"PIB dos países do sul do Mediterrâneo poderia aumentar em 20% ou 30% se o potencial das mulheres fosse utilizado" 

Antigo embaixador do Egito em Paris e em Londres, Nasser Kamel é desde 2018 o secretário-geral da União para o Mediterrâneo (UpM). Defende o empoderamento feminino como uma prioridade, incluindo na Europa do Sul.
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Será possível identificar três ou quatro prioridades para a UpM, uma organização com 42 Estados membros que o senhor dirige?
Sim, é extremamente fácil responder a isso: uma é a emergência climática em que vivemos no Mediterrâneo, e porquê? Porque, sim, é verdade que temos uma emergência climática global, mas este fenómeno na nossa região é ainda muito mais urgente. Isto pelo simples facto de que, através da UpM, encomendámos um estudo a 80 cientistas de toda a zona, e para além dela, sobre o impacto das alterações climáticas na nossa região - euro-mediterrânica, incluindo a Europa do Sul, claro - e os resultados desse estudo mostraram que o Mediterrâneo aquece 20% mais depressa do que o resto do mundo; que numa região muito pobre em água, os nossos recursos hídricos vão diminuir em 25%; que a subida do nível do mar - estou a falar do Mediterrâneo, não do Atlântico - está previsto atingir um metro no ano 2100, o que o torna um dos 20 sítios mais atingidos por este fenómeno. Isso vai afetar o clima, o ambiente, a biodiversidade, poderia dar centenas de exemplos... A prioridade número dois são as competências empresariais e a empregabilidade, o que é óbvio numa região em que temos uma desigualdade crescente, entre o norte e o sul e dentro dos países no norte e no sul. As competências empresariais e o emprego são extremamente importantes. Especialmente porque a principal missão desta organização é a integração regional, assim, se não trabalharmos e cooperarmos na adaptação e na mitigação climáticas, na despoluição do Mediterrâneo, em medidas para evitar a degradação ambiental, num melhor comércio entre os nossos países membros, em melhores empregos para os nossos jovens - prevemos que nos próximos dez anos haverá 37 milhões de jovens a entrar no mercado de trabalho no Mediterrâneo do Sul e não conseguiremos dar resposta. A terceira prioridade atrever-me-ia a dizer que é a transição e a transformação digitais, porque é a resposta para muitos, é a resposta para uma boa governação, é a resposta para o acesso aos mercados, ao emprego, ao crescimento. A transformação digital é extremamente importante. A quarta é um tema em que penso que nós somos muito eficazes e é muito importante para o futuro da nossa região, especialmente para o sul, é o empoderamento feminino. Empoderar as mulheres a nível económico, político, e assegurar que as mulheres são agentes importantes na atividade económica e têm uma participação plena em todos os espetros da atividade não é apenas uma prioridade ética, é inclusivamente uma prioridade económica. Alguns estudos dizem que o PIB dos nossos países do sul, e até mesmo na parte sul da Europa, poderia aumentar em 20% ou 30% se o potencial das mulheres fosse utilizado na sua totalidade na nossa economia.

Estamos a falar de uma região com muita história e sobretudo muitas ligações ao longo dos séculos entre os dois lados do Mediterrâneo, mas também de uma região onde existem enormes diferenças de desenvolvimento entre o norte e o sul, assim como diferenças culturais. Como é para si gerir o diálogo entre estas duas partes tão diferentes da UpM?
Deixe-me começar pelo ponto em que todo este projeto foi lançado, que foi o Processo de Barcelona de 1995. Nós não nos reunimos em Barcelona por termos exatamente o mesmo nível de desenvolvimento socioeconómico, nós não nos reunimos em Barcelona por nos regermos todos pelas mesmas regras culturais ou por termos todos as mesmas origens históricas. Nessa altura - estávamos no fim da Guerra Fria, uma época de esperança -, falávamos do fim da história e tentávamos construir pontes. Assim, aquele foi o momento exato para o sul do Mediterrâneo construir pontes sobre essas diferenças, nunca ninguém disse que não havia diferenças ou que não havia divergências no desenvolvimento, que não havia discrepâncias... Todo o objetivo deste exercício é lidar com esse desequilíbrio, é essa a razão do processo, a razão para a reunião dos MED-7 que teve lugar na Grécia há poucos dias. Nós somos vossos vizinhos e o que acontece na nossa parte do mundo afeta-vos a nível cultural, político, económico e também do ponto de vista da segurança. Um grande exemplo é a forma como a emigração se tornou um enorme problema.

Quando fala em 37 milhões de jovens a entrar no mercado de trabalho, está a falar sobretudo do norte de África?
Do norte de África e do Médio Oriente.

Esta questão da emigração - não direi problema porque a Europa até precisa de muitos imigrantes - é um dos maiores pontos de conflito entre os membros?
Tenho de ser honesto consigo: nós, na secretaria da UpM, não lidamos com a emigração em si, e vou ser ainda mais honesto: porque é um assunto que divide, infelizmente não existe consenso entre o sul e o norte da organização mediterrânica, ou mesmo entre os países do norte e o próprio norte. Este não está unificado e há divisões dentro da própria UE. Assim, nós, como secretariado da UpM, não lidamos com a emigração, lidamos com aquilo a que chamamos as causas profundas da emigração: a falta de empregos, a degradação causada pelas alterações ambientais e climáticas, o comércio, tudo isso... E também falamos daquilo a que chamamos mobilidade circular, que é um esquema de mobilidade inteligente que permite que a juventude se mova, ao defendermos o Erasmus mediterrânico que vai ter um enorme impacto cultural, da mesma forma que teve impacto sobre vós portugueses, espanhóis, italianos, franceses, etc., e que fez de vós verdadeiros cidadãos europeus. Defendemos também a livre circulação de empresários e, também, um sistema como o que existe entre Espanha e Marrocos, em que os trabalhadores podem vir por três meses e depois voltar para casa, ou como o que existe entre Itália e o Egito. É aquilo a que chamamos mobilidade inteligente ou circular. A gestão da emigração está fora das nossas atribuições e, para ser franco, é melhor assim porque não queremos uma questão que vai dividir, há outros fóruns para tratar dessa questão.

E em outras situações, como a recente tensão entre Marrocos e Espanha, quando há algum tipo de conflito entre membros, a UpM tenta manter a neutralidade?
Vou responder de outra maneira: sinto-me feliz por dizer que quando há tensão entre membros - e há muitos pontos de tensão no Mediterrâneo, não preciso de os enumerar, posso contar, pelo menos, nove ou dez -, a coisa boa, e tenho observado isso como diplomata profissional desde o primeiro dia, é que os países têm tendência a deixar essas tensões à porta quando estamos a discutir projetos da UpM. Os nossos projetos são mais setoriais, quando falamos sobre empregabilidade, quando falamos sobre raízes profundas, sobre despoluição, sobre o problema do plástico ou sobre integração económica, os países da nossa região - e há muitos que têm questões entre si - tendem a deixar essas questões à porta.

Portanto, discutem sobre questões práticas que são do interesse de toda a gente...
Sim, mas não sou eu que os evito, são os próprios países que não trazem esses problemas com eles para o nosso grupo. Isso tem ajudado a manter a coesão da organização e eu acredito que existe a vontade política de manter esta atitude porque, não esqueçamos, esta é a única estrutura institucional que aproxima países do sul e países do norte ao nível mais alto possível - ministerial, autoridades superiores, sociedade civil, líderes de opinião, jornalistas, empresários. Assim, penso que existe um consenso implícito para não levarmos essas questões para a UpM.

Pensa que essa cooperação, esse bom ambiente, o evitar esses problemas sensíveis, influencia a capacidade desses países para negociarem depois, fora da UpM?
Claro que sim, porque se eles conseguem chegar a acordo dentro da UpM, da ONU ou de qualquer outra estrutura, isso é um exercício que ajuda sempre em qualquer contexto. A minha impressão é que nós somos muito setoriais na nossa abordagem - temos seis divisões, temos peritos -, não trabalhamos nas questões políticas, trabalhamos nas questões de cooperação. Nesse sentido, os países compreendem o objetivo da organização e não querem que aquilo que nós podemos atingir seja afetado por uma crise aqui, uma divergência potencial entre um país e outro ali...

Consegue identificar um progresso importante, uma realização importante da UpM?
Como organização seria muito difícil para mim dizer-lhe uma única coisa, porque o que nós fazemos é incremental, nós trabalhamos num certo número de questões e construímos. Agora, em Lisboa, adotámos uma declaração de energia muito progressista que, pela primeira vez, conseguiu que os países do sul, do norte, do Mediterrâneo do Sul, chegassem a acordo sobre a transição energética, a renovação, a interconectividade, coisas que são de ordem prática, importantes, e que acompanham o Pacto Ecológico Europeu, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especialmente o ODS n.º 7, com o nosso compromisso com o Acordo de Paris. Outro exemplo, que pode não parecer importante, e que respeita ao empoderamento das mulheres: nós estamos a criar aquilo a que me atrevo a chamar um mecanismo de revisão de pares onde o Egito, ou a Jordânia, ou Marrocos e também a Suécia e Portugal vão apresentar um relatório aos outros Estados membros sobre o progresso em quatro ou cinco indicadores importantes sobre o lugar das mulheres na sociedade, a sua integração económica, política, a luta contra os estereótipos e a violência contra as mulheres, que é global. Estamos a criar um sistema baseado em regras, no que respeita ao empoderamento feminino, que é aceite por países tão a sul como a Jordânia, o Egito ou a Mauritânia, e tão a norte como a Dinamarca ou a Noruega. Isso, por si só, já é significativo. Em relação às alterações climáticas, fomos nós que encetámos o diálogo sobre o estatuto da região no que respeita à emergência climática, o relatório que vos enviei foi um relatório inovador. Talvez não seja um exercício muito difícil, mas tivemos entre 80 e 90 cientistas a trabalhar durante três anos para nos dizerem exatamente como é que a região é impactada pelas alterações climáticas. Além disso temos uma coligação de iniciativa regional que criou mais de dois milhões de empregos, mas o mais importante não é o número de empregos que criou, é o exemplo dado a outros para o seguirem. No início, em 2008, quando nascemos, havia um grande projeto que era a fábrica de dessalinização em Gaza, o qual, na verdade, demorou sete ou oito anos devido a razões políticas óbvias, mas hoje está a acontecer... Eu costumo dizer que nós não somos um projeto de união, somos uma união de projetos. Não somos uma organização de um só tema. Temos resultados umas vezes e falta de resultados outras vezes. Temos também fracassos. Fizemos o relatório, que foi inovador, sobre o estado da integração económica regional e que pedimos à OCDE para preparar, pois é uma organização com credibilidade. Para ser honesto, o relatório diz que sim, que as coisas estão melhores em termos de integração económica, mas muito abaixo do potencial da região, muito abaixo. 85% da atividade empresarial inter-regional está a acontecer dentro da UE e só 15% na região sul. Este relatório indica muitas insuficiências, indica onde existe a falta de progresso e faz recomendações de políticas. É preciso educar a nossa própria opinião pública sobre o que não está a funcionar nas políticas estabelecidas para a região. Nem tudo é cor-de-rosa.

leonidio.ferreira@dn.pt

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