Um dos motes da campanha de Kamala Harris, We’re not going back (Não vamos voltar atrás), referia-se em simultâneo ao regresso de Donald Trump à Casa Branca e à regressão de direitos e liberdades civis. Sobre o primeiro, as dúvidas ficaram dissipadas na própria noite eleitoral, ao contrário das eleições de 2020. Foi o que se pode classificar de vitória sem espinhas, com margens suficientemente grandes e um processo de contagem melhorado nalguns estados que permitiram a definição do resultado de forma mais expedita. Além da vitória no colégio eleitoral, e quando faltavam os resultados em três estados, tudo leva a crer que o candidato republicano seja também o mais votado em termos absolutos, ao contrário de 2016, quando Hillary Clinton obteve quase mais três milhões de votos. Além disso, a maioria do Senado passou também para os republicanos. Em dúvida está o controlo da Câmara dos Representantes, atualmente com uma magra maioria republicana. .Quanto ao segundo significado da frase cantada pelos apoiantes de Harris, a resposta não é simples. As grandes bandeiras da democrata, o direito ao aborto e a defesa da democracia, acabaram por não ter o reflexo pretendido nas urnas, quando o adversário fez uma campanha centrada na imigração e na economia. Foram estes dois temas que decidiram o sentido de voto, como se pode ver na sondagem da Associated Press VoteCast, que englobou 115 mil eleitores de todos os estados: a economia e o emprego foi o que motivou 39% e a imigração 20%. Na hora de escolher um candidato, a pergunta que Trump fazia em todos os comícios (“Estão melhor agora do que há dois anos?”) ressoou entre os eleitores que ainda hoje pagam as consequências económicas da pandemia, em especial a inflação. .Harris tentou dizer o menos possível sobre a maior parte dos temas, depois de ter sido criticada por dizer que não mudava nada em relação ao mandato de Joe Biden. Afirmava que a sua primeira prioridade era restituir o direito federal à interrupção voluntária da gravidez, mas esse tema foi referido por apenas 11% dos eleitores como o fator que determinou o sentido de voto. O apoio do eleitorado feminino - 54% escolheu a democrata - acabou por ser insuficiente..Além disso, a questão foi dirimida em 11 estados, o que de alguma forma poderá ter refreado algum sentimento revolta entre essas faixas do eleitorado. Refira-se, por curiosidade, que só num estado, a Carolina do Sul, a iniciativa para aplicar o direito ao aborto da Constituição estadual foi rejeitada pelos eleitores. Na Florida, medida semelhante acabou por não ser adotada porque a sua aprovação exigia 60% e ficou-se com 57% de votos favoráveis. .O tom sombrio da campanha de Trump, durante a qual disseminou teorias da conspiração como, por exemplo, a de que imigrantes haitianos estavam a comer cães e gatos, e espalhou insultos misóginos e racistas, acabou por não pesar, nem os avisos do outro lado da barricada para o perigo “fascista”. E, a avaliar pelo seu discurso de vitória, aparenta ser uma página virada. “É altura de ultrapassar as divisões dos últimos quatro anos. É altura de nos unirmos, e vamos tentar. Temos de tentar”, disse ladeado pela família e pelo vice-presidente eleito, J.D. Vance, em Palm Beach..Quatro anos que incluíram uma tentativa de subversão dos resultados eleitorais de 2020, em que enfrentou críticas entre os membros do seu partido, e várias investigações e acusações do Departamento de Justiça. Foi condenado em tribunal por abuso sexual e por difamação em dois processos relativos à escritora E. Jean Carroll; a sua empresa foi condenada por fraude em Nova Iorque; e também na sua cidade natal foi condenado por falsificação de documentos para ocultar o pagamento do silêncio de Stormy Daniels - a sentença foi adiada para depois das eleições. A caminhada de Trump de regresso à Casa Branca ganhou corpo a partir do momento em que as acusações criminais começaram a ser conhecidas. Até então, o pré-candidato favorito entre os republicanos era o governador da Florida, Ron DeSantis. O discurso de vitimização de Trump e de mobilização do seu eleitorado atingiu outro patamar com a tentativa de assassínio durante um comício em julho, mês em que Joe Biden decidiu dar lugar à vice-presidente. .E agora?.Segundo uma análise realizada pelo The Washington Post, desde o lançamento da sua campanha, em novembro de 2022, Trump fez 41 promessas sobre o que iria fazer no primeiro dia enquanto presidente - promessas que foram repetidas mais de 200 vezes. As medidas em que mais insistiu foram o o corte do financiamento de escolas que ensinem a “teoria crítica da raça” e “a insanidade transgénero”, e a expulsão de imigrantes sem documentos, a “maior operação de deportação na história americana”..Estas medidas inserem-se no Projeto 2025, um programa de 900 páginas da lavra da Heritage Foundation, um grupo de reflexão do universo de Trump. No campo da educação, o documento defende o corte de programas federais e inclusive o fim do Departamento de Educação. No que respeita à imigração, o Projeto 2025 aponta para uma nova agência de imigração e de patrulha de fronteiras enquanto voltaria o projeto de construção de mais muro na fronteira com o México, e construção de campos de detenção de imigrantes. Sugere a utilização de militares para deportar milhões de imigrantes não legalizados. .Outras medidas bandeira do Projeto 2025 passam por colocar o Departamento de Justiça e órgãos como o FBI sob controlo do presidente, ou contratar quadros leais a Trump nas agências federais - para lá daqueles que são nomeados pelo presidente. No campo económico, quer acabar com a independência da Reserva Federal, propõe um aumento de tarifas aduaneiras, enquanto renova os cortes fiscais por si promulgados em 2017 e que terminam em 2025. A deportação de milhões seria também uma medida com enorme impacto na mão de obra disponível. Para ajudar a levar este programa avante, em especial no corte de despesas, Trump conta com o bilionário Elon Musk..No que respeita à política externa, é de esperar a continuação da guerra comercial com a China, enquanto para os aliados as guerras em curso são a maior preocupação. Trump disse uma e outra vez que quer acabar com os conflitos armados - e prometeu acabar com a guerra da Ucrânia em 24 horas e até antes de tomar posse. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que foi qualificado por Trump de “melhor vendedor de sempre” por sair com 60 mil milhões de cada vez que visita os EUA (64 mil milhões é o valor total da ajuda militar a Kiev desde a invasão russa), disse apreciar a a abordagem de Trump, “a paz através da força”, o que disse ser “exatamente o princípio que pode praticamente aproximar a paz justa na Ucrânia”. Em Moscovo, as reações dos porta-vozes do Kremlin e do MNE foram de indisfarçável regozijo. Quanto ao Médio Oriente, enquanto a Autoridade Palestiniana e o Hamas adotaram a postura de esperar para ver, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu foi um dos primeiros a congratular Trump, esperando apoio incondicional deste seja em relação a Gaza, ao Hezbollah ou ao Irão. .cesar.avo@dn.pt