Olena Yahupova não tem família nas regiões ocupadas, pelo que não teme por represálias.
Olena Yahupova não tem família nas regiões ocupadas, pelo que não teme por represálias.REINALDO RODRIGUES

Olena Yahupova, ex-refém ucraniana: "O mais importante que os russos me tiraram são as minhas memórias"

Libertada ao fim de quase seis meses, foi escrava das tropas russas na região ocupada de Zaporijia, de onde conseguiu escapar. Hoje denuncia os abusos sofridos porque há milhares na mesma situação.
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No dia em que se assinalaram os três anos da invasão russa, a Nova SBE e a embaixada da Ucrânia juntaram vozes para falar sobre um tema pouco falado: os civis ucranianos detidos pelas forças russas. O auditório do campus de Carcavelos, composto por diplomatas e políticos nas primeiras filas, emocionou-se com o relato de Olena Yahupova, de 52 anos. No dia 6 de outubro de 2022, esta funcionária pública da vila de Kamianka-Dniprovska, casada e com três filhas, recebeu a visita de dois homens armados e um agente do FSB. Foi denunciada pelos vizinhos e acusada de fornecer informações ao exército ucraniano, uma vez que o marido era - e é - militar. Levada para o posto da polícia local, foi torturada durante duas semanas. Esteve depois detida numa sala com outras 15 pessoas, até que foi levada para um campo de trabalhos forçados. Hoje tem como missão levar ao mundo civilizado as histórias destas pessoas invisíveis. “Sou a voz deles.” No ano passado, o Centro para as Liberdades Civis estimou a existência de 7 mil civis feitos reféns em territórios ocupados pelos russos.

No dia 16 de março completam-se dois anos da sua libertação. Pode dizer-nos como soube que ia ser libertada? Como decorreu o processo de libertação?

Fomos libertados em troca [por russos]. Nem todas as pessoas que estavam comigo foram libertadas. Só soubemos quando nos vieram libertar. Tiraram-nos do campo de trabalhos forçados e levaram-nos para uma base militar em Melitopol [cidade ocupada pela Rússia]. Disseram-nos para irmos para casa e vivermos em paz que iria estar tudo bem, mas como é obvio, na região ocupada, vamos continuar a ser procurados para nos deterem ou algo pior. Aconteceu a algumas pessoas. Ou foram metidos na cadeia ou numa cova. Foi por isso que não fui para casa.

Os russos usaram esquadras e centros de detenção preventiva como locais de tortura, caso deste em Izium, na região de Kharkiv. Em 2023, a Rússia planeava construir seis centros de detenção e 25 colónias penais nos territórios ocupados na Ucrânia, revelou a Associated Press.
Os russos usaram esquadras e centros de detenção preventiva como locais de tortura, caso deste em Izium, na região de Kharkiv. Em 2023, a Rússia planeava construir seis centros de detenção e 25 colónias penais nos territórios ocupados na Ucrânia, revelou a Associated Press.Sofiya Shovikova

Como é que deixou a região ocupada?

Quando fui libertada, comecei a viver noutra aldeia, vivia com uma senhora idosa, na altura não tinha telemóvel, por isso pedia a outras pessoas os seus telemóveis. Enquanto estava no centro de detenção, deitava-me no chão e lembrava-me dos dois telemóveis do meu marido e da minha filha, porque pensava que, se tivesse oportunidade, eles me deixariam ir embora, ou qualquer outra coisa, para me lembrar deles, para não me esquecer. Telefonei à minha filha e ao meu marido, disse-lhes que estava viva e começámos a planear como é que eu ia sair dali. E eles financiaram a minha partida, deram-me dinheiro e eu arranjei uma transportadora e, assim, saí por Novoazovsk, passei pela Rússia, Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, e cheguei até à Ucrânia [não ocupada]. Custou-me mil dólares a viagem toda.

Conseguiu sair sem documentos?

Ainda tinha o passaporte ucraniano. Sem documentos não conseguiria sair da Ucrânia.

Na conferência afirmou que lhe tiraram a vida. Como era a sua vida antes da invasão e como é agora?

São duas vidas diferentes. Nunca voltará ao mesmo. Havia uma vida normal, comum, quando se vai trabalhar, se tem a sua própria família, se está envolvido nos seus assuntos familiares, se tem um emprego. A casa e o carro são danos materiais mas o mais importante que me tiraram são as minhas memórias. Por exemplo, as minhas filhas frequentaram uma escola de música e eu tinha arquivos inteiros de filmagens delas a atuarem, na Ucrânia e no estrangeiro, das nossas viagens às montanhas. São 20 anos de memórias que tinha em arquivos de vídeo que me foram tirados. Nem percebo por que é que precisavam disto. Agora, como perdi tudo o que tinha, até a memória, vivo apenas o presente. O mais importante é que eu participo no ativismo para ajudar de alguma maneira a libertar os civis, embora eu entenda que pessoalmente não posso mudar nada, mas posso chamar a atenção, falar da minha própria história, para que as pessoas não se esqueçam que há prisioneiros. Depois também ajudo aqueles que são libertados do cativeiro, a coordenarem-se para saberem o que devem fazer agora, onde podem ir para obter ajuda para a reabilitação, como podem requerer certos documentos, para eventualmente obterem ajuda financeira. Outra parte integrante da minha vida agora é levar os juízes a reconhecer aqueles que me fizeram passar por estas coisas como criminosos militares e, claro, é necessário levar tudo isto aos tribunais internacionais. Considero que é o meu dever principal. Fui identificada como vítima em três processos relativamente a três pessoas que já estavam devidamente identificadas, e quero que, mais tarde, todos estes julgamentos sejam transmitidos ao tribunal internacional e que estas pessoas sejam reconhecidas como criminosos de guerra e sejam punidas de acordo com o direito internacional.

“Nós tivemos sorte, apesar de que, obviamente, pensávamos que aquilo não eram condições humanas. Mesmo assim fomos torturados, fomos violados.”

Quando chegou à Ucrânia livre foi para Kiev? Reuniu-se com a família?

Não, não foi possível reunirmo-nos. Fui para Zaporijia, porque os crimes tinham sido cometidos no território daquela região e eu tinha de registar esses crimes. Apesar de me terem oferecido para ficar no estrangeiro para passar por um processo de reabilitação, mas eu disse que não podia, porque tinha de apresentar queixa na polícia, porque havia criminosos e eu tinha de os identificar e instaurar processos penais. Só quando cheguei a Kiev é que iniciei a minha reabilitação.

REINALDO RODRIGUES

O que foi mais difícil de suportar: a tortura física ou a tortura psicológica?

É claro que a física foi muito pior. Se tivermos a cabeça partida, não nos podemos deitar de maneira nenhuma, é uma dor incrível e ardente. Quando eles estão ali a tentar partir todos os nossos ossos e mais alguns, é muito difícil sobreviver e aguentar isto. A tortura psicológica, o que se diz lá, uma pessoa é inteligente e mais tarde percebe que é tudo um disparate. Eles não sabem muito bem como o fazer, são mais capazes de abusar das pessoas fisicamente, e psicologicamente não conseguem, não estão particularmente preparados. Tudo o que eles diziam é que se eu saísse iria imediatamente para uma prisão ucraniana. E eu até lhes disse que preferia estar numa prisão ucraniana.

Tentou comunicar com os russos?

Era quase impossível comunicar com eles. Como é possível comunicar com uma pessoa que é claramente anormal e que a única coisa que faz é bater-nos em todas as partes? Não há maneira. Depois, quando fomos levados para o campo de trabalhos forçados, também aí não havia maneira de falar com aquelas pessoas. A um desses militares, de alcunha Tsukade, perguntei-lhe como se chamava e por que é que tinha de ficar com ele, ao que respondeu ‘Porque me apetece, vais fazer o que eu te mandar’. Não querem saber de nada, não há maneira de falar com estas pessoas, se quiserem torturar, violar, fazem-no.

Que tarefas tinha no campo de trabalhos forçados?

Das 18 pessoas que foram comigo da prisão para o campo, éramos três mulheres. No início, também tínhamos de cavar, ajudar a construir bunkers nas trincheiras, mas passado um tempo começámos a fazer tarefas domésticas. Tínhamos de lavar, secar e dividir roupa. Depois éramos levados para as casas ocupadas pelos oficiais superiores, éramos basicamente uma empresa de limpeza e também tínhamos de cozinhar. Quero acrescentar que tivemos sorte por ficarmos naquela unidade militar, oriunda da região de Krasnodar, que é muito próxima de nós. Mentalmente, eles não eram tão agressivos. Eram mais humanos, de certa forma. E isso também mostrava que a violação não era tão violenta. Ou seja, quando havia uma violação, ela não acontecia com recurso a outros objetos, nomeadamente armas, paus e bastões. É isso que eu estou a dizer. Nós tivemos sorte, apesar de que, obviamente, pensávamos que aquilo não eram condições humanas. Mesmo assim, fomos torturados, fomos violados. Conheço pessoas que foram levadas para outros campos, onde foram subjugadas aos militares, vindas das regiões da Chechénia ou da Sibéria, de várias etnias, nomeadamente os buriates, em que esses, sim, eram muito, mas muito mais violentos. Também sei que do meu grupo, felizmente, todos sobreviveram, mas que houve execuções, não sei porquê, noutros campos. Se calhar alguém adoeceu e como não havia assistência médica as pessoas foram simplesmente executadas no local. E depois os nossos homens tinham de cavar a sepultura.

Acredita que a sua região vai ser libertada?

Tenho esperança que sim. Como eu dizia quando estava detida, ‘eu não tenho fé, mas tenho esperança’. É mais ou menos o mesmo. Eu quero ter esta esperança, mas não acredito muito. Isto porque junto da minha terra temos a maior central nuclear da Europa, a central de Zaporijia. Estamos a falar de uma infraestrutura estratégica de enorme importância. Tenho dúvidas de que os russos abram mão.

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