"O único crime do meu marido foi defender posições pró-ucranianas"

Tatiana Boshko viu o seu marido ser levado por tropas russas, acusado de ser simpatizante do Batalhão Azov. Foi encontrado dias depois por vizinhos, sepultado junto ao edifício que servia de quartel às forças do Kremlin, com uma "rajada de metralhadora nas costas".
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Por toda a Ucrânia há relatos semelhantes aos que chegam das zonas próximas de Kiev. Lotskyne é uma aldeia a centenas de quilómetros da capital, mas também aqui os moradores descrevem abusos, torturas e assassinatos cometidos pelo exército ocupante. "Olhamos para o que aconteceu em Bucha ou Irpin e percebemos que foi uma questão de tempo. Aqui os ocupantes só ficaram seis dias." E ainda assim bastaram para abalar a vida de Tatiana Boshko.

Na aldeia, como em outras, muitos foram aterrorizados pelos homens às ordens de Putin. Todos têm uma história para contar sobre "os russos". Mas a desta mulher é diferente. Durante dois dias Tatiana não soube do marido. Sentada na cozinha de casa onde o viu pela última vez, acusa os soldados ao serviço do Kremlin de prenderem, torturarem e matarem Serguiy Mikhailovich Boshko. Diz que o marido foi acusado de simpatizar com o Batalhão Azov, de extrema-direita. "Ele nem sequer foi à tropa. O único crime que cometeu foi defender posições pró-ucranianas", assegura, enquanto tenta conter as lágrimas. Na tarde de 16 março, um veículo blindado "com o Z desenhado a branco", descreve Tatiana, parou em frente à casa. Os militares invadiram o quintal e levaram Serguiy. "Não se preocupe, não o agredimos. Melhor dizendo, eu e o meu camarada não", atiraram os soldados enquanto arrastavam Serguiy para o veículo. Na manhã seguinte os homens regressaram à casa com o professor reformado. Nessa altura, já tinha uma ferida, junto ao cotovelo, provocada por um tiro. "Procuraram qualquer coisa no quintal e depois voltaram a levá-lo, foi a última vez que o vi." Mais tarde a mulher procurou saber o paradeiro do marido. "Fui ao sítio onde eles tinham o acampamento e disse que estava à procura do prisioneiro com o braço baleado. Perguntaram-me quem o feriu . Eu disse: "Vocês." "Impossível". responderam-me, "a senhora está desinformada"."

Tatiana Bozhko, professora de carreira, como o marido, continuou a procurá-lo por toda a região. Foram os vizinhos que encontraram o cadáver de Serguiy. Estava sepultado num descampado junto ao edifício que servia de quartel às forças russas. "Repararam num braço saído para fora da terra. Desenterraram-no e a posição corporal dele metia medo, os braços estavam torcidos, as pernas também." Devido ao estado em que o cadáver se encontrava, o médico não deixou que Tatiana identificasse o corpo. Foi o filho Volodymyr que se encarregou de tudo. "Ele tinha uma rajada de metralhadora nas costas", revela o rapaz, que até aí seguira em silêncio o testemunho da mãe.

Quando invadiram a casa de Serguiy, os soldados não perguntaram nem o nome nem o apelido. "Perguntaram só onde estava o meu marido", lembra a mulher. A versão coincide com a que conta Svetlana Fedurko, a presidente da câmara de Lotskyne. "Quando chegaram já traziam uma lista de pessoas, com apelidos e tudo. Estavam à procura de simpatizantes do Azov, pessoas com armas, pessoas que estavam a preparar-se para a tropa", revela, acrescentando que vários foram presos. "Sinto culpa porque não consegui proteger o meu povo", conclui.

Já Tatiana sustenta que o marido foi denunciado por um vizinho. "Ele estava com os russos, almoçou com eles, e gritava que o Serguiy era parte de um grupo colaboracionista dos nazis durante a II Guerra Mundial e que, por causa dele, os filhos - que depois de terem sido alunos passaram a ser amigos do meu marido - também ficaram do lado ucraniano."

Na noite de 11 de março, Svetlana foi acordada por quatro homens armados que espreitavam pela janela do quarto onde dormia. "Eu assustei-me e, provavelmente, isso viu-se na minha cara, porque quando eles estavam a conversar comigo um deles disse para eu não ter medo. Eles já sabiam quem eu era." Conta que se identificaram como soldados da República Popular de Donetsk. Estavam nitidamente alcoolizados. "Um ia apontando a arma ou para mim ou para os pés. Mas isto tudo sem ter nenhum comportamento agressivo", conta a líder política da aldeia. Os militares apresentaram-se como sendo o novo governo local e estavam na aldeia para a colocar "na ordem". "Vocês estão a ver aqui alguma desordem?", retorquiu a mulher. Os soldados de Putin responderam apenas que tinham vindo "para que a aldeia vivesse melhor".

Nos dias seguintes, a nova polícia local passou a ir várias vezes por dia a casa da autarca: "Quando apareciam, vinham sempre de arma em punho."

Quando a família de Serguiy conseguiu recuperar o cadáver, Tatiana fez questão de o mostrar ao homem que acusa de ser o denunciante: "Gritei-lhe: "Aprecia a tua obra." Ele ficou sem fôlego, só disse que não tinha culpa. Depois chegou a mulher dele e afirmou que ouviu como ele entregou o meu marido aos russos. Por causa disto já se separaram. Os vizinhos também disseram que ouviram e que vão testemunhar no tribunal."

Falámos com Tatiana no dia em que completou 61 anos. O marido era um pouco mais novo, ia festejar 60 no próximo verão. "Tínhamos planos. Íamos começar umas obras... E agora não foi feito nada. Quando ele foi levado, a minha nora estava cá com os dois filhos, de sete e nove anos. Ele adorava-os. Iam ver o mar no verão. Sonhavam como ir à pesca com o avô. Desmoronou-se tudo. Não se partiu em dois, foi feito em pedaços por esses russos."

O exército russo abandonou a aldeia, mas não para muito longe. A frente está agora a cerca de 10 quilómetros. O som dos tiros de artilharia continua a invadir a aldeia, como que a lembrar que os ocupantes podem voltar a qualquer momento. Tatiana não tem planos para abandonar a casa onde mora: "Vou ficar aqui, mas nunca mais me vou calar. Vou todos os dias ao cemitério visitar o Serguiy, não o posso abandonar aqui."

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