"O que vemos são os serviços secretos russos a interferir nos nossos processos democráticos"

Norueguês Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, esteve em Lisboa para a Assembleia Parlamentar que reúne eleitos dos 30 países-membros, e em conversa com o DN responsabilizou a Rússia pelas novas tensões, justificou a retirada do Afeganistão e explicou por que não considera a China inimiga. Também elogiou o empenho de Portugal na organização.
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Depois da recente expulsão de oito russos do quartel-general da NATO em Bruxelas, por espionagem, qual é neste momento o estado das relações com a Rússia?
A relação da NATO com a Rússia está num ponto baixo, porque temos vindo a assistir, num desenvolvimento de muitos anos, à sua deterioração. Lamento isso e tenho trabalhado muito para fortalecer o diálogo com a Rússia, mas aquilo que vemos é uma Rússia que usou a força militar contra um vizinho - a Ucrânia - e continua lá; também vemos ciberataques e os serviços secretos russos a interferirem nos nossos processos democráticos; ataques à organização pela proibição de armas químicas; o ataque Skripal em Salisbury... Temos também vários relatórios sobre a atividade russa na Europa, e pelo que vemos ela está mais agressiva no estrangeiro e internamente. A NATO tem pressionado fortemente para que haja diálogo com a Rússia e continuamos a encontrar-nos com eles - eu reuni-me com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, há algumas semanas, à margem da sessão anual de abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas - mas não há muito progresso no nosso diálogo com a Rússia.

Esta tensão crescente com a Rússia irá ajudar os membros da NATO a respeitar o compromisso de disponibilizar 2% do PIB para a defesa ou ainda é uma meta muito difícil para alguns países atingirem?
Todos os nossos aliados reduziram os custos com a defesa com o fim da Guerra Fria e o aliviar da tensão, mas quando reduzimos os custos precisamos também de ser capazes de aumentar a despesa quando as tensões aumentam. O que é o caso agora, com as ações agressivas da Rússia, com as ameaças persistentes da China, com a instabilidade na nossa vizinhança a Sul e o equilíbrio de poder mundial a alterar-se. A boa notícia é que todos os aliados europeus começaram a investir mais - vamos em sete anos consecutivos de aumento da despesa em defesa, num total de 260 mil milhões de dólares de aumento desde 2014, quando tomámos a decisão de começar a incrementar as verbas. Portugal teve também um aumento significativo e eu quero elogiar o país não apenas pelo aumento da despesa com a defesa, mas também pela forma como Portugal, sob o governo de António Costa, está realmente a apoiar a NATO de tantas maneiras diferentes - o policiamento aéreo na região do Báltico, a importância das operações marítimas, a ajuda com as diferentes missões e operações fora do território da NATO. O país foi o anfitrião, no Porto, do maior exercício deste ano - Steadfast Defender 2021 -, além de ter também recebido uma importante iniciativa da NATO, como a ciberacademia que eu tive a honra de inaugurar já neste ano. Portanto, Portugal é um membro fundador e um aliado importante e altamente válido, que contribui para a segurança partilhada da NATO.

Há muita gente a falar da diferença entre as Administrações Trump e Biden, mas há também várias vozes que dizem que não mudou assim tanto a política externa americana, que continua a olhar mais para a Ásia do que para a Europa . Sendo os Estados Unidos um membro essencial da NATO, como é que está a relação com os parceiros europeus? Como é que o recente acordo AUKUS, que junta americanos, britânicos e australianos, afetou a relação entre os 30 membros da Aliança Atlântica?
Agora temos a Administração americana com o presidente Joe Biden, que está empenhado em trabalhar com a Europa e que quer realmente revigorar alianças e construir uma amizade mais forte com os aliados europeus da NATO. Ele afirmou isso repetidamente e demonstrou-o, não apenas por palavras, mas também em ações, e o acordo AUKUS não alterou isso. Nos últimos anos os EUA têm aumentado os seus investimentos militares na Europa em mais pessoas e equipamento, novas unidades, novos navios. A América do Norte e a Europa estão cada vez mais unidas. O acordo AUKUS não foi contra a Europa ou a NATO. Ele demonstra, sim, que dois aliados da NATO - Reino Unido e Estados Unidos - estão a trabalhar com outro parceiro próximo, a Austrália. Compreendo que a França esteja desapontada, mas não devemos transformar isto num golpe transatlântico, porque não há nenhuma razão para isso.

Gostaria de ouvir o seu comentário sobre a decisão de retirar do Afeganistão. A NATO esteve lá duas décadas, militares portugueses estiveram lá, combateram lá e morreram lá, tal como militares de dezenas de outros países. Pensa que esta retirada do Afeganistão afeta a credibilidade da NATO, por permitir o regresso dos talibãs?
A decisão de terminar a nossa missão militar no Afeganistão foi muito difícil, porque enfrentámos um dilema: ou saíamos e havia o risco de os talibãs regressarem - estávamos conscientes desse risco quando tomámos a decisão - ou ficávamos e havia o risco de ter de haver ação por parte da missão militar com mais baixas, mais violência, além de que seria necessário aumentar a presença das tropas da NATO. Face a esse dilema, com duas opções difíceis, os aliados tomaram a decisão depois de extensas deliberações - três reuniões ministeriais, muitas reuniões a nível diplomático...

Não foi uma decisão americana, seguida pelo resto da NATO?
Não. Eu presidi a essas reuniões. Depois, claro, os aliados tinham opiniões diferentes, isso faz parte das conversações, mas no final tomámos a decisão em conjunto, em meados de abril, de terminar a nossa missão no Afeganistão. Conhecendo os riscos, mas sabendo também que ficar aumentaria os riscos de um conflito aberto com mais baixas e a necessidade de aumentar o número de tropas. Assim, tomámos essa decisão em conjunto. A crise no Afeganistão não muda a necessidade fundamental de a Europa e a América do Norte se manterem unidas. Nós temos uma parceria histórica única que não deve cessar, porque temos uma Administração americana que está muito empenhada em trabalhar com os aliados europeus. Acordámos uma agenda ambiciosa na cimeira da NATO, em junho deste ano, sobre como fazermos mais coisas juntos na defesa, na tecnologia, na abordagem às alterações climáticas e em muitas outras áreas, e é nisso que nos devemos focar e é isso que temos de implementar.

A China é um crescente desafio militar para a NATO ou é um tipo de rival diferente da Rússia?
Nós, na NATO, não olhamos para a China como um inimigo e acreditamos sinceramente que temos de trabalhar com a China em questões como as alterações climáticas ou o controlo de armas. Ao mesmo tempo, temos de levar em conta as implicações na segurança do crescimento da China. Eles são a segunda maior economia do mundo, têm a maior Marinha de Guerra, investem fortemente em novos sistemas avançados de armamento, incluindo sistemas nucleares de mísseis de longo alcance... E também vemos mais assertividade no mar do Sul da China, com novas bases militares a tentarem controlar toda a região. Além de vermos também uma China mais opressora no geral, ao tentar acabar com os direitos democráticos em Hong Kong, perseguindo opositores na China. Claro que tudo isto é importante para a nossa segurança e torna ainda mais importante a união de todos os aliados na NATO.

Em relação à sua sucessão, que terá lugar no próximo ano, fala-se muito que vai ser alguém de Leste, talvez uma mulher. Portugal é um dos poucos membros fundadores da NATO que não teve um secretário-geral até agora. Até que ponto é importante para a NATO que alguém de um pequeno país atlântico, como a Noruega ou Portugal, possa chegar a esse lugar?
Estou focado no meu trabalho como secretário-geral, que é assegurar que a NATO continua a mudar, e também a preparação de uma cimeira muito importante no próximo ano, em Espanha, em que vamos tomar decisões sobre o futuro. Por isso não estou focado em quem me vai suceder, além de que não me compete a mim decidir.

O facto de um antigo primeiro-ministro da Noruega ser hoje o secretário-geral da NATO significa que esta é verdadeiramente a aliança de todos, independentemente de pequenos ou grandes?
Sim. A NATO é uma aliança onde todos os membros têm um lugar à mesa, uma palavra a dizer e onde se procura o consenso. Portanto, para países como a Noruega, um país pequeno, a NATO é uma plataforma para se encontrarem com os aliados maiores e discutirem com eles em igualdade.

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