“Nunca tivemos tanta droga a chegar ou produzida na UE”
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

“Nunca tivemos tanta droga a chegar ou produzida na UE”

Alexis Goosdeel, diretor do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, participa esta terça-feira, às 11 horas, em Lisboa, na Casa da América Latina, com os embaixadores do Brasil, da Colômbia e do México, num debate sobre a América Latina e o impacto do crime organizado na violência e na insegurança cidadã.
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Diretor do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência explica, em português fluente, como o mundo todo está a ser alvo dos narcotraficantes, até a Europa, que importa cocaína da América Latina e novas substâncias químicas da Ásia e é o maior produtor de ecstasy. Alexis Goosdeel, belga e psicólogo clínico de formação, participa hoje em Lisboa, na Casa da América Latina, às 11 horas, num debate com os embaixadores do Brasil, da Colômbia e do México intitulado “América Latina: Impacto do crime organizado na violência e insegurança dos cidadãos e seus efeitos na política regional”. 

Quando se fala do consumo de drogas na Europa, de onde é que vem essa droga, maioritariamente?
Para caracterizar a situação da droga na Europa, são três as palavras em inglês. Everywhere, Everything, Everyone. Vou traduzir: em todo o lado, todas e todos. Em todo o lado, porque hoje temos drogas por todas as partes na União Europeia. Aliás, nunca tivemos tanta droga como a que temos hoje. Nunca tivemos tanta droga a chegar de todas as partes do mundo. E há a parte da droga produzida no território da UE. Por exemplo, a UE, tornou-se o único produtor mundial de ecstasy, o que significa que até o ecstasy consumida na Nova Zelândia é produzido no território da UE. A segunda característica, quando digo todas, é que hoje não serve mais a antiga distinção entre droga dura e leve, ou droga de origem vegetal e química, ou lícita e ilícita. Porquê? Porque são muitas as substâncias, inclusive as que ninguém pensava que algum dia poderiam ser o objeto de uma conduta aditiva. E a terceira palavra, todos, ilustra que hoje somos todos nós que podemos encontrar, conhecer ou viver uma experiência de um episódio crónico ou momentâneo de conduta aditiva, com várias substâncias, inclusive o álcool. E por outro lado, o que é ainda mais novo, é que hoje todos podemos conhecer, diretamente ou indiretamente, os efeitos da violência relacionada com a produção, o tráfico ou o consumo de drogas. Há dez anos, quando ajudámos a Comissão Europeia a definir a sua estratégia sobre a violência relacionada com as drogas, estávamos a falar da América Latina. Hoje falamos da Europa. Em todos os países da União Europeia, quase todos os dias.

Mas muitas vezes, quando vemos as notícias das apreensões recordes de cocaína, associamos que a cocaína é ainda a grande droga e a América Latina ainda o grande fornecedor da Europa. Há ainda uma parte de verdade nisto?
Há uma parte de verdade. Falamos muito de cocaína hoje. E temos boas razões. Só que é um pouco como a árvore que está a esconder a floresta. Falamos muito de cocaína, porque há muita cocaína chegando na Europa, mas isso não pode nos deixar esquecer dos problemas com outras drogas, como a canábis. Só em 2022, as apreensões de canábis na Europa alcançaram 816 toneladas de haxixe. É muitíssimo. Vem da África do Norte, essencialmente de Marrocos. Também temos grandes quantidades de drogas sintéticas, parte delas produzidas sobre o território da UE, e outras, as novas substâncias, que estão a vir da China, e, nos últimos anos, também da Índia.

As redes criminosas envolvidas especializam-se num tipo de droga?
Não, isso tem mudado completamente.

Traficam todo o tipo de droga?
Sim. Mas voltemos à cocaína. A cocaína tem só uma origem vegetal, não há origem puramente química. E para produzir cocaína são precisas as folhas de coca. Por isso, os três maiores cultivadores de coca são o Peru, a Bolívia e a Colômbia. As folhas de coca são transformadas com o uso de alguns produtos químicos para produzir a pasta base e, depois, noutra etapa de transformação química, produz-se o que chamamos de cloridrato de cocaína ou cocaína. E desde que o governo colombiano iniciou as negociações de paz com os FARC, a produção de coca, e logo de cocaína, aumentou mais ou menos 35% a 38%.

Quando o então presidente Juan Manuel Santos lançou essas negociações, e até ganhou o Nobel da Paz de 2016, para que os guerrilheiros marxistas se reintegrassem na vida da sociedade, muitos deles estavam envolvidos no narcotráfico. São os grupos dissidentes das FARC que continuam na selva a fazer o narcotráfico os responsáveis por esse crescimento?
Acho que o que tem acontecido é que antes, obviamente, havia uma pressão das forças armadas - também com consequências negativas para os direitos humanos em alguns casos - mas havia uma pressão militar, não só da polícia, e essa pressão desapareceu para permitir o diálogo de paz, e isso foi considerado uma oportunidade pelos grupos criminosos organizados, dissidentes das FARC ou não, que aproveitaram para desenvolver mais produção.

Ou seja, aproveitaram o processo de paz para, com menos pressão militar, fazer o negócio. É isso que explica esse aumento da produção na Colômbia?
Explica uma parte significativa do aumento da produção, pelo menos na Colômbia, sim.

Explica também esta invasão da Europa por cocaína?
Em parte, sim. Mas aconteceu também o seguinte. Quando começou o aumento da produção de coca, e logo de cocaína, o mercado da cocaína estava quase saturado nos Estados Unidos. E os Estados Unidos tinham vindo a alertar outros países de que isso ia acontecer um dia. Demorou quase 25 anos para vermos esta quantidade enorme de cocaína chegar à Europa. Há uma enorme disponibilidade de produto, uma oferta enorme, e se um mercado fica saturado, procuram outros mercados para desenvolver. Por isso temos muito mais cocaína a chegar à Europa.

Os preços vêm baixos?
Os preços vêm baixos, sim. E a pureza alta. Então, o motor principal do aumento do consumo da cocaína na União Europeia é a pressão da oferta sobre o mercado. É um processo classicamente capitalista.

Falou do ecstasy fabricado na Europa. As drogas químicas competem no mesmo mercado que a cocaína? Ou funciona como se fossem dois mercados diferentes?
Depende dos grupos de substâncias também. Falando da cocaína, há oito ou 10 anos, identificámos a existência de um mercado europeu de estimulantes. Então, quais são os estimulantes? Cocaína, sim. Mas em alguns países pode ser ecstasy, pode ser anfetaminas. E numa muito pequena minoria de países era metanfetamina. Historicamente esse consumo era só na República Checa e, um pouco por contágio, na Eslováquia. Essa era a situação. E este mercado dos estimulantes, como funciona? Ou funcionava? Pois a gente que gostava, preferia consumir substâncias estimulantes, fazia-o em consonância com a disponibilidade. Quer dizer, os países da frente atlântica, por onde estava a chegar a cocaína, andavam a consumir cocaína. Em países que, desde sempre, têm uma tradição de consumo de ecstasy, como a Holanda ou a Bélgica, estavam a consumir essa substância. Nos países bálticos era um pouco diferente e, depois, a República Checa. Essa era a situação até há quatro ou cinco anos, para os estimulantes. E, obviamente, ecstasy, anfetamina, metanfetamina, a produção é química. Agora, há outro grupo de substâncias químicas são o que chamamos de novas substâncias psicoativas, NPS. E por que chamamos de novas substâncias? Porque não são aquelas que já vêm mencionadas nas listas anexas nas convenções da ONU. Portanto, ainda não são oficialmente ilegais. Temos enormes quantidades de substâncias químicas vindas da China ou da Índia e muitas vezes com grande potência. Muitas vezes substâncias que nunca tinham aparecido no mercado europeu. E também se desconhecem, em muitos casos, as próprias propriedades e os riscos, por exemplo, em termos de toxicidade. Por isso temos um sistema de alerta europeu de que somos responsáveis nós aqui na agência, um sistema de alerta rápido. Hoje, detetamos uma nova substância cada semana.

Isso significa que essas NPS são criadas em laboratório especificamente para o mercado dos consumidores de drogas europeus?
Para qualquer mercado de consumidores.

Nunca tiveram uma utilização medicinal prévia?
A maioria delas não. Algumas têm. Por exemplo, a ketamina, que é também um anestésico que se pode utilizar em medicina veterinária, mas também que se usa como anestésico barato na África.

É uma das drogas da moda neste momento?
A droga da moda depende do país e depende do grupo de consumidores.

A UE também é afetada pelo fentanil que tanto preocupa os Estados Unidos?
O fentanil é um opioide sintético usado principalmente como analgésico. É extremamente potente e representa um risco de intoxicação e de morte (50 vezes mais potente que a heroína e 100 vezes mais potente que a morfina). Mesmo se a heroína continua a ser o opiáceo ilícito mais consumido na Europa, existe também uma preocupação crescente com o consumo de opiáceos sintéticos tais como o fentanil. São necessárias apenas pequenas quantidades para produzir milhares de doses, o que torna estas substâncias muito mais lucrativas para os grupos do crime organizado. Em comparação com a América do Norte, os novos opiáceos sintéticos (por exemplo, os derivados do fentanil e os nitazenos) desempenham atualmente um papel relativamente pequeno no mercado de droga europeu. Este facto pode ser atribuído a fatores de proteção, tais como práticas de prescrição rigorosas, disposições sociais em matéria de cuidados de saúde na maioria dos países e serviços de tratamento e redução de danos bem desenvolvidos para os utilizadores de opiáceos existentes. No entanto, estas substâncias desempenham um papel proeminente em alguns Estados-membros da UE, em especial nos países nórdicos e bálticos, e a análise apela à adoção de medidas para aumentar o grau de preparação em toda a UE.

Entre os dois grandes mercados, a Europa e os Estados Unidos, há diferenças de consumo?
Acho que hoje todos os países e todas as regiões do mundo potencialmente são mercados. E há uma parte da cocaína que está a chegar à União Europeia que só está a transitar, antes de continuar para outras regiões do mundo.

Estamos a falar de que zonas do mundo?
Qualquer zona, o Meio Oriente, os Balcãs, a Europa do Leste, mas também há circuitos de tráfico que podem seguir para a África ou a Ásia. De qualquer forma, a mudança que foi acelerada pela pandemia de covid, é o facto da maioria das drogas hoje serem transportadas por contentores em grandes barcos, por grandes linhas de transporte marítimo comercial.

Por isso foi criada há dias em Antuérpia uma aliança dos portos europeus. É para criar regras comuns?
Não é tanto para criar novas regras, a prioridade é juntar esforços, apoiar a cooperação e também apoiar a troca de informação. Como disse a nossa comissária europeia, a senhora Johansson, e a ministra belga do Interior, a senhora Verlinden: “It takes a network to fight a network”. E por isso a reunião em Antuérpia foi o lançamento de uma aliança dos portos europeus para uma cooperação, uma associação público-privada.

A UE - os seus 27 países têm esta agência sedeada em Lisboa, que o senhor lidera desde 2016 - coopera para lutar contra a droga. Existe algum tipo de cooperação eficaz que ultrapasse a UE? Ou seja, que inclua a UE mas também Estados Unidos, países do Médio Oriente, Japão, a própria China?
Há vários tipos de cooperação. O exemplo mais importante, é a nível das Nações Unidas. Por exemplo, em 2016, teve lugar em Nova Iorque o UNGASS, que é a United Nations General Assembly Special Session Drugs. E nessa reunião, pela primeira vez, houve uma posição comum de todos os Estados membros da UE, e naquela altura éramos 28, ainda estava o Reino Unido. E essa declaração foi apoiada por mais de 50 outros países. E o resultado foi uma declaração final onde quase todos os pontos da posição europeia foram adotados. Um dos que não foram adotados, mas era previsível, era o facto que na nossa declaração europeia havíamos indicado que a pena de morte não era aceitável e era uma violação dos direitos humanos. Obviamente, há alguns países que têm uma posição totalmente diferente. Outro nível de cooperação é a existência de um diálogo sobre drogas entre a UE e alguns países ou algumas regiões do mundo. Há três anos, teve lugar pela primeira vez um diálogo entre a EU e a China. No início de março vamos ter a reunião entre a UE e Estados Unidos para o diálogo sobre drogas. Houve em dezembro, um diálogo entre a UE e a Colômbia. Então, há vários diálogos e a nosso nível também agora começámos a ter acordos de cooperação bilaterais com alguns países. Por exemplo, no ano passado, assinámos o acordo bilateral de cooperação com o Peru. E agora vamos assinar, provavelmente em maio, um acordo de cooperação bilateral com a Colômbia. Estamos quase prontos para assinar acordos de cooperação com o Equador e com o Chile.

Quando falamos da América Latina, existem os países produtores, mas há outros países que sofrem com o narcotráfico, como o México, pela proximidade com o mercado dos Estados Unidos, ou o Brasil, pela porosidade das fronteiras amazónicas. Como é que se pode ajudar países que não produzem, mas que sofrem o impacto dessas redes criminosas?
Já existem formas de cooperação, mas há muito para fazer. Por exemplo, existe um programa de cooperação bi-regional entre a União Europeia e a América Latina e Caraíbas que se chama COPOLAD. Existe há quase 12 anos. A liderança do programa durante muitos anos era de Espanha e Portugal. Então Portugal sempre tem sido um ator muito ativo nesta cooperação. E essa cooperação tem quatro componentes. Um é a cooperação política na América Latina entre os países e logo entre a América Latina e a União Europeia. Por isso temos todos os anos uma reunião bi-regional. O segundo componente é o apoio para o desenvolvimento de observatórios nacionais para a recolha de dados. Sem se conhecer a realidade não se pode desenhar uma estratégia. Tem outro componente para a redução da procura, quer dizer prevenção, mas também tratamento e sistema de alerta rápida. E o quarto componente é a redução da oferta. Isto é um exemplo. Foi a primeira vez que a Europa conseguiu ajudar e organizar concretamente sessões de formação para profissionais. Estamos organizando agora ajudar para a criação de uma plataforma de formação sobre as boas práticas de prevenção na língua espanhola e também em português. Com base na nossa plataforma PLATO, que permite essa formação a distância graças à internet. Mas há vários programas financiados pela Comissão Europeia para facilitar e apoiar uma cooperação uma cooperação regional e com todos os países. Um dos programas se chama El Pacto. Houve um programa que se chamava Rota da Cocaína, com o objetivo de estabelecer uma cooperação com cada país que fica no caminho do tráfico de drogas, inclusive na África do Oeste. E houve muitos anos em que a UE financiou a monitorização dos cultivos de coca por satélite na Colômbia.

Na América Latina as máfias afetam a segurança cidadã e muitas vezes até desafiam o poder político, como recentemente no Equador. Quando diz que a Europa está inundada de drogas, já podemos ver na Europa sinais de mais criminalidade, até de ameaça à vida política?
Sim. Quando falo de violência relacionada com a droga, essa forma parte da realidade de todos os países da UE. Como mencionou a comissária Johansson, em Antuérpia, um dos eventos, porque há muitos e quase todos os dias, foi a morte de uma menina de 11 anos há um ano. Ela estava na sala de jantar com a família e faleceu de uma bala perdida na periferia de Antuérpia. Mas isso aconteceu também já em Marselha. E a comissária referiu que 50% dos homicídios na EU são relacionados com o tráfico de drogas.

Ao ponto de ameaçarem o Estado?
Ainda não, mas precisamos ser muito ativos para evitar isso. Por exemplo, na Bélgica, no ano passado, o próprio ministro da Justiça estava a voltar de uma reunião oficial e foi desviado para um lugar protegido com toda a família porque havia um contrato de kidnapping pela máfia que é ativa na Holanda. Houve aquele assassinato de um jornalista no meio da rua há um ano ou dois na Holanda. Está anunciado a abertura em breve desse processo no tribunal. Relacionado com o mesmo assunto, o advogado do criminoso arrependido foi morto também à queima roupa na rua. Há um risco e por isso este esforço apoiado pela UE, pela comissária Johansson e pelo conjunto de ministros para aumentar a luta contra a droga e a primeira coisa é ter mais cooperação pois o crime organizado é transfronteiriço, não olha às fronteiras. Então a realidade é que para lutar de forma útil é importante - foi agora mencionado em Antuérpia muitas vezes, inclusive pela senhora diretora da Europol - para as polícias nacionais construirem confiança entre os países, também para se ter a certeza que quando trocam informação essa não chega às organizações criminosas. Recentemente, houve um caso em Rennes em que a operação da polícia francesa fracassou completamente e a única explicação é que alguém terá transmitido a informação. Também é bom ter uma cooperação com os países produtores, pois hoje o mundo não se define com um grupo de países produtores e outro grupo de vítimas como víamos isso há 20 anos.

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