Funeral de Faezeh Rahimi, uma das vítimas do atentado em Kerman.
Funeral de Faezeh Rahimi, uma das vítimas do atentado em Kerman.Arash Khamooshi/The New York Times

O terrorismo no Irão expõe uma vulnerabilidade que o país não pretende admitir

Não é claro até que ponto os iranianos aceitam as alegações de responsabilidade israelita no atentado de Kerman. Mas, se os líderes esperavam unir o público contra um inimigo comum, não parecem ter conseguido. Muitos iranianos, tanto críticos como apoiantes da República Islâmica, expressaram raiva contra o Governo.
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Durante anos, o Irão justificou a sua presença militar no Iraque e na Síria, perante o seu próprio povo e o mundo, como uma estratégia para manter os grupos terroristas à distância. Os dirigentes iranianos orgulhavam-se frequentemente do facto de combaterem os terroristas diretamente ou através de milícias por procuração na região, o que significava que não tinham de os combater no seu país.

Este sentimento de segurança foi abalado no passado dia 3, com o ataque terrorista mais mortífero desde a fundação da República Islâmica em 1979: duas explosões suicidas na cidade de Kerman que resultaram em 94 mortos, incluindo 30 crianças, e mais de 200 feridos. O grupo Estado Islâmico, inimigo declarado do Irão, reivindicou a responsabilidade pelo ataque.

No entanto, mesmo após a declaração do grupo terrorista, os dirigentes iranianos e os especialistas próximos do governo insistiram - tal como fizeram no rescaldo imediato do ataque - que o culpado seria outro inimigo, Israel. A agência noticiosa Tasnim, o braço mediático da Guarda Revolucionária do Irão, chegou mesmo a afirmar que “Israel ordenou ao ISIS que assumisse a responsabilidade pelo ataque”. Também o presidente iraniano, Ebrahim Raisi, numa cerimónia de homenagem às vítimas, em Kerman, afirmou que o Irão iria retaliar e culpou Israel e os Estados Unidos.

Seja qual for a opinião real dos dirigentes, culpar Israel e os Estados Unidos é muito mais conveniente, dizem alguns analistas e opositores do governo, do que admitir que o Estado não consegue proteger o seu povo do terrorismo. O ataque fere a imagem do Irão como sendo capaz de exercer poder nas guerras da região sem sofrer uma retaliação em grande escala no seu país.

As autoridades judiciais iranianas anunciaram a detenção de todos os envolvidos no atentado suicida em Kerman. “Trinta e duas pessoas foram detidas em conexão com o crime de Kerman e estão a ser interrogadas”, disse o procurador da cidade, Mehdi Bakhshi. Teerão informou que um dos bombistas suicidas era do Tajiquistão, mas a identidade do segundo não foi ainda confirmada. 

O procurador afirmou que, nos últimos dias, “foram descobertas 16 outras bombas” na província de Kerman, “mais potentes” do que as utilizadas no atentado.  

A polícia descobriu ainda dois coletes suicidas, dispositivos de controlo remoto para detonar explosivos, granadas, milhares de estilhaços para utilizar em coletes suicidas e fios e dispositivos explosivos que, de acordo com as autoridades, sugerem que os atacantes estavam a planear outros ataques. O grupo Estado Islâmico emitiu nova declaração em que ameaçava mais ataques e afirma que as explosões de Kerman marcam “o início da nossa guerra” com o Irão.

Não é claro até que ponto os iranianos aceitam as alegações de responsabilidade israelita. Porém, se os líderes iranianos esperavam unir o público contra um inimigo comum, não parecem ter sido bem sucedidos. Em vez disso, muitos iranianos comuns, tanto críticos como apoiantes da República Islâmica, expressaram a sua raiva contra o governo.

Os conservadores leais à ideologia dos clérigos que governam o país afirmam que a resposta tímida do Irão às violações da segurança de Israel encorajou este país ou outros intervenientes, como o grupo Estado Islâmico, a atacar. Ao longo dos anos, Israel tem levado a cabo numerosos ataques contra as instalações militares e nucleares do Irão e tem assassinado os seus cientistas nucleares e outros, mas esses ataques têm sido dirigidos a alvos específicos, não os assassínios em massa indiscriminados reivindicados pelo grupo Estado Islâmico.

“A opinião entre os revolucionários é de uma esmagadora consternação e insatisfação. Neste momento, estamos a ser atingidos vezes sem conta e não fazemos nada”, disse Aboozar Nasr, um comerciante de 44 anos da cidade religiosa de Qom, numa entrevista telefónica. Considerava-se um conservador seguidor do governo de linha dura. 

“Se a política é de contenção, então os dirigentes devem parar com a retórica ameaçadora”, disse. “Soa vazia e falsa”.

O Irão apoia e ajuda a armar o Hamas, o grupo palestiniano que liderou o ataque de 7 de outubro a Israel, que retaliou com uma campanha de bombardeamento devastadora e uma invasão da Faixa de Gaza. Também arma o Hezbollah no Líbano e os Houthis no Iémen, que intensificaram os ataques a Israel durante a guerra contra o Hamas.

Os Houthis já atacaram embarcações no Mar Vermelho e impediram a passagem de navios com destino a Israel, perturbando a navegação internacional, enquanto os representantes iranianos lançaram ataques quase diários às bases americanas na Síria e no Iraque.

Em vários debates nas redes sociais, oradores de diferentes cidades e de diferentes fações políticas do Irão questionaram por que razão e de que forma - dado o aumento das tensões na região - as forças de segurança não tinham previsto a ameaça de um ataque e tomado mais precauções para o evitar.

“A República Islâmica faz sempre bluff. Apenas sabem intimidar o seu próprio povo. Não conseguem garantir a segurança deste país”, disse Mohsen, um engenheiro de 39 anos, numa entrevista telefónica a partir de Teerão. Pediu que o seu apelido não fosse divulgado por receio de represálias.

Os atentados suicidas de dia 3 atingiram um memorial do general Qassem Soleimani, no aniversário da sua morte em 2020 devido a um ataque de um drone dos EUA no Iraque. Soleimani orientou o papel crucial desempenhado pelo Irão e pelos seus aliados na derrota militar na Síria e no Iraque do Estado Islâmico, um grupo extremista muçulmano sunita que considera a maioria muçulmana xiita do Irão como herege. Os EUA acusaram-no, porém, de orquestrar ataques contra militares americanos na região, de permitir que o Irão dominasse o Iraque do pós-guerra e de armar grupos militantes que lutam contra Israel.

Memoriais no aeroporto de Bagdade, onde o major-general Suleimani foi assassinado pelos EUA em 2020.
Sergey Ponomarev/The New York Times

O grupo Estado Islâmico também assumiu a responsabilidade por um ataque em 2018 numa parada militar iraniana que matou 25 pessoas, tendo o governo prometido vingança contra os Estados Unidos, as nações do Golfo Árabe e Israel. O grupo Estado Islâmico também reivindicou dois ataques separados de homens armados a um santuário xiita em Shiraz, em 2022 e 2023, que mataram cerca de uma dúzia de pessoas.

Segundo várias mulheres entrevistadas em Teerão, o ataque terrorista desta semana reforçou o sentimento de que não estão totalmente seguras em espaços públicos no Irão. Afirmaram que as mulheres que desafiam a regra do hijab e não tapam o cabelo já correm o risco de se confrontarem violentamente com agentes de segurança e de serem multadas.

“Depois dos recentes ataques, decidi não ir a sítios com muita gente. O medo da insegurança está sempre presente”, disse Arezou, uma mãe que fica em casa a cuidar dos filhos em Teerão, numa entrevista.

Para os líderes iranianos, a ameaça de ataques terroristas em grande escala vem juntar-se à sua lista crescente de desafios, tanto a nível nacional como internacional. A economia mantém-se instável devido às sanções dos EUA, à má gestão e à corrupção. As perspetivas de um regresso a um acordo com o Ocidente para limitar o programa nuclear do Irão, que traria um alívio das sanções, parecem escassas.

Perante meses de manifestações em massa em 2022, exigindo o fim do regime clerical, o governo respondeu com uma violência brutal, matando centenas de manifestantes, à semelhança do que fez para reprimir os protestos em 2019.

A guerra entre Israel e o Hamas coloca novos desafios à liderança do Irão, com as suas milícias aliadas ativamente envolvidas na luta. O Irão tem evitado um envolvimento direto ou consequências no seu próprio território.

Contudo, nas últimas semanas, um alto comandante da Guarda Revolucionária do Irão foi morto na Síria e o vice-líder político do Hamas - um dos elos de ligação do grupo com o Hezbollah e o Irão - foi morto em Beirute, ambos em ataques amplamente atribuídos a Israel, e os Estados Unidos assassinaram um alto comandante de um grupo militante iraquiano próximo do Irão, num ataque com um drone em Bagdade.

“A República Islâmica está extremamente consciente de que estes ataques em conjunto podem ser uma armadilha para disseminar a guerra no Irão”, disse Sasan Karimi, um analista político baseado em Teerão. “Todos estão furiosos. Querem reagir com contenção e ponderação para evitar um erro estratégico que possa pôr em causa o seu controlo do poder a nível interno e regional”.

Mesmo com a escalada da retórica de guerra, o líder supremo iraniano, ayatollah Ali Khamenei, deu instruções aos comandantes militares para prosseguirem a “contenção estratégica” e evitarem a todo o custo um confronto militar direto com os EUA, segundo dois iranianos familiarizados com os debates internos.

Ainda assim, alguns dos mais radicais apelam ao Irão para que faça uma forte demonstração de força.

“A nova campanha de assassinatos, antes de chegar a um ponto trágico, deve resultar num ataque conjunto; caso contrário, as nossas mãos continuarão no gatilho. Todos os dias, temos de clamar por mais mártires. Não se trata de entrar em guerra, trata-se de dissuasão”, afirmou Mahdi Mohammadi, conselheiro do presidente do parlamento iraniano e antigo comandante da Guarda Revolucionária, numa publicação no X, antigo Twitter.

No dia 4, o general Ismail Ghani, sucessor de Soleimani na chefia da poderosa Força Quds da Guarda Revolucionária, visitou o cemitério de Kerman, palco do ataque suicida. Vestido de preto e não com o uniforme militar, ajoelhou-se junto à campa de Soleimani, colocou as mãos sobre a lápide e rezou.

Uma vasta multidão à sua volta entoava: “Vingança, Vingança”.

c.2024 The New York Times Company


Este artigo apareceu originalmente no New York Times 

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