Simón Bolívar ou Antonio José de Sucre. Quem é o grande vencedor da batalha de Ayacucho?Eric Koechlin (EK): Bolívar era um homem que acreditava na glória. Ele queria ser o grande herói de Ayacucho. Porém, estava doente e precisava de tratamento e por isso teve de regressar a Lima. Também o fez para reorganizar o seu exército e obter recursos. Igualmente devido à instabilidade política. Depois da batalha de Junín em agosto de 1824, e antes de partir para Lima, dera ordem a Sucre para não atacar, ou seja, não enfrentar os espanhóis. No entanto, seis dias antes da batalha de Ayacucho, ocorreu um pequeno confronto entre tropas monárquicas e os patriotas que foi favorável aos monárquicos. E no dia 9 de dezembro, os dois exércitos encontram-se finalmente na Pampa de la Quinua, que é um maravilhoso terreno aberto em Ayacucho, onde finalmente se enfrentam. E Sucre está praticamente cercado, e não tem outra alternativa senão lutar. Portanto, evidentemente, Bolívar não estava lá e o grande líder do exército patriota naquele dia foi Sucre. Mas penso que também não devemos subestimar o papel que José María Córdova teve na batalha de Ayacucho. Córdova estava ao comando das tropas no sul do campo de batalha. Enquanto no norte as tropas patriotas perderam, no sul Córdova destruiu completamente as tropas monárquicas. E foram elas, as legiões de Córdova, que finalmente correram em direção a um pequeno monte e cravaram a bandeira da Grande Colômbia..Fala de tropas patrióticas e monárquicas, mas há famílias com militares em ambos os lados, como os irmãos Castilla. Quem são os combatentes monárquicos e quem são os combatentes patriotas? Não se trata de sul-americanos versus espanhóis, pois não?EK: Não, é mais complexo. Por exemplo, José de la Mar, que foi um dos primeiros presidentes peruanos, na década de 1820, foi um combatente do exército monárquico que decidiu mudar de lado e fazer parte do exército patriota após a chegada de José de San Martín ao Peru, e a partir de 1821 lutará ao lado dos patriotas e mais tarde será então presidente. Os irmãos Castilla são também um tema muito interessante. Ramón Castilla foi quatro vezes presidente do Peru e é o primeiro presidente do Peru que consegue terminar o seu mandato, 30 anos após esta batalha, já na década de 1850. E o seu irmão Leandro estava do lado monárquico. Também é complexo a outros níveis. Nós, peruanos, herdámos dos espanhóis muitas instituições, por exemplo, a escravatura e a mita indígena, que tanto Bolívar como San Martín, que lutaram pela independência do Peru em prol da liberdade, prometeram abolir. No entanto, após a independência, a escravatura e a mita indígena, que era uma forma de escravatura para os indígenas peruanos nas minas, continuaram. E foi Ramón Castilla, que combateu na batalha de Ayacucho, que em 1854, só em 1854, aboliu a escravatura, algo que tanto San Martín como Bolívar prometeram fazer. Acho ainda importante referir uma coisa interessante, que no exército patriótico 40% eram peruanos e 60% eram venezuelanos, colombianos, equatorianos, bolivianos, chilenos, argentinos, uruguaios, paraguaios, ingleses, irlandeses, franceses, ucranianos. E no exército monárquico, mais de 90% eram peruanos, a combater pela Espanha..Porquê o Peru ser o palco desta batalha de Ayacucho, a última batalha das guerras de independência sul-americanas?Carlos Meléndez (CM): Sim, o Peru foi o último refúgio do reino espanhol na América do Sul e tornou-se um centro de resistência da coroa espanhola naquelas terras. E é por isso que se consegue construir uma aliança transnacional, americana, contra Espanha. É muito interessante, porque podemos dizer que é um dos primeiros marcos da integração sul-americana. Unem-se para poderem tornar-se completamente independentes do reino espanhol..A questão da república versus monarquia foi debatida no Peru independente?CM: Só no início da república, ao contrário de outros países. No Brasil, por exemplo, houve um referendo na década de 1990 [1993] para ver se era necessário voltar à monarquia. No Peru penso que é um tema que se esgotou na primeira metade do século XIX..Ayacucho é um mito fundador do Peru? Está presente no imaginário popular?EK: Acho que Ayacucho foi fundamental, porque o Peru foi o último bastião espanhol. A sociedade peruana era muito mais monárquica do que a sociedade grã-colombiana, ou do que a sociedade do Rio da Prata. No Peru havia muitas ligações com a monarquia. Podemos ver isto não apenas nas tropas realistas, mas em geral na sociedade conservadora de Lima. Quando Bolívar chega a Lima diz que o Peru é o país com mais diferenças sociais. E havia muitos monárquicos. Principalmente os residentes de Lima, a maioria deles, queriam continuar a fazer parte de Espanha. E a partir daí o ter havido uma grande maioria de pessoas, incluindo San Martín, incluindo José de la Serna, e muitos outros, que queriam uma transição para uma monarquia constitucional, como aconteceu no Brasil. E havia um pequeno número de liberais, como Sánchez Carrión, um dos poucos liberais peruanos que eram realmente liberais, que queriam realmente uma república. Porque até os dois grandes heróis peruanos, os dois primeiros presidentes peruanos, que foram José de la Riva Aguero e o Marquês de Torre Tagle, ambos consideraram também a ideia de uma monarquia constitucional. Portanto, digamos, não foi só a questão militar, de pegar em armas, de ganhar a guerra, foi também o que queriam os peruanos como povo..A minha dúvida é se Ayacucho hoje é apenas uma data oficialmente celebrada, como aqui em Lisboa pela embaixada ou em Lima pelo Governo, ou se é uma data tão simbólica que realmente diz alguma coisa às pessoas.EK: Leio sempre as notícias da América Latina e vi que o bicentenário da batalha de Ayacucho foi comemorado na Venezuela, na Colômbia, na Argentina, no Peru. É um evento latino-americano. Francisco de Miranda, o grande ideólogo libertador da América Latina, mestre de Simón Bolívar, o próprio Bolívar, também Vizcardo y Guzmán, todos eles acreditavam numa integração da América do Sul, numa América do Sul maior. E mesmo governada a partir de Cusco, como defendeu Francisco de Miranda. Logo depois da independência existiu um projeto bolivariano através do Congresso do Panamá de 1826, que procurava precisamente criar esta unidade continental. Quarenta anos depois da batalha de Ayacucho, em 1866, por haver uma cláusula que dizia que o Peru deveria pagar reparações de guerra à Espanha, há uma ameaça da Espanha de tomar as nossas ilhas produtoras de guano, ou mesmo reconquistar o Peru, se essa reparação não for paga. E nessa altura, peruanos, estrangeiros vários, até mesmo espanhóis a viver no Peru, lutaram em Callao contra a frota espanhola e venceram esse combate. E as fragatas espanholas tiveram de regressar diretamente a Espanha porque de cada vez que queriam desembarcar ou parar num porto latino-americano, foi-lhes negado tal em comemoração desta irmandade do Congresso do Panamá, que infelizmente não durou muito tempo.CM: Quem faz renascer Ayacucho como símbolo contemporâneo é o venezuelano Hugo Chávez. Hugo Chávez, com a expansão do seu projeto do Socialismo do Século XXI, volta a tomar Simón Bolívar como um símbolo contemporâneo de unidade e integração..Chávez vai buscar o bolivarianismo. E o bolivarianismo vai buscar Ayacucho. É isso?CM: Exatamente. O bolivarianismo vai recuperar Ayacucho. Temos Chávez a falar sobre Ayacucho. Quando Chávez se encontra pela primeira vez com Ollanta Humala, que depois será presidente peruano, as primeiras conversas são sobre Ayacucho. Chávez nos seus diálogos coloquiais, quando enfrenta a diplomacia do Peru, fala sempre de Ayacucho..Foi também uma forma de através da História da luta de libertação a Venezuela atual ter uma influência na América Latina?CM: Sim. E até um certo momento com força. Porque Bolívar chegou a ser celebrado no Carnaval do Rio. Houve um grande boneco de Bolívar no Carnaval do Rio financiado pela Odebrecht. E Bolívar não tem nada a ver com a independência brasileira [risos]. Portanto, é no melhor momento do chavismo e do Socialismo do Século XXI que Bolívar consegue expandir-se como símbolo não só na América Latina Hispânica, mas também no Brasil. No melhor momento também no Brasil, nos primeiros governos de Lula.EK: Quero só falar um pouco sobre o bolivarianismo e de como este tomou diferentes noções e rumos ao longo da história, que considero muito importantes e que muitas pessoas desconhecem. Por exemplo, depois da Batalha de Ayacucho, algumas forças realistas que apoiavam Fernando VII, que se tinha revoltado com o vice-rei De La Serna, ainda se encontravam no Alto Peru. E é no ano seguinte que Sucre vai ao Alto Peru, para acabar com estas reminiscências das tropas realistas mais conservadoras, e ao libertar o Alto Peru decide separá-lo do Peru e criar aquilo que será conhecido durante os seus primeiros anos como a República de Bolívar. E Simón Bolívar vai autointitular-se presidente vitalício do Peru e também da República de Bolívar. Terá, porém, muita oposição tanto no Peru como na Bolívia e acabará por regressar à Colômbia. E é então que a República de Bolívar decide derrubar a presidência vitalícia de Bolívar e mudar o seu nome para Bolívia..Porque é que o argentino San Martín é mais herói nacional no Peru do que o venezuelano Bolívar, líder da Grande Colômbia?EK: Sempre fui contra essa noção. Não porque San Martín não fosse importante para o Peru, porque foi. Creio que nós, peruanos, temos de aprender a prestar um pouco mais de atenção aos acontecimentos reais, e não tanto aos simbólicos. San Martín chegou em 1821, proclamou a independência, mas os espanhóis continuaram a controlar todo o Alto Peru e o sul do que é hoje o Peru. Mais importante foi em 1820, um ano antes da chegada de San Martín ao Peru, o Marquês de Torre Tagle ter tornado independente todo o norte do Peru, que é quase metade do território nacional do que hoje é o Peru. Muitos atuais departamentos do Peru foram libertados, e foi ele que os libertou de forma quase pacífica. O Marquês de Torre Tagle foi superintendente em Trujillo, aí colocado pelo vice-rei, pelo rei de Espanha, e decidiu criar alianças..Está a dizer que o marquês é o herói da independência do Peru?EK: Foi o primeiro a libertar o território peruano. Um marquês espanhol colocado no cargo de superintendente pela Coroa Espanhola decidiu libertar-se graças à sua habilidade política e às alianças que tinha com os altos comandantes militares. E o norte do Peru permaneceu livre desde dezembro de 1820 até aos dias de hoje, ao contrário de outros territórios libertados por San Martín, que uma vez San Martín retirado na Argentina e depois França, foram recuperados pelos espanhóis, como Lima, por exemplo. Lima foi simbolicamente libertada, San Martín sai, os espanhóis regressam..O que influencia mais a independência da América Latina é a Revolução Francesa ou a independência dos Estados Unidos?CM: Diria que ambas influenciam. Sem dúvida, a Revolução Francesa a nível intelectual, mas os Estados Unidos mais a nível de sistema político. Ou seja, o sistema presidencialista que a América Latina assume tem a ver com o sistema presidencial imposto nos Estados Unidos, e o federalismo que se começou a instalar em alguns países da América Latina também faz lembrar o que se estava a passar nos Estados Unidos. Diria que a herança é mútua, mais intelectual no campo europeu da França e mais de desenho institucional no caso americano..Como é que o Peru hoje reflete Ayacucho?CM: Reflete no sentido em que também se tem familiares de ambos os lados [risos]. O Peru hoje é uma sociedade polarizada, infelizmente. Há muita gente que se identifica muito à esquerda ou muito à direita, o que tornou invisível o centro no Peru, e enfraqueceram-se as possibilidades dos partidos moderados, dos espaços moderados, predominando o radicalismo ao nível da opinião pública..Consegue fazer uma ligação entre a situação atual e a de 1824?CM: Exatamente isso, temos uma sociedade dividida, mas uma sociedade que, em última análise, é a mesma sociedade, irmã, e temos as mesmas famílias divididas de um lado e do outro. Ayacucho era isso, Ayacucho era onde estavam os familiares, frente a frente, prontos a enfrentar-se pelas suas convicções, com a diferença de que hoje, infelizmente, não se podem abraçar depois da batalha. Em Ayacucho podiam abraçar-se depois da batalha, no Peru de hoje não podem abraçar-se depois das eleições.