"Portugal pode ser mediador para alcançar uma trégua entre Israel e Palestina"

O diplomata da Palestina em Portugal, que recusa condenar o Hamas, realça o papel do nosso país na presidência do Conselho da União Europeia e o de António Guterres na ONU para liderar um processo de mediação, alcançar uma trégua, e estabelecer negociações.
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Nabil Ahmad Abuznaid tem um livro prestes a seguir para uma gráfica no Líbano sobre a intifada e o Estado palestiniano. Além da experiência de vida enquanto natural da Palestina e de conselheiro de Yasser Arafat durante as negociações que culminaram com os acordos de paz de Oslo, estudou ciência política nos EUA e doutorou-se em relações internacionais na Polónia. "Foi a intifada que levou às negociações de Oslo, foi da guerra de 1973 entre o Egito e Israel que se criaram as negociações em Camp David", diz. Pela mesma ordem de ideias, o diplomata que chefia a missão diplomática da Palestina em Lisboa desde 2017 acredita que do conflito atual esteja a origem de negociações para o estabelecimento do Estado da Palestina.

O processo de paz e a meta dos dois Estados está há anos num impasse. Pode esta crise ter um lado positivo e forçar uma mudança?
Não há conflito no mundo ao qual não se possa pôr fim. São criados por seres humanos e devem ser terminados por seres humanos. Historicamente, acreditamos que os EUA têm a chave para o conflito e são quem pode influenciar uma solução. [Donald] Trump fez mais danos do que benefícios, porque agiu como se fosse dono do mundo e começou a dar Jerusalém aos israelitas. Isso encorajou de facto [Benjamin] Netanyahu. Trump deu-lhe o que precisava e o que se passa hoje em dia em Israel foi exatamente o que aconteceu quando os norte-americanos invadiram o Capitólio. A hostilidade nos EUA começou com racismo contra as minorias, o que tornou o país dividido. Creio que Netanyahu tentou fazer o mesmo que o melhor amigo e ignorou o processo de paz. Só esteve interessado em confiscar terras para colonatos e oprimir o povo. Agora, com a administração Biden, quer que a oferta de Trump se transforme em realidade, que Jerusalém seja a capital não dividida de Israel. E começou a oprimir palestinianos, em especial pessoas que estão a orar em lugares sagrados como a mesquita al-Aqsa. Também em Sheikh Jarrah, Netanyahu quer expulsar palestinianos que ali vivem desde 1967, sob um acordo com a Jordânia, que exercia ali poder, e a ONU. Estas pessoas vêm de Haifa, são refugiados da Palestina de quando Israel foi criado. Sobre o processo de paz: quando [Yitzhak] Rabin e Arafat assinaram os acordos de Oslo, houve oposição em Israel e mataram Rabin. E quem estava a liderar as manifestações contra o processo de paz? Netanyahu. Desde então e até hoje Israel movimenta-se para a direita, mas com Trump agravou-se. Netanyahu não quer saber de paz, não quer saber de mais nada exceto da sua sobrevivência enquanto herói de Israel. Este é um homem que começou a pensar que é um rei e não investe na paz, investe em hostilidade, em criar mais extrema-direita. Agora fala-se de um governo de extrema-direita ou mais à direita. Isto é Israel, mas não é a causa judaica, não é o povo judeu que sempre esteve do lado da justiça e direitos humanos. Estou certo que ele nada tem a ver com judaísmo, mas com colonialismo e opressão.

Porquê este conflito neste momento?
Netanyahu está a fazer pressão para impor a prenda do seu amigo Trump sobre Jerusalém. Ele sentiu que estava a ser ignorado por Biden e então começou a pressão, mas a pressão voltou-se contra ele porque Biden, penso, não quer começar com um conflito israelo-palestiniano, porque sabe que quando foi vice-presidente de Barack Obama viu como Netanyahu se comportou. Agora Biden está sob pressão da comunidade judaica e das minorias que o elegeram presidente, afro-americanos, latinos, etc., que apoiam a causa palestiniana.

Acredita que é também uma forma de Netanyahu tentar impedir a formação de um governo de coligação com árabes e forçar novas eleições?
Sim, sim. Há uns anos, no dia das eleições, Netanyahu disse aos judeus para irem votar porque os árabes estavam a chegar em autocarros para as mesas de voto. Ele quer sobreviver e desviar a atenção dos tribunais que vai enfrentar por corrupção. Em Israel quanto mais se escalam as tensões, mais popular se torna. Neste momento em Israel poucas pessoas o criticam, mas quando esta guerra terminar, toda a gente o vai responsabilizar.

Em entrevista ao DN, o embaixador de Israel em Portugal afirma que o que se está a passar é "uma competição dramática entre duas forças na esfera pública palestiniana; uma competição entre os islamitas radicais - Hamas, Jihad Islâmica - e a Fatah, ou seja, a Autoridade Palestiniana". Concorda?
O meu colega embaixador esqueceu-se de dizer que existe uma ocupação desde 1967. Há cerca de 54 anos que é negada justiça às pessoas, negada liberdade. E disse sobre os israelitas que não são 'pessoas perfeitas'. É altura de os israelitas assumirem responsabilidades pelos palestinianos da Nakba [êxodo de 1948] que estão a viver em campos de refugiados no Líbano e na Síria e, como eu e os meus filhos, viveram sob as suas armas e a sua ocupação. Infelizmente, não disse que é altura de os israelitas dizerem que a ocupação é a causa e que é por causa das eleições [na Palestina]. Como é que se pode esperar eleições justas se não tenho liberdade? A liberdade é como uma moeda, de um lado está a liberdade, do outro a democracia. Não podemos movimentar-nos! E além disso, Netanyahu não aceita que as pessoas de Jerusalém votem. Como podemos aceitar isto? A questão não são as diferenças [entre os movimentos palestinianos], é a ocupação. Acreditem-me: não aguentamos mais. Esta ocupação está a destruir as nossas vidas mas também os valores judaicos. A ocupação é terrível, é a forma mais elevada de terrorismo. Imaginem a vossa casa e a vossa terra serem ocupadas e não poderem sair nem entrar sem autorização. N'O Príncipe, Maquiavel disse que enquanto se nega aos outros que possam viver a sua vida não se está seguro. Compreendo que o embaixador tenha de seguir o que o seu governo diz, mas é altura de dizer, 'sim, o que fizemos aos palestinianos está errado', e então eu direi 'senhor embaixador, não podemos mudar a história mas podemos criar um futuro melhor para todos'. Esta terra foi dada por Deus a todas as religiões, não para ser alvo de lutas nem para se destruírem, mas para viverem juntos como bons vizinhos e em igualdade.

O embaixador Raphael Gamzou disse também que o "Hamas decidiu mostrar que mesmo a partir de Gaza consegue controlar os territórios palestinianos, sem precisar de eleições". Acredita que a convocação de eleições e subsequente suspensão pode ter conduzido a esta posição do Hamas?
É o que diz a propaganda israelita. Mas são eles os culpados porque não permitem que metade das pessoas votem. Nós, palestinianos, temos pontos de vista diferentes. Os islamistas acreditam que pode ser uma guerra religiosa, e eu não gosto de ver desta forma, porque as religiões não se destinam a lutar umas contra as outras, mas a viverem em conjunto. E temos os seculares, que acreditam numa lei igual para todos. Por exemplo, sugerimos a solução de um Estado, onde judeus, cristãos e muçulmanos viveriam com direitos iguais e as mesmas leis. Israel não aceitou. Então propusemos dois Estados, com as fronteiras de Israel de 1967, tal como a comunidade internacional, Portugal incluído, defende. Mas Israel disse que não.

Qual a posição da Autoridade Palestiniana em relação ao lançamento de rockets para Israel?
Não é o dia para acusar ninguém. É altura de parar, é altura de salvar as crianças. Não iria ser benéfico nem para mim nem para os israelitas apontar o dedo e dizer 'tu é que começaste', é altura de enfrentar a realidade e que o conflito tem de parar e exigir negociações. Este é o momento de verdade. Portugal, que tem a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, e que tem o secretário-geral da ONU, compreende os direitos dos palestinianos, é solidário para com a Palestina, e importa-se com a segurança de Israel. Que melhor altura e condições tem Portugal? Portugal pode falar em nome da Europa e pode ser mediador hoje para alcançar uma trégua. Não tem de esperar por Biden. Instamos Portugal a trabalhar com a comunidade internacional e com Washington. Peço à comunidade internacional para que António Guterres dê início às negociações, com o nosso apoio, e tendo como base as resoluções da ONU. Nós já tentámos tudo. Se lutarmos somos terroristas. Se não fizermos nada ninguém nos leva a sério, somos fracos. E quando tentámos levar a questão ao Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, os EUA disseram que não podíamos. Porque é que o governo português não reconhece o Estado da Palestina? Devido à pressão dos EUA e de Israel. Se um país livre como Portugal, que na Constituição apoia a liberdade dos outros povos e cujo Parlamento apoia os direitos dos palestinianos, não consegue... O embaixador israelita agradeceu ao ministro dos Negócios Estrangeiros [Augusto Santos Silva] por criticar Gaza. Mas quantas vezes o ministro disse que o que Israel faz está errado e o respeitaram? Sr. embaixador, o ministro não apoia a vossa presença na Cisjordânia, considera a vossa presença como a um poder
ocupante, não aceita a confiscação de terras palestinianas nem a construção de colonatos e considera Jerusalém Oriental a capital da Palestina.

Mahmud Abbas tem 85 anos e é público que tem uma saúde frágil. Teme que possa existir um vazio de poder?
Nem por sombras. Pensámos que isso iria acontecer quando Arafat morreu, porque ele é o pai e a mãe do movimento nacionalista palestiniano. Mas no dia seguinte decidimos que o líder do Parlamento iria liderar durante 60 dias e realizar eleições. O povo palestiniano sabe o que quer.

Foi conselheiro de Yasser Arafat. Nesse tempo havia mais esperança em alcançar a paz?
Os palestinianos têm sempre esperança. Dizemos que as coisas estão muito difíceis agora, mas vejo o Estado palestiniano a tornar-se numa realidade. Não sou o único a dizê-lo. Os meus filhos também. Não pode ser de outra forma, não podemos ser escravos. Lutei, não de forma militar, pelo fim da ocupação, e infelizmente os meus filhos têm de fazer o mesmo. Quando pergunto a mim próprio se voltasse atrás faria igual, digo que sim, mesmo correndo riscos de vida. Uma vez quando trabalhava no escritório da OLP em Washington foi implantada uma bomba mas felizmente não explodiu. Que fazer? Acho que os israelitas não perceberam na intifada quando as pessoas gritaram "liberdade ou morte".

cesar.avo@dn.pt

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