"O Japão precisa de mais capacidades militares para a sua defesa"

"Segurança: da Europa ao Indo-Pacífico" é o nome da conferência que o Clube de Lisboa organiza amanhã no auditório da EMSA, a Agência Europeia de Segurança Marítima, em Lisboa. Luís Tomé, professor catedrático de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, onde é diretor do OBSERVARE-Observatório de Relações Exteriores, é um dos conferencistas e conversou com o DN sobre a atual situação em termos de segurança na Ásia do Sul e Oriental.

A invasão da Ucrânia pela Rússia e o choque entre o Ocidente e Moscovo vem favorecer a China ou não? Por um lado, os EUA desviam a atenção do Indo-Pacifico, aliviando a pressão sobre Pequim, por outro, fica claro que, se esta determinação americana veio para ficar, Pequim terá sérios problemas numa tentativa de reunificação com Taiwan pela força.
A invasão russa da Ucrânia colocou a China numa posição incómoda: ocorreu apenas 20 dias depois de uma visita de Putin a Pequim e da proclamação de uma "amizade sem limites", o que somado ao facto de nunca ter condenado essa invasão nem impor sanções à Rússia, a posiciona ao lado da agressora; é uma clara violação da integridade territorial que Pequim apregoa como pilar da segurança e legalidade internacionais; agrava o quadro económico mundial num contexto em que a China precisa de recuperar economicamente; reforçou a coesão da UE e da NATO e reabilitou a liderança americana do "Ocidente alargado"; fragilizou a sua quase-aliada Rússia, crucial na competição global da China com os EUA; favoreceu o rearmamento dos aliados dos EUA quer na Europa quer na Ásia-Pacífico; e dá mais argumentos àqueles que defendem que os EUA devem aumentar a entrega de armas a Taiwan. No entanto, Pequim tem tirado proveitos da situação. Desde logo, a Rússia ficou muito mais dependente da China, política e economicamente. A China substituiu muitos dos fornecedores ocidentais e passou a comprar petróleo e gás mais barato à Rússia, com o comércio bilateral a atingir um nível recorde em 2022, aumentando 30% comparativamente a 2021. E Pequim tem procurado promover as suas narrativas e agenda: criticando os EUA, a NATO e o Ocidente; estendendo laços com o "Sul Global"; e pregando a necessidade de uma "nova ordem mundial" e de um sistema de segurança internacional alternativo, como é patente na "Iniciativa de Segurança Global" ou no recente "plano de paz".

O plano de paz chinês para a Ucrânia no dia do aniversário da invasão russa foi uma tentativa desesperada de Pequim para recuperar centralidade no sistema internacional?
Sim, mas com esta iniciativa Pequim visa também outros objetivos: evitar a derrota e o enfraquecimento da Rússia, ajudando Putin a encontrar uma saída; mostrar que se opõe à utilização de armas nucleares; avisar os EUA de que não devem hostilizar a China; passar a imagem de "mensageira da paz" cortejando, em particular, o "Sul Global" e a Europa; e dividir os países europeus e a Aliança transatlântica. Creio que entrámos numa fase em que a Ucrânia se pode tornar numa guerra ou numa paz "por procuração" entre os EUA e a China.

O anúncio do reforço do orçamento militar japonês, depois de décadas de debate sobre rever a Constituição pacifista, é resposta à invasão da Ucrânia mas a pensar mais na China do que na Rússia, apesar do diferendo territorial nas Curilhas?
Sem dúvida. Muito antes da Rússia, a China e depois a Coreia do Norte são as ameaças que norteiam a política de segurança e defesa do Japão e os motivos principais para o seu orçamento de defesa aumentar 26% de 2022 para 2023 ou ter fixado o objetivo de 2% do PIB para a Defesa até 2027 - ultrapassando pela primeira vez desde a II Guerra Mundial a linha psicológica de 1%. A normalização estratégica do Japão vem prosseguindo gradualmente há décadas e acelerou nos últimos anos motivada, sobretudo, pela ressurgência e assertividade da China. A guerra na Ucrânia, o número de testes de mísseis norte-coreanos nunca antes visto e o agravar das tensões geopolíticas intensificam a consciência de que o Japão precisa de mais e melhores capacidades militares para a sua defesa e para a segurança coletiva.

Como entender a abstenção da Índia nas votações condenatórias da Rússia na ONU? A dependência do petróleo barato russo e do armamento também russo conta mais do que a solidariedade entre democracias?
A postura da Índia é orientada por cálculos geopolíticos. A Rússia é uma parceria antiga e crucial da Índia, e é desde há muito o principal fornecedor de armas à Índia, representando atualmente cerca de metade de todas as importações indianas de armamentos. Devemos lembrar ainda que a Índia está com a Rússia em "mecanismos sem o Ocidente" como o grupo BRICS ou a Organização de Cooperação de Xangai. Além disso, a Índia não só substitui certos fornecimentos ocidentais como compra à Rússia petróleo e gás mais barato, cujas importações aumentaram significativamente no último ano. Sobretudo, a Índia não quer ofender a Rússia para não estimular laços de Moscovo com a China e o Paquistão numa lógica anti-Índia nem hipotecar a sua candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU nem complicar relações com outros parceiros relevantes, do Irão à África do Sul.

Que importância dar ao Quad, a aliança informal entre EUA, Japão, Austrália e Índia, no atual contexto mundial?
O Quad surgiu para balancear o poder naval da China e com preocupações de segurança marítima, mas nos últimos dois anos alargou as áreas de cooperação desde as vacinas anti-covid às tecnologias críticas, economia digital, cibersegurança ou crise climática. O alcance e os propósitos do Quad não são totalmente coincidentes entre EUA, Japão, Austrália e Índia, mas esse quadro é visto por todos como complementar às parcerias bilaterais e como contrapeso e contenção da China. Daí Pequim acusar os EUA de quererem fazer do Quad uma "NATO asiática".

Com um crescimento da economia de apenas 3% em 2022 e uma quase inédita quebra demográfica, a China pode afinal não ultrapassar o PIB dos EUA como se chegou a antecipar?
A China enfrenta muitos desafios, mas penso que é uma questão de tempo até ter a maior economia do mundo. A China já ultrapassou o PIB dos EUA em paridades de poder de compra há vários anos, e é o maior exportador e importador mundial e o primeiro parceiro comercial de mais de 120 países ou da UE. Em 2019, pela primeira vez, a China ultrapassou os EUA no registo de patentes, disputando ambos a liderança da "quarta revolução industrial" e de tecnologias-chave como inteligência artificial, robótica, computação quântica, etc. O poderio económico dependerá do domínio da economia digital e das novas tecnologias, e é nessas áreas que se intensifica a competição entre as duas superpotências.

Tem algum valor geopolítico a ultrapassagem da China pela Índia este ano como país mais populoso do mundo?
No curto-prazo, não altera a balança de poder entre ambas nem as respetivas posições na hierarquia do poder mundial, mas a dimensão demográfica é um potencial crucial e terá implicações no futuro. A Índia aproveitará para capitalizar o facto do país mais populoso do mundo ser agora uma democracia, atrair investimento estrangeiro e promover a sua candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Tem a vantagem de ter uma população bastante jovem, enquanto a da China está a decrescer e a envelhecer. Porém, o crescimento demográfico de uma população tão vasta aumenta a pressão sobre os recursos e tende a agravar os elevados níveis de poluição, podendo também exacerbar tensões étnico-religiosas e problemas crónicos de pobreza e de desemprego na Índia.

A Ásia, mesmo sem contar com Israel, tem quatro potências nucleares. Há risco de Japão e Coreia do Sul também se dotarem de arsenal nuclear para lidar com as ameaças?
O debate existe e é recorrente, mas penso que não existem condições políticas internas e externas para o Japão e a Coreia do Sul se dotarem de arsenais nucleares num futuro próximo. Isso seria contrariar políticas de décadas a favor da não proliferação e do desarmamento nuclear. Em vez de mais seguros, poderiam ficar mais inseguros porque iria desencadear reações muito adversas nos vizinhos regionais e no mundo.

Segurança mundial debatida em Lisboa

Com Francisco Seixas da Costa, presidente do Clube de Lisboa, e Maja Markovcic Kostelac, diretora da Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA), a fazerem os discursos de abertura logo às 9:00, a conferência internacional "Segurança: da Europa ao Indo-Pacífico" prolonga-se todo o dia 3 de março no auditório da EMSA em Lisboa e conta nos seus quatro painéis com oradores de vários países, incluindo Japão, Índia, Turquia, EUA, África do Sul e Brasil. O encerramento, às 18.00, será feito pela ministra da Defesa, Helena Carreiras. O programa completo da conferência pode ser visto em AQUI.

leonidio.ferreira@dn.pt

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