"Otto via a União Europeia como sendo, até certo ponto, o legado da monarquia dos Habsburgo"

Um historiador austríaco, Andreas Gottsmann, e outro húngaro, Gergely Fejérdy, vieram a Portugal para uma conferência a relembrar Carlos, último imperador da Áustria-Hungria, que morreu em abril de 1922 na Madeira. Em conversa com o DN em Lisboa, falaram dos ideais daquela que foi a mais poderosa família da Europa e sobretudo de como o filho mais velho de Carlos, o antinazi e anticomunista Otto, atravessou o século XX para, já no XXI, alertar contra Putin.
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Como se explica a Madeira como destino do antigo imperador da Áustria-Hungria, o último, Carlos, que ali morre a 1 de abril de 1922?
Andreas Gottsmann (A.G.): Porque foi a decisão do governo britânico: depois da tentativa frustrada da restauração na Hungria, decidiram mandar o antigo imperador para a Madeira.

Foi uma maneira, portanto, de o manter afastado das suas ambições, que diziam respeito principalmente à coroa da Hungria?
Gergely Fejérdy (G.F.):
Sim. O regresso à Hungria era a grande ambição, ainda em 1921, e Carlos tentou-o duas vezes, em abril e em outubro. É interessante, porque o governo português não estava pronto para concordar com esta decisão de exílio, no início. Mas a diplomacia britânica trabalhou bem e disse que seria muito interessante para Portugal, porque a família imperial traria muito turismo para a Madeira. Depois disso, o governo português disse que sim, o que foi curioso pois os britânicos foram realmente muito pragmáticos. [Risos]

A ligação da imperatriz Zita, uma neta de D. Miguel, a Portugal não teve que ver com a decisão?
G.F
: Claro que foi importante, mas a primeira razão foi que os governos britânico e francês queriam mandar a família imperial para tão longe quanto possível do continente.

Voltando à Áustria, que era um novo país nesse momento: inicialmente, no fim da Primeira Guerra Mundial, a Áustria queria integrar a Alemanha, o que não foi permitido pelas grandes potências, mas a ideia da república era tão forte que o facto de os Habsburgo ficarem no país não era possível?
A.G:
Nesse momento, não. O problema era que, em princípio, havia esse desejo de fazer parte da Alemanha, pois havia um grande receio do colapso económico desse novo pequeno Estado, que era o que restava da monarquia dos Habsburgo. Assim, era bastante lógica essa dependência da Alemanha.

Então o destino da Áustria ficou decidido nesse momento?
A.G: Não diria isso, não completamente. Nessa altura talvez, mas depois houve um momento, principalmente durante a ditadura austríaca fascista, entre 1934 e 1938, em que a questão dos Habsburgo foi muito importante, mesmo o seu regresso foi possível nesse momento. Alguns membros da família poderiam voltar, mas não era muito apoiado devido ao regime nazi em Berlim.
G.F: O plano de Hitler para o Anschluss em 1938 foi denominado Plano Otto. Porquê? Porque Otto Habsburgo, filho e herdeiro de Carlos, era o principal inimigo do regime nazi, tanto na Áustria,como na Alemanha.
A.G: Havia muita divergência entre o governo austríaco e Otto e Zita nesta questão. Schuschnigg tornou-se chanceler da Áustria devido a este problema com a Alemanha e evitou-o. Oficialmente disse que sim, que estava interessado, mas tentou tudo para que Otto não regressasse à Áustria.

Em relação à Hungria foi diferente, porque ainda era formalmente um reino e Carlos era oficialmente o rei, como Carlos IV. Qual foi a atitude do povo húngaro - o povo do novo Estado, que também era muito mais pequeno do que as anteriores terras da coroa húngara?
G.F: A questão dos Habsburgo foi muito difícil para a Hungria. Em primeiro lugar, porque no século XIX, houve a revolução contra os Habsburgo. No entanto, Carlos IV era bem-vindo na Hungria. Ele era apoiado pela população, mas nos círculos políticos havia uma abordagem diferente. A primeira tinha sido a aceitação do regresso dos Habsburgo, mas era verdadeiramente perigoso, pois os Estados vizinhos da Hungria, como a Checoslováquia, a Jugoslávia ou a Roménia, não concordavam com esse regresso. Além disso, dentro da Hungria havia a questão sobre se queriam os Habsburgo ou antes um novo rei, talvez um rei nacional. Há muitos projetos, em 1919 e 1920 com outras famílias reais, como a britânica ou a italiana.

Tentaram encontrar um rei dentro de uma família real sem relação com a Hungria?
G.F
: Sim, foi uma grande questão na altura. Carlos era o que reunia mais apoios em 1921, mas era muito difícil, no contexto internacional, ter um Habsburgo na Hungria. O país era um inimigo antigo da Entente, por isso não tínhamos espaço de manobra na época. Além disso, tínhamos um regente chamado Horthy, que não queria devolver o poder ao rei em 1921.

Havia uma relação pessoal entre o almirante Horthy e Carlos?
G.F:
Havia uma relação pessoal, pois Horthy era uma personagem importante durante a monarquia austro-húngara, era um Almirante das forças armadas húngaras e era alguém que tinha feito um juramento, por isso tinha a obrigação de dar o trono a Carlos IV.
A.G: Gostaria de acrescentar uma coisa: nessa altura, depois da Primeira Guerra, a questão de uma nova confederação era importante, por isso também era a da monarquia, com ou sem os Habsburgo. Mas estes planos não eram realistas porque a situação internacional era contra uma tal construção.

Sendo imperador de um Estado multinacional, Carlos era um poliglota, falava alemão, húngaro, checo, croata?
G.F:
Claro. Era importante saber todas as línguas, mas as mais importantes eram o alemão, o húngaro, o francês e o italiano. Carlos IV falava muito bem húngaro e, quando passeava com Otto, a língua obrigatória entre os dois era o húngaro. As línguas do império eram verdadeiramente importantes para ele, por isso o croata e checo eram também obrigatórias. Ele falava sete ou oito línguas. Quando foi coroado em 1916, em Budapeste, teve de fazer o discurso em húngaro e houve várias pessoas que disseram que era a primeira vez que tinham ouvido um príncipe pronunciar a língua como um verdadeiro húngaro. Porque Francisco José era austríaco e ninguém o conseguia perceber...
A.G: A imperatriz Elizabeth, Sissi, falava muito bem húngaro, mas a situação era diferente então, o contexto era diferente.

A coroação de Carlos IV aconteceu durante a Primeira Guerra, que não estava a correr de feição aos austro-húngaros, aliados da Alemanha. Como é que foi para este homem de 30 anos receber um império, no meio da guerra, de Francisco José, que tinha lá estado quase 70 anos? Estava realmente preparado para essa missão?
G.F
: Eu diria que sim e não. Porque depois de dois anos de preparação Carlos estava pronto para a missão e, como qualquer membro dos Habsburgo, não era uma questão, pois era o seu dever. Assim, ele tentou fazer o seu melhor naquela situação. Claro que era uma situação complicada, porque depois de dois anos de guerra era difícil mudar as coisas e fazer alguma coisa de novo. Ele era um prisioneiro das circunstâncias.

Em relação a Otto, foi a educação que o pai lhe deu que o manteve tão ligado à Áustria e à Hungria durante toda a sua vida? Carlos morreu muito novo, mas conseguiu transmitir isso a Otto?
G.F:
Foi muito difícil para Otto, porque tinha apenas 9 anos quando o pai morreu e eles não tinham passado muito tempo juntos, uma vez que o pai era imperador e rei com todos os deveres que isso implicava. Carlos amava a sua família mais do que podemos imaginar, mas era difícil estar com os filhos devido aos deveres políticos. Mas no fim da vida, quando estava no exílio, primeiro na Suíça e depois em Portugal, passava dias inteiros com o filho - o herdeiro do trono - e preparou-o. Eles davam muitos passeios juntos e Carlos ensinou muito sobre todas essas coisas ao filho. Foram só alguns meses, porque Carlos estava muitas vezes doente, o que tornou tudo mais difícil.

Zita também foi importante na manutenção dessa ideia do legado dos Habsburgo?
G.F:
Sim, claro. Zita era muito ligada a esse legado. Para Carlos e para Zita, a perceção do reino e a perceção do dever era mais do que político, era algo que lhes tinha sido dado a guardar. Para ela e para o marido era alguma coisa mais do que um simples reinado. Por isso, tudo o que pudessem transmitir a Otto que lhe fosse útil no futuro, eles transmitiam-lhe.

Nesse momento, depois da morte de Carlos, na Madeira, o único objetivo lógico era o reino da Hungria, não o império?
G.F
: Sim. Mas penso que era mais do que um reino. Nós, na Hungria, olhamos para a coroa de Santo Estêvão como uma coisa sagrada. Era verdadeiramente importante para Carlos e Zita essa perspetiva, por isso é que falam sempre do reino e não do Império Austro-Húngaro. A situação na Áustria era muito complicada nessa época, o que tornava impossível o regresso ao país. Logo após a morte de Carlos deu-se a única oportunidade de voltar, talvez, à Hungria e à Áustria também. A Hungria legitimou a aristocracia e, no aniversário de Otto, a 20 de novembro, havia missas celebradas pelos bispos húngaros pelo futuro rei. No período entre as duas guerras mundiais havia sempre missa e, a seguir, um jantar para Otto, que era uma grande gala para manter essa ideia de que Otto era o rei.

Os nazis são também inimigos de Otto, mas havia uma clara atitude antinazi da parte deste?
A.G
: Sim. Em primeiro lugar, nos anos 1920 e 1930 havia uma forte tendência monárquica no episcopado e a igreja era verdadeiramente importante. E havia uma atitude marcada da parte de Otto e da família contra o nazismo, porque era uma coisa completamente diferente das suas ideias. É claro que Otto queria voltar para a Áustria - e penso que existiu essa possibilidade -, mas com o Anschluss essa possibilidade desapareceu por completo e Otto percebeu isso. Eles fizeram uma viragem completa e Otto e Zita, na América, lutaram e trabalharam muito pela Áustria e, depois da Segunda Guerra Mundial, ele tornou-se um austríaco da nova Áustria, até falou no Parlamento austríaco. Houve uma grande viragem, mas ele manteve-se com a Áustria.

O Império Austro-Húngaro foi, nas décadas finais, provavelmente um dos melhores lugares para os judeus viverem e prosperarem. Para Otto, ao olhar para a Alemanha nazi, a abordagem desta aos judeus não faria sentido, pois era uma coisa completamente oposta à ideia de um império cosmopolita?
A.G:
Claro. A ideologia que estava por trás do nazismo era totalmente contrária às ideias de Otto e da família Habsburgo.
G.F: Nessa altura ele estava na Bélgica a fazer o seu doutoramento em Lovaina e visitou Berlim nos anos 1930, na altura em que Hitler chegou ao poder. Leu rapidamente o Mein Kampf e disse que aquilo era verdadeiramente perigoso para o mundo. Foi por isso que ele nunca aceitou o convite de Hitler. Ele estava em Berlim a fazer investigação na universidade, mas no fim da sua palestra disse que não, que nunca quereria encontrar-se com Hitler. Hitler ficou furioso porque era o chanceler e o tinha convidado.

Otto confrontou também o comunismo no pós-Segunda Guerra Mundial. Foi uma oposição total desde o início?
G.F:
O seu pai, Carlos, tinha muita informação sobre a Revolução Russa, que tinha começado em 1917, e para Otto era impossível trabalhar em conjunto com o comunismo. Mas é interessante, porque quando ele esteve no Parlamento Europeu teve muitas conversas com os comunistas. Foi-me dito, até, que ele teve um conflito com um comunista italiano no Parlamento e esse italiano queria fazer alguma coisa para ser ouvido no Parlamento e então tentou fazer um discurso em latim e Otto respondeu em latim também. [Risos]. Para ele o comunismo era impossível. Durante a Segunda Guerra interveio junto de Roosevelt e também de Churchill. Por exemplo, pela Áustria ele fazia qualquer coisa para ser uma força contra a ocupação, porque da primeira vez, a diplomacia britânica - e a americana - queria entregá-la ao Exército soviético e ele disse que não, que era impossível. Se quiserem têm de fazer uma ocupação pela força das armas, como na Alemanha. E assim tiveram de ser quatro potências. Otto von Habsburg esteve mesmo muito, muito presente na revolução húngara em 1956. Ele foi o primeiro a pedir ao governo espanhol para intermediar nas Nações Unidas. A questão húngara nunca tinha ido às Nações Unidas porque, nessa altura, para as potências vitoriosas, como os Estados Unidos e a União Soviética, não era muito importante mudar o status quo. Foi por isso que Otto von Habsburg foi a consciência dessa questão e foi essa a razão por que pediu a uma terceira parte para a pôr em cima da mesa em 1956. Ele queria mandar o Exército para a Hungria e o Exército espanhol da altura concordou em enviar 10 000 soldados, mas os aviões espanhóis eram muito antigos e não podiam ir de Espanha para a Hungria.

Franco estava decidido a mandar tropas para a Hungria contra os soviéticos?
G.F:
Franco era amigo de Otto von Habsburg e este escreveu-lhe cartas a pedir para fazer isso. Otto pediu também ao comandante do Exército americano na Alemanha que arranjasse espaço para os aviões. Eles pensaram no assunto durante dois dias e depois disseram que não.

Otto era um entusiasta da construção europeia, da União Europeia, desde o início, desde 1957?
G.F:
Sim.
A.G: Depois da Grande Guerra, há apenas 100 anos, em 1922, nasceu um novo movimento - o Movimento Pan-Europeu - fundado por Coudenhove-Kalergi. Otto, porque este era contra Hitler, aderiu ao movimento onde se tornou cada vez mais importante e mais envolvido. Este movimento preparou-o para ser membro do Parlamento Europeu, onde esteve durante 20 anos, o que é muito raro, pois os deputados normalmente ficam por dois mandatos, e não mais do que isso, e ele fez quatro mandatos.
G.F: Já ouvi comentários de que Otto via a União Europeia como sendo, até certo ponto, o legado da monarquia dos Habsburgo.

Quando o Muro de Berlim caiu, em 1989, houve alguma reação pública por parte de Otto? Porque, mais uma vez, o mundo mudava completamente...
G.F:
Mais na Hungria, mas foi igualmente importante para a Áustria. Mesmo no início da mudança de regimes comunistas, ele foi um dos primeiros a reagir. Mais do que isso, o nome dele foi mencionado pelos húngaros como um futuro presidente da República da Hungria, em 1989. Ele respondeu que a proposta não era interessante para si, mas ele era muito conhecido na Hungria. Em janeiro de 1989 passou nos cinemas de Budapeste um filme biográfico de Otto e foi o filme mais visto, apesar de ser um documentário, durante três ou quatro meses. Toda a gente foi ao cinema para ver quem era Otto von Habsburg.

Seria possível Otto ter sido eleito primeiro-ministro ou presidente no pós-comunismo, como o antigo rei Simeão da Bulgária?
G.F:
Sim, claro, como presidente da Hungria. Na altura ainda não se tinha decidido se o presidente seria eleito pelo povo ou pelo Parlamento.

Mas imagina que seria possível com o voto popular?
G.F:
Sim, Otto era verdadeiramente muito popular. É muito interessante, porque ele tinha estado pela última vez na Hungria em criança e depois só voltou 70 anos mais tarde, em 1987, e incógnito. Só depois de 1988 ele pôde voltar normalmente.

Falemos da atualidade: veem alguma relação entre a queda e a forma como o Império Austro-Húngaro se desintegrou em 1918, assim como os impérios alemão, russo e otomano, e a atual situação na Europa de Leste? Será possível dizer-se que alguns dos problemas atuais, por exemplo o que está a acontecer na Ucrânia, são uma herança desse momento?
A.G:
É um pouco difícil de dizer, porque se passou muito tempo, e tentar estabelecer relações talvez seja um bocadinho exagerado. Talvez mais com a situação na ex-Jugoslávia, que pode ser vista como uma herança do fim da monarquia. Na Bósnia, tentaram criar uma convivência entre as três nacionalidades, tentaram criar uma identidade bósnia, mas o problema nunca ficou resolvido. Talvez aí se possa ver consequências do fim da monarquia dos Habsburgo. Na atual crise da Ucrânia não tanto. No ocidente da Ucrânia existe uma forte tradição austríaco-polaca e a diferença para o leste do país era enorme, o que talvez mude agora graças a Putin...
G.F: Eu acho que é muito interessante, porque estas questões de há 100 anos são as que nós pomos atualmente em cima da mesa. Por exemplo, Carlos e Zita fizeram uma grande viagem pelo Império Austro-Húngaro depois do seu casamento, viagem que terminou na Bósnia, em Sarajevo. Eles queriam encontrar-se com o representante islâmico bósnio, porque queriam unificar religiões, etnias, tradições, culturas. Era verdadeiramente importante criar uma identidade. É como na União Europeia: identidade na variedade. E isso estava verdadeiramente presente na vida deles. Hoje podemos perguntar por que razão, depois do casamento, Zita e Carlos - que não era rei, na altura - quiseram encontrar-se com as diferentes religiões. Isso aconteceu apenas três anos antes da Grande Guerra. Penso que podemos aprender algumas coisas desse tempo para o presente.
A.G: Uma coisa importante acerca desse tema é que a Austria-Hungria teve a primeira lei islâmica da Europa, que na Áustria esteve em vigor até há dez anos. Outra coisa é que o imperador era o protetor da religião islâmica e não só, dos católicos ou dos ortodoxos. Na Europa atual, onde a religião islâmica está muito presente, onde há muitas pessoas praticantes, é normal, mas nesse tempo, no séc. XIX era uma questão e a resposta estava lá, o Império tinha as respostas para essas questões. Otto tinha muito conhecimento do assunto, porque estava lá, viveu tudo isso, morrendo em 2011, com 98 anos. No final do séc. XX, ele fez muitos discursos sobre estas questões, sobre a Jugoslávia. Foi a primeira pessoa no Parlamento Europeu a trabalhar para resolver a questão da guerra na Jugoslávia, depois da queda do Muro de Berlim. Em relação à política atual, ele teria certamente muito a dizer sobre a Rússia e sobre a Ucrânia. Ele fez um discurso sobre o regime de Putin e era muito, muito crítico do Putin quando ele subiu ao poder, no início deste século.

leonidio.ferreira@dn.pt

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