também não tem qualquer dúvida sobre o desafio que a China representa para a Igreja é António Marujo, autor de Papa Francisco - A revolução imparável e diretor do 7Margens: “A importância da China vem não só pelo lugar cimeiro do país no contexto mundial, como também pela falta de liberdade religiosa e pela milenar civilização que o país transporta. Com essa cultura, o cristianismo teve até hoje alguma dificuldade em dialogar; a abertura à China pode significar uma maior aproximação a esse universo cultural e, ao mesmo tempo, possibilitar a defesa da liberdade religiosa e dos direitos humanos de forma mais eficaz e assertiva”. No Conclave estava só um chinês, Stephen Chow, cardeal de Hong Kong.

"Com essa cultura, o cristianismo teve até hoje alguma dificuldade em dialogar; a abertura à China pode significar uma maior aproximação a esse universo cultural e, ao mesmo tempo, possibilitar a defesa da liberdade religiosa e dos direitos humanos de forma mais eficaz e assertiva.”

António Marujo, autor de 'Papa Francisco - A revolução imparável' e diretor do 7Margens

Wang Suoying, professora de Estudos Chineses, relembra que “a Constituição da República Popular da China estipula que a liberdade de crença religiosa é um direito básico dos cidadãos”. Embora ainda hoje muito minoritário, conta a professora Wang, “o cristianismo entrou pela primeira vez no território chinês no ano 635, durante a dinastia Tang, através dos nestorianos. Na dinastia Yuan, o papa Nicolau IV enviou em 1289 para a China o franciscano João de Montecorvino, que divulgou o evangelho na China durante 34 anos. Em meados e finais da dinastia Ming, com a chegada dos jesuítas, o catolicismo voltou a ganhar desenvolvimento na China. O jesuíta Matteo Ricci, depois de passar alguns anos em Goa e Macau, pisou a terra da China continental em 1583”.

Esse missionário italiano ao serviço do Padroado Português do Oriente, que veio a ser o autor de um dicionário de chinês-português, explica Wang, “estudou a língua e cultura chinesas, usou as vestes dos letrados confucianos e transmitiu conhecimentos de matemática, astronomia, geografia, música para ganhar a confiança do imperador e dos funcionários da corte. O empenho de Ricci em servir-se do confucionismo e da cultura chinesa para explicar doutrinas cristãs foi bem sucedido obtendo grande simpatia dos letrados, pelo que era considerado um ‘confucionista ocidental’, entrando na elite intelectual chinesa, e foi autorizado a divulgar o catolicismo em Pequim em 1600. Por conhecer bem a língua e cultura chinesa, Ricci costumava usar palavras chinesas existentes atribuindo-lhes novos conceitos na tradução da Bíblia. O nome atual de catolicismo em chinês, tianzhujiao, literalmente ‘igreja do senhor do céu’, foi criado por ele, para mostrar o seu respeito pela veneração dos chineses ao céu. Aproveitou a palavra shengmu, ‘mãe sagrada’, tratamento chinês a algumas deusas e à imperatriz-mãe, para traduzir Nossa Senhora. Utilizou a palavra shengjing, ‘clássico sagrado’, para Bíblia”.

"Entre os chineses em Portugal, bastantes pessoas abraçam o catolicismo. De vez em quando, da China vêm grupos de crentes para visitar Fátima.”

Wang Suoying, professora de Estudos Chineses

A académica chinesa, que vive em Portugal, salienta que “em comparação com o budismo, totalmente integrado na vida quotidiana dos chineses, o catolicismo continua a ser uma religião estrangeira para muitos chineses, precisando de uma maior integração com a cultura chinesa. No entanto, com o intercâmbio cada vez mais intenso entre os povos, muitos hábitos e festas do cristianismo, no sentido lato, começaram a entrar na vida dos chineses. Entre os chineses em Portugal, bastantes pessoas abraçam o catolicismo. De vez em quando, da China veem grupos de crentes para visitar Fátima”.

Wang esclarece ainda que, “conforme dados estatísticos do governo chinês, existem 97 dioceses católicas na China, com mais de 60 bispos, mais de 2000 padres e mais de 5000 freiras, entre os quais mais de 1500 sacerdotes jovens foram formados e ordenados desde a reforma e abertura em finais dos anos 80. Os católicos são seis milhões, que frequentam cerca de 6000 igrejas e locais de reunião; existem oito seminários teológicos de vários tamanhos e anualmente cerca de 50.000 católicos são batizados”.

As estimativas não oficiais apontam para o dobro dos crentes, e esta discrepância mostra o muito que ainda há por desenvolver nas relações entre a Santa Sé e Pequim, com o acordo de 2018 a ter percalços na aplicação, como a nomeação de dois bispos no intervalo entre a morte de Francisco e a eleição de Leão XIV. Um pormenor: o novo papa é agostiniano e os agostinianos têm tradição de missão na China.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt