"No Kosovo precisamos que a Sérvia seja séria acerca da normalização das nossas relações" 

Kosovo comemorou recentemente os 15 anos da declaração de independência e para assinalar promoveu semana cultural em Portugal. De visita a Lisboa, ministra dos Negócios Estrangeiros, Donika Gërvalla-Schwarz, conversou com o DN sobre as difíceis negociações com os sérvios, o estatuto das minorias, a ambição de aderir à UE e à NATO e os obstáculos na ONU.

Qual é o significado deste acordo recente com a Sérvia anunciado pela União Europeia? Sei que o presidente da Sérvia disse que iria respeitar o compromisso, mas não o assinaria formalmente. O acordo traz mudanças efetivas para a paz no Kosovo?
A verdade é que nós ainda não temos um acordo com a Sérvia. Do nosso lado, estivemos duas vezes, uma a 27 de fevereiro e depois no fim de semana passado, prontos para um acordo, com as garantias que os nossos parceiros e aliados - a União Europeia e os Estados Unidos - nos deram para a implementação desse acordo, mas como seria de esperar a Sérvia não estava pronta para isso. Limitam-se a continuar o velho jogo de transmitirem mensagens e tempos diferentes e, depois, quando a assinatura se aproxima, recusam-se. É uma pena que a UE esteja a tornar esta situação possível e não resolva os desafios do diálogo que está a mediar.

Sei que faz sempre diferença o acordo ser ou não assinado, mas há declarações do presidente sérvio a dizer que implementará o acordo, deixando, por exemplo, de objetar à entrada do Kosovo em organizações internacionais. Para o Kosovo isto não é importante? Precisam que Aleksandar Vucic assine mesmo?
Nós precisamos que a Sérvia seja séria acerca da normalização das nossas relações. Normalização significa um comportamento normal, respeitar o vizinho e não ameaçar o vizinho com guerra e outras consequências. É por isso que é tão difícil com a Sérvia, eles sentam-se à mesa das negociações e prometem e, depois, aparece uma Sérvia completamente diferente quando se trata da implementação das promessas. Desta vez, a Sérvia nem sequer assinou, por isso não estou otimista em relação à expectativa de mudanças nas próximas semanas ou nos próximos meses.

Do lado do Kosovo há um compromisso de que respeitarão alguma espécie de autonomia da minoria sérvia. Este é um assunto pacífico dentro do governo de Pristina?
As minorias no Kosovo, não só a Sérvia, que representa cerca de 5% a 6% de todos os cidadãos do Kosovo, têm garantidos os direitos na nossa Constituição. Penso que sabe que a Constituição da República do Kosovo é muito jovem e é produto de um esforço internacional de fazer uma constituição muito moderna, pró-europeia e muito democrática. Não encontra em nenhum outro país da Europa direitos das minorias garantidos pela constituição tão profundos e alargados. Só para dar um exemplo: para a minoria sérvia há sempre a garantia de que tem um lugar no governo, independentemente da questão de eles terem obtido votos suficientes ou de terem sido bem-sucedidos nas eleições. Todos os governos no Kosovo têm um lugar garantido para as minorias e um deles é para a minoria sérvia. Outro exemplo é que desde há 15 anos existe um pacote de leis básicas - leis vitais, como são chamadas - onde está por exemplo a educação. Há 15 anos que os sérvios no parlamento bloqueiam, por terem um direito de veto neste pacote de leis vitais, a lei para a educação superior. A lei é sobre as nossas crianças, não é sobre política. Portanto, não há necessidade de direitos adicionais. Tudo o que pode ser discutido em Bruxelas, só pode ser menos do que o que está na nossa Constituição e é por isso que penso que toda a discussão sobre os direitos das minorias no Kosovo é um debate para distrair do verdadeiro problema, que é o de a Sérvia ser agressiva para com toda a sua vizinhança, não só com o Kosovo. Se olharmos para o Montenegro, para a Bósnia-Herzegovina e virmos a abordagem e a forma como eles lidam com eles, como tentam influenciar, por exemplo, os assuntos internos no Montenegro e na Bósnia-Herzegovina... Temos de olhar para o quadro geral e não só para as relações entre o Kosovo e a Sérvia.

A Sérvia e o Kosovo partilham o interesse na adesão à União Europeia. Sente-se otimista em relação à possibilidade de os dois países conseguirem entrar na UE ou sem a assinatura da Sérvia no tal acordo isso pode ser ainda um objetivo distante?
Deixe-me ser muito aberta e sincera em relação a isso: esta liderança da Sérvia não está interessada em levar o país para a UE, nada mesmo. Eles mostram-no e declaram-no todos os dias. Se virmos as sondagens, verificamos que mesmo as pessoas na Sérvia, na sua maioria, não estão a favor da integração da Sérvia na UE. O que é que isso significa para a região? Significa que todos os nossos países que estão a fazer progressos, por exemplo, o Kosovo está a fazer um enorme progresso nas questões do Estado de direito segundo as normas europeias, terão todos de esperar até que a Sérvia, que serve os interesses da Rússia, se separe da Rússia ou existe uma maneira para aqueles que preenchem os requisitos entrarem na União Europeia? Eu creio que a UE também não está a ser muito honesta na oferta que está a fazer aos Balcãs Ocidentais para a integração, e isso é parte do problema. Se a oferta não é sincera, então os esforços da região não serão considerados suficientes.

Mencionou a Rússia e sei que há laços históricos especiais entre a Rússia e a Sérvia. Esta guerra na Ucrânia está de alguma forma a afetar o Kosovo?
O Kosovo tem mostrado desde o primeiro dia que compreende o que está a acontecer na Ucrânia e nós apoiamos o povo ucraniano nesta guerra brutal que a Rússia está a fazer contra a Ucrânia. Tentámos oferecer o nosso apoio e ajuda com todas as nossas capacidades. Neste momento temos 12 jornalistas ucranianos no programa de residência jornalística que estão a trabalhar a partir do Kosovo. Isso ajuda não só os kosovares a compreenderem melhor o que está a acontecer na Ucrânia, como também ajuda a Europa a compreender melhor o que lá se passa porque, como sabe, as notícias falsas e a desinformação estão presentes não só nos Balcãs, como também em toda a Europa. Portanto, a Sérvia está errada desde o primeiro dia em relação ao lado em que está. É o único país europeu que apoia a Rússia nesta guerra na Europa, no ano 2023. Isto deve ficar claro e deve ficar claro para os nossos parceiros e amigos para que compreendam que enquanto permitirmos à Sérvia não falar sobre o cerne do problema, que é a lealdade e o apoio que a Sérvia está a mostrar, não à Europa mas sim à Rússia ao apoiar económica e financeiramente, política e militarmente, a Rússia nesta guerra contra a Ucrânia, nada se resolve. Este é o cerne do problema, todas as outras discussões sobre o Kosovo, a Bósnia, o Montenegro, são apenas para distrair do problema central, que é o de a Sérvia não estar pronta para aderir à Europa e aplicar sanções contra a Rússia.

A situação internacional também tem impacto no Kosovo em termos de ser um membro das Nações Unidas, sabemos que a Rússia não está a favor, mas também a China e outros países? Ser membro da ONU é importante para o Kosovo, 15 anos depois de ter declarado a independência em relação à Sérvia?
Penso que a experiência já mostrou que se pode ser um não membro das Nações Unidas e ao mesmo tempo ser um país de muito sucesso. Se olharmos para a Suíça vemos um exemplo muito bom disso, eles aderiram muito tarde às Nações Unidas. Ao mesmo tempo deve ficar claro que deve depender do próprio Kosovo, do progresso do país, de preencher os critérios na implementação do Estado de direito democrático. Estes devem ser os princípios para o Kosovo poder aderir ou não a uma organização internacional e não a vizinhança ou os bloqueios que os outros possam fazer.

Mas, por exemplo, o reconhecimento por países como a Índia ou o Brasil pode ser um sinal positivo para o Kosovo?
Eu penso que temos de trabalhar mais ainda em conjunto com os nossos amigos e parceiros. Temos de trabalhar mais com países que ainda não reconheceram o Kosovo e que têm ideias erradas sobre o que é o Kosovo e como o país se tornou independente. Há mais razões internas para alguns países não reconhecerem o Kosovo, mas estou convencida que é importante saberem que o Kosovo independente não é produto de um movimento separatista, mas sim da necessidade de parar com o genocídio no nosso país, saberem que foi isso que nos levou à independência. O apoio à independência do Kosovo apareceu porque não havia hipótese de voltarmos ao país juntamente com aqueles que cometeram genocídio. Para tornar isto mais presente é preciso fazer com que toda a gente compreenda a diferença entre movimentos separatistas e um genocídio que não deixa nenhuma abertura para qualquer outra solução que não seja o direito de separação. Nós temos a decisão do Tribunal Internacional de Justiça de 2010, em que eles decidiram que o Kosovo era um caso sui generis, não comparável com outros e que a independência do Kosovo não viola qualquer lei internacional. Da maneira como entendo a lei internacional, esta é uma boa base para os países que não reconhecem o Kosovo o fazerem.

Cerca de 90 por cento dos habitantes do Kosovo falam albanês. Como é que descreve as relações com a Albânia? Existe um ideal de uma unificação um dia ou é possível construir dois países diferentes mesmo partilhando a mesma etnicidade e a mesma língua?
O facto de 95% das pessoas do Kosovo falarem a língua albanesa é uma ponte muito importante para a Albânia, que é o nosso primeiro vizinho e o nosso parceiro mais importante, porque partilhamos uma língua e temos uma cultura, tradição e história comuns, mas o povo do Kosovo decidiu com a independência construir o seu Estado soberano. A República do Kosovo não vai para lado nenhum, é uma realidade, e nós estamos a trabalhar dura e fortemente para construirmos um Estado democrático, justo e próspero para que, em conjunto com a Albânia, possamos aderir no futuro à União Europeia.

Deixe-me perguntar-lhe sobre o papel de Portugal no processo de independência do Kosovo. Houve muitos militares portugueses na força internacional de paz. Há memórias positivas dessa presença?
Se falarmos com as pessoas comuns no Kosovo vemos que há uma enorme simpatia não só pelos soldados portugueses, não só pelos portugueses que nos ajudam a reconstruir o nosso país depois da guerra brutal, mas há uma enorme simpatia pela cultura, pela música, pela arte. Não é por acaso que decidimos organizar estes dias - a primeira semana da cultura kosovar - em Portugal. Se me fosse pedido que descrevesse a relação entre Portugal e o Kosovo, diria que é muito amistosa. Tentei encontrar uma palavra que a descrevesse melhor, mas é verdadeiramente uma relação muito amistosa. Estamos muito gratos a todos os que nos ajudaram depois da guerra a reconstruir o nosso país, a construir estruturas confiáveis que mostrem ao mundo que o Kosovo é um Estado democrático que pode integrar a restante família europeia logo que seja possível. Ao mesmo tempo, a perspetiva kosovar não é apenas europeia, mas também euro-atlântica, porque acredito firmemente que a NATO, e através dela os Estados Unidos, é um instrumento muito importante para a paz e segurança na nossa região. Na nossa região temos três países que já aderiram à NATO - Albânia, Macedónia do Norte e Montenegro - e sem a NATO lá acredito que a Rússia tentaria, através da sua procuradora Sérvia, destabilizar a região, mais ainda do que já o fazem.

Sobre a semana da cultura kosovar em Portugal, iniciada com um grande concerto em Lisboa , esta afirmação de poder suave é importante para o Kosovo afirmar-se internacionalmente, mostrar a sua cultura, música, cinema?
Eu penso que as pessoas devem saber mais sobre a nossa cultura, a nossa arte, porque a cultura, e a arte, é a janela para a nossa alma. Acho que falamos muitas vezes sobre vizinhança, mas muito raramente falamos da alma da nossa nação. Ao estar em Portugal, sei que toda a gente aqui compreende bem como se consegue ver profundamente o que acontece à nossa volta quando temos uma visão da alma de uma nação. Portanto, estou muito convencida de que apresentar a nossa cultura vai ajudar a compreender melhor o Kosovo e o que representa. Nós queremos viver em paz na nossa região, queremos construir perspetivas para as nossas gerações mais novas, queremos continuar a implementar os valores europeus, porque acreditamos neles. Para nós, a União Europeia não é sobre o dinheiro que recebemos dela, pois recebemos muitas vezes mais da nossa diáspora espalhada por todo o mundo. Noventa e dois por cento dos cidadãos do Kosovo apoiam a perspetiva da adesão à UE; 92% apoiam a adesão à NATO, e isto é único na União Europeia. Precisamos de dar a conhecer que temos o país mais pró-europeu em toda a Europa; precisamos de ter uma oportunidade de mostrar como somos, aquilo em que acreditamos; e precisamos de dar às pessoas no Kosovo uma oportunidade de construírem o seu futuro no país e não terem de o procurar no exterior.

leonidio.ferreira@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG