Funcionários transportam as máquinas de voto eletrónicas para a primeira fase das eleições. 
Funcionários transportam as máquinas de voto eletrónicas para a primeira fase das eleições. EPA/RAJAT GUPTA

O terceiro duelo na Índia entre o herdeiro de três primeiros-ministros e o filho do vendedor de chá 

Eleições começam esta sexta-feira e têm sete fases. Só a 4 de junho se saberá se Rahul Gandhi, do Partido do Congresso, conseguirá desta vez derrotar o líder nacionalista hindu, Narendra Modi. História pessoal, pensamento económico e ideia de Índia contam na hora do voto. 
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Depois de ter sido derrotado sem apelo nem agravo por Narendra Modi em 2014 e 2019, e acusado de falta de carisma até por alguns dos próprios apoiantes, Rahul Gandhi decidiu desta vez ser implacável no desafio ao primeiro-ministro indiano, com uma campanha agressiva. E o recente relatório Hurun que identificou Mumbai como a cidade asiática com mais multimilionários (e a nível mundial só atrás de Nova Iorque e de Londres) deu-lhe argumentos para falar da persistência das desigualdades na Índia. “A pobreza não pode ser erradicada de uma só vez, mas pode sofrer um duro golpe. Uma das principais razões para a pobreza no país é que Narendra Modi deu toda a riqueza do país a algumas pessoas selecionadas.”

Depois das derrotas em 2014 e 2019 face a Modi, Rahul Gandhi tenta desta vez chegar à vitória.
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Com o seu Partido do Congresso a liderar uma coligação de 26 partidos (dos comunistas a forças regionais), Gandhi espera este ano conseguir a vitória que lhe tem fugido desde que entrou na vida política ativa, seguindo o modelo do bisavô, da avó e do pai, que foram todos primeiros-ministros. O problema é que o pertencer a uma dinastia política - é bisneto de Jawaharlal Nehru, neto de Indira Gandhi e filho de Rajiv Gandhi (o apelido Gandhi é por causa do marido de Indira, não tem que ver com o Mahatma Gandhi) - é tanto uma vantagem como uma desvantagem. E quando se fala de riqueza e de pobreza, o eleitorado indiano não pode deixar de ver o contraste entre alguém que cresceu em berço de ouro, e até estudou em Harvard e Cambridge, e o rival Modi, filho de um vendedor de chá que nunca foi para a universidade, pelo que os ataques recentes sobre persistência da miséria dificilmente vão alterar as previsões de vitória do BJP, o partido nacionalista hindu nestas eleições legislativas que decorrem em sete fases e envolvem 968 milhões de eleitores. A primeira fase começa já hoje, e a última será no dia 1 de junho, com os resultados a deverem ser a anunciados a 4 de junho.

“Para as eleições gerais indianas de 2024, todas as sondagens e até a vontade da maioria dos indianos indicam que o atual partido no poder, o BJP, será o vencedor. Isto, visto que, nos recentes resultados eleitorais em várias províncias indianas, o BJP não surgiu apenas como um grande vencedor, mas também com uma maioria absoluta folgada. E quase todas as grandes províncias que vão eleger o maior número dos deputados para o Lok Sabha, a câmara baixa do Parlamento indiano, são governadas pelo BJP, o que certamente é uma grande vantagem. Não esquecer também que atualmente nenhum outro partido tem um líder tão carismático como Narendra Modi. Esta equação de invencibilidade do BJP fez com que todos os partidos da oposição se unissem, esquecendo as suas divergências, o que não tem sido fácil, para tentar darem uma luta forte ao BJP”, analisa Shiv Singh, professor de Estudos Indianos na Universidade de Lisboa.

O atual primeiro-ministro Narendra Modi é o favorito à vitória.
AFP

A economia sempre foi um ponto forte de Modi desde quando era ministro-chefe do Gujarate, um estado com tradição mercantil que se tem destacado nos últimos anos pelo crescimento na casa dos dois dígitos (bem acima dos 7,2% da Índia em 2023, que até foi o mais alto entre as grandes economias). Foi, aliás, já no segundo mandato de Modi como primeiro-ministro que o PIB da Índia conseguiu passar o do Reino Unido, tornando-se a quinta maior economia do mundo. Para uma Índia que viu a colonização britânica deixar um rasto de pobreza identificável pelas estimativas histórica (passou de um quarto da riqueza global no início do século XVIII para 4% no momento da independência, em 1947) foi uma ultrapassagem cheia de simbolismo. Mas ser pró-negócios significa também estar próximo dos grandes empresários, e o BJP não se consegue livrar dessa fama, pelo menos com tantas dificuldades em fazê-lo como o Partido do Congresso tarda em deixar de ser visto como herdeiro de uma visão estatizante da economia.

A favor do BJP joga a redução da pobreza na última década, mesmo que haja ainda um longo caminho a percorrer para reduzir desigualdades, como sublinha Eugénio Viassa Monteiro, professor na AESE (Lisboa) e no IIM (Rothak): “O último Relatório da ONU dizia que 415 milhões de pessoas tinham saído da pobreza na Índia. A ONU destacou que é uma conquista notável da Índia. De acordo com o relatório, citado pelo jornal The Hindu, as pessoas multidimensionalmente pobres e carentes no indicador de nutrição na Índia diminuíram de 44,3% em 2005/2006 para 11,8% em 2019/2021, e a mortalidade infantil caiu igualmente. Os pobres e privados de combustível para cozinhar caíram de 52,9% para 13,9% e os privados de saneamento caíram de 50,4% em 2005/2006 para 11,3% em 2019/2021, ainda segundo o relatório. No indicador de água potável, o percentual de pessoas multidimensionalmente pobres e carentes caiu de 16,4 para 2,7 no período, de eletricidade de 29% para 2,1% e de habitação de 44,9% para 13,6%.” Viassa Monteiro, também presidente da Associação de Amizade Portugal-Índia, acrescenta que “apesar de o país estar no bom caminho, a pobreza nas grandes cidades como Mumbai é visível e chocante, com centenas de pessoas a viverem na rua. Os bairros de lata ainda persistem nas grandes cidades e mesmo muitas casas de habitações de trabalhadores rurais são de muitíssima baixa qualidade. É um assunto que clama para a celeridade nas medidas na construção de casas de habitação económica em todo o país”. 

O duelo entre Gandhi e Modi tem uma outra frente importante além da economia, que tem que ver com a ideia de Índia. O país, com 1400 milhões de habitantes, tornou-se este ano o mais populoso do mundo, e a sua diversidade é enorme, tanto linguística como religiosa. O Partido do Congresso conseguiu reunir uma vasta aliança anti-BJP acenando com a preferência clara que os nacionalistas hindus dão tanto à religião hindu como, de certo modo, à língua hindi. É que, enquanto em 1947 Nehru e o Mahatma Gandhi, e hoje Rahul Gandhi também, defenderam uma Índia plural (ela que ainda hoje conta com 200 milhões de muçulmanos, 30 milhões de cristãos e 20 milhões de sikhs, fora outras comunidades), o BJP é o herdeiro de uma linha política que defende a hinduidade e considera que o Estado deve ter em conta o caráter hindu da maioria do povo. A nível internacional, a promoção da hinduidade tem gerado críticas a Modi, que desde muito jovem militou nas fações extremistas hindus, mas a nível interno até pode atrair mais votos do que aqueles que fará perder. Ideia de Índia será certamente, tal como a pobreza, tema quente nestas eleições na "maior democracia do mundo".

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