Pelosi desafia Pequim com visita a Taiwan, "ilha da resiliência"
Quando em 1997, Newt Gingrich disse às autoridades chinesas, que o convidavam a discursar em Xangai e Pequim, que aceitava, mas que também ia visitar Taiwan, "ficaram loucos e disseram que eu não podia fazer isso", recordou agora o antigo presidente da Câmara dos Representantes, o último alto dignitário norte-americano a visitar a ilha que a China vê como província sua antes de Nancy Pelosi, que agora também ocupa o terceiro lugar na hierarquia política dos EUA, ter esta terça-feira pisado solo taiwanês, desafiando Pequim.
Na altura, a resposta do republicano, que ficaria conhecido em todo o mundo por liderar o processo de impeachment contra Bill Clinton, terá sido inequívoca: "Se vos incomoda assim tanto, dispensamos a China e vamos só a Taiwan", recordou agora na FOX News.
Passados 25 anos, Gingrich voltou a ser chamado às televisões para comentar a muito antecipada visita de Pelosi a Taiwan, mantida em segredo pela sua equipa até, esta terça-feira, o avião que a transportava aterrar na ilha. "A visita da nossa delegação do Congresso a Taiwan honra o compromisso inabalável dos EUA em apoiar a vibrante democracia de Taiwan", afirmou a presidente da Câmara dos Representantes numa declaração momentos após chegar. E garantiu que a sua viagem "de forma alguma" contradiz a política oficial dos EUA, que reconhece a política de Pequim de "uma só China", apesar de manter relações comerciais e militares com Taiwan, tendo reiteradamente afirmado o seu compromisso em defender a ilha de um eventual ataque da China, caso esta tente uma reunificação não-negociada.
Mas num artigo de opinião publicado no Washington Post, Pelosi é menos cautelosa. "Temos de ficar ao lado de Taiwan, que é uma ilha de resiliência", escreveu. E lembrou que o território é "líder na governação, na resposta à pandemia de covid e na preservação do ambiente. É um líder na paz, segurança e dinamismo económico, com espírito empreendedor, cultura de inovação e destreza tecnológica de fazer inveja ao mundo".
Denunciando a "agressão crescente do Partido Comunista Chinês", a presidente da Câmara dos Representantes, que está a fazer um tour pela Ásia, explica que a sua visita a Taiwan "deve ser vista como uma declaração inequívoca de que a América está com Taiwan, o nosso parceiro democrático, enquanto este se defende e defende a sua liberdade".
Com centenas de milhares de pessoas a seguir a trajetória do seu avião no site Flightradar24, e com a notícia de que caças chineses estavam a atravessar o estreito de Taiwan em direção à ilha, as primeiras imagens de Pelosi, de 82 anos, em solo taiwanês mostraram a presidente da Câmara dos Representantes a sair do avião de fato cor-de-rosa e máscara no rosto.
De manhã, ainda antes de se confirmar a visita de Pelosi, a agência de notícias de Taiwan CNA informou que um navio contratorpedeiro, várias fragatas e navios de telecomunicações da Marinha de Guerra chinesa estavam a caminho da ilha de Lanyu, no sudeste de Taiwan.
Também os EUA mobilizaram porta-aviões próximos do estreito de Taiwan e estão em Estado de Alerta. E após a chegada da presidente da Câmara dos Representantes, o Exército chinês prometeu lançar "ações militares direcionadas" em resposta à visita. "O Exército de Libertação Popular está em Alerta Máximo e lançará uma série de ações militares direcionadas para combater isso, defender a soberania nacional e a integridade territorial e impedir a interferência externa e as tentativas separatistas de independência de Taiwan", disse o porta-voz do Ministério da Defesa, Wu Qian, em comunicado.
Já o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês considerou a visita de Pelosi - conhecida por ser uma dura crítica de Pequim -"à região chinesa de Taiwan" como uma atitude "extremamente perigosa" dos EUA. Num comunicado divulgado pela agência Xinhua, o ministério sublinha: "Há apenas uma China no mundo. Taiwan é uma parte inalienável do território da China, e o governo da República Popular da China é o único governo legal que representa toda a China", continua, com o ministério a repetir a ameaça que o presidente Xi Jinping já fizera num telefonema em finais de julho com Joe Biden: "Quem brinca com o fogo, morre pelo fogo".
A Casa Branca, por seu lado, preferiu acalmar as tensões, afirmando "não existir qualquer violação ou problemas de soberania" com esta visita. Em entrevista à CNN, o coordenador de comunicações do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, garantiu que os EUA não apoiam a independência de Taiwan e que a visita de Nancy Pelosi apenas "reafirma a política de uma única China", defendida por Pequim.
Do ponto de vista de Taiwan, claro, não é bem assim. Para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a visita de Pelosi mostra "sólido apoio" dos EUA à ilha. "Acreditamos que a visita irá fortalecer as relações estreitas e de amizade entre Taiwan e os EUA, e aprofundará ainda mais a cooperação geral bilateral em todas as áreas."
A China e Taiwan estão separadas desde 1949, quando os comunistas de Mao Tse-tung venceram a guerra civil, derrotando os nacionalistas do Kuomintang de Chiang Kai-shek, que se refugiaram na ilha. E se em 1979 os EUA reconheceram o governo de Pequim, continuaram a dar apoio militar a Taiwan. Ao longo das décadas, houve alguns momentos de aproximação, sobretudo durante o mandato do presidente Ma Ying-jeou, do Kuomintang (2008-2016).
Com 23 milhões de habitantes e um PIB per capita de 36 mil dólares (é a 21.ª economia mundial, enquanto a China é a 2.ª, mas tem um PIB per capita de 14 mil dólares), Taiwan é vista como uma província rebelde por Pequim. E nos últimos meses, sobretudo desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, ressurgiram receios de que a China possa recorrer a um ataque do mesmo género contra Taiwan.
1949 - Separação
Os comunistas de Mao Tse-tung tomam o poder em Pequim em outubro de 1949 após derrotarem os nacionalistas do Kuomintang (KMT) liderados por Chiang Kai-shek na guerra civil. O KMT foge para a ilha de Taiwan e forma o seu próprio governo em Taipé, cortando os laços com a China continental. Em 1950, Taiwan torna-se aliada dos EUA, em guerra com a China comunista na Coreia. Os EUA enviam uma frota para o Estreito de Taiwan para proteger os aliados de um eventual ataque.
1971-1979: ONU e EUA reconhecem Pequim
Em outubro de 1971, Pequim fica com o assento da China na ONU, até então ocupado por Taipé. Em 1979, os EUA quebram os laços formais com Taiwan e estabelecem relações diplomáticas com Pequim. Washington expressa apoio à política de "uma só China", segundo a qual Taiwan faz parte da China, mas mantém relações comerciais e militares com Taipé.
1987-2004 - relação melhora
Em finais de 1987, os residentes de Taiwan podem, pela primeira vez, visitar a China continental, permitindo a reunião de famílias. Em 1991, Taiwan levanta o Estado de Emergência, pondo fim ao estado de guerra com a China. Dois anos depois, Singapura recebe as primeiras negociações diretas entre os dois lados. Mas em 1995, Pequim suspende o diálogo em protesto contra a visita do presidente taiwanês Lee Teng-hui aos EUA. Em 1996, a China testa mísseis ao largo de Taiwan para impedir a primeira eleição presidencial democrática na ilha. No escrutínio de 2000, o KMT perde o poder em Taiwan pela primeira vez.
2005-2015 - ameaças e diálogo
Em março de 2005, Pequim aprova uma lei que autoriza o recurso à força se Taiwan declarar a independência. Em abril, o líder do KMT, Lien Chan, faz visita histórica a Pequim após eleição de Ma Ying-jeou como presidente, um líder que tenta a normalização com Pequim. Em 2010, assinam um acordo de cooperação económica e em 2014 ocorrem as primeiras negociações entre governos desde a separação. A 7 de novembro de 2015, os presidentes chinês e taiwanês, Xi Jinping e Ma Ying-jeou, na qualidade de líderes dos seus partidos, reúnem-se em Singapura, algo inédito desde a separação.
2016 - fim da lua-de-mel
Em janeiro, Tsai Ing-wen, do Partido Democrático Progressista, pró-independência, vence as presidenciais. Em junho, a China suspende todas as comunicações com Taiwan após o governo não reconhecer a política de "uma só China". Em dezembro de 2016, o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, quebra décadas de regras diplomáticas e fala ao telefone com Tsai. Em janeiro de 2019, Xi Jinping alerta que a unificação da China e Taiwan é "inevitável".
2021 - tensões China-EUA
Neste ano, caças chineses fazem centenas de incursões na zona de defesa aérea de Taiwan. Em outubro, o presidente Joe Biden garante que os EUA defenderão Taiwan de um ataque chinês, palavras suavizadas depois pela Casa Branca. Tsai confirma a presença de algumas tropas dos EUA na ilha para ajudar a treinar o seu Exército.
2022 - fúria com visita de Pelosi
Em maio, Biden apela ao Ocidente para enfrentar a Rússia na Ucrânia para impedir que a China use a força em Taiwan e repete que os EUA defenderão a ilha. Em julho, Xi diz a Biden ao telefone para "não brincar com o fogo" e alerta para "consequências" se Pelosi visitasse mesmo Taiwan. Com a chegada da presidente da Câmara dos Representantes à Ásia, a tensão sobe, com Pequim a alertar para que os EUA "pagarão o preço" se esta pusesse o pé na ilha.