Cabo Verde. Neves vence Veiga à primeira e promete colaborar com governo rival

"Conto poder trabalhar com o governo, com a lealdade necessária, para juntos enfrentarmos os desafios que se colocam", disse o futuro presidente, do PAICV. Primeiro-ministro é do MpD, que apoiava o seu principal adversário.

Dez anos depois de Cabo Verde ter tido a primeira experiência de ter um presidente e um chefe de governo de partidos diferentes, a situação volta a repetir-se. José Maria Neves, apoiado pelo Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV), foi eleito presidente à primeira volta, com 51,7% dos votos, derrotando Carlos Veiga, que teve 42,4% e contava com o apoio do Movimento para a Democracia (MpD). O mesmo partido que, em abril, conseguiu reeleger Ulisses Correia e Silva como primeiro-ministro.

"Conto poder trabalhar com o governo, com a lealdade necessária, para juntos enfrentarmos os desafios que se colocam a Cabo Verde", disse Neves no discurso de vitória, citado pela agência Lusa. "Serei o presidente de todos, serei um árbitro imparcial, um fiscalizador da ação governamental, um apaziguador de conflitos, um presidente que irá colaborar com o governo, com as autoridades locais e a sociedade civil para juntos fazermos face aos desafios", acrescentou. Há dez anos estava do outro lado: tinha sido reeleito primeiro-ministro (para o terceiro e aquele que seria o seu último mandato), quando os eleitores escolheram Jorge Carlos Fonseca, do partido rival, para presidente.

"As coisas funcionaram muito bem, garantimos o equilíbrio e a estabilidade institucional e política e criámos as condições para que o país se transformasse e que, sobretudo, o Estado de direito democrático se consolidasse", disse José Maria Neves numa entrevista ao DN, em junho, quando questionado precisamente sobre essa coabitação com um presidente rival no último mandato. "Acho que tenho uma experiência muito positiva de convivência institucional, de cooperação estratégica entre os diferentes órgãos de soberania, que, com certeza, porei ao serviço da República caso seja eleito presidente", indicou na altura.

"Relação normal de coabitação"

Já depois da vitória eleitoral de José Maria Neves, o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva disse esperar "uma relação normal de coabitação" com o futuro presidente. "Terminaram as eleições, terminaram as campanhas eleitorais, o povo decidiu, agora é trabalhar. Trabalhar para Cabo Verde ultrapassar esta fase mais difícil que o país está a viver, garantir a estabilidade política, que é muito necessária para podermos avançar", acrescentou o chefe do governo aos jornalistas.

Cabo Verde vive uma profunda crise económica e social e registou, no ano passado, uma recessão económica histórica de 14,8% do PIB, quando antes da pandemia previa crescer mais de 6%. A ausência quase total de receitas de turismo desde março de 2020, um setor responsável por 25% do PIB, obrigou o governo ao endividamento interno. As previsões de crescimento para este ano já foram revistas em baixa, para de 3% a 5,5%.

Carlos Veiga, que na campanha alertou que o presidente "pode ajudar" o governo, mas também "pode bloquear", apelou a um "pacto nacional" para garantir o futuro do país no discurso em que reconheceu a derrota. "Vivemos em pleno século XXI, pleno de novas oportunidades e desafios que nos podem catapultar para um futuro mais próspero, mas não podemos deixar ninguém para trás", afirmou o candidato derrotado, por muitos apontado como favorito à vitória, dada a reeleição de Ulisses Correia e Silva há seis meses. "Faço por isso votos para que a ideia de união que advoguei nesta campanha se torne uma realidade entre os nossos órgãos de soberania", enfatizou o também ex-primeiro-ministro (1991 a 2000) que concorria pela terceira vez.

Alternância no poder

Após a independência em 1975, o PAICV tornou-se no partido único e só em 1991 houve as primeiras eleições multipartidárias, com a vitória a recair no MpD. Desde então, os dois partidos têm alternado no poder, sem incidentes, sendo o país elogiado a nível internacional como um exemplo de democracia em África. Em 2011, após deixar a presidência, Pedro Pires foi galardoado com o prémio Mo Ibrahim de boa governança em África, que em vários anos não é entregue por não serem cumpridos os critérios. Jorge Carlos Fonseca, que termina o seu segundo mandato, poderá ser agora candidato ao prémio, que no ano passado foi para o nigerino Mahamadou Issoufou (que liderou a primeira transição democrática no Níger).

Um problema nas eleições presidenciais em Cabo Verde tem vindo a ser a abstenção, que no escrutínio de 2016 atingiu o registo histórico de 63,6 % (61% a nível nacional e 85,32% na diáspora). Este ano, quando havia um recorde de sete candidatos, a situação melhorou, registando-se uma abstenção de 52% (48,6% nas ilhas e 73,6% na diáspora). Houve também 4265 votos em branco (equivalente a 2,2% dos quase 400 mil eleitores), um número mais elevado do que os conseguidos por qualquer um dos cinco candidatos que não os dois favoritos. O que se saiu melhor foi Casimiro de Pina, que não foi além dos 3321 votos (1,8%).

Quatro líderes desde 1975

Aristides Pereira: O primeiro presidente esteve no poder desde a independência, em 1975, até às primeiras eleições pluripartidárias, em 1991. Nascido em 1923 na ilha da Boavista, envolveu-se desde a década de 1940 na luta pela independência e fundou, em 1956, junto com Amílcar Cabral, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), sendo seu secretário-geral a partir de 1973. Morreu em 2011, com 87 anos.

António Mascarenhas Monteiro: Do Movimento para a Democracia (MpD), foi o primeiro presidente eleito por voto direto e universal, em 1991, tendo ficado no cargo dois mandatos, até 2001. Nascido na ilha de Santiago em 1944, o jurista ocupou vários cargos nos governos do PAICV (o G de Guiné caiu após falhar a ideia de união dos dois países), incluindo líder da Assembleia Nacional e presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Morreu em 2016, aos 72 anos.

Pedro Pires: O PAICV regressou à presidência em 2001, pelas mãos daquele que tinha sido o primeiro chefe de governo (de 1975 a 1991). Nascido na ilha do Fogo, em 1934, estudou em Lisboa e liderou a delegação do PAIGC que negociou em 1974 a independência, tornando-se depois primeiro-ministro. Após dez anos na oposição, foi eleito presidente em 2001 e reeleito em 2006. No fim do mandato, em 2011, venceu o prémio Mo Ibrahim de boa governação em África.

Jorge Carlos Fonseca: Em 2011, nova alternância no poder em Cabo Verde, com o MpD a voltar à presidência pelas mãos de outro jurista (que ajudou a escrever a Constituição de 1992) e professor universitário. Nascido no Mindelo em 1950 (faz amanhã 71 anos), foi chefe da diplomacia entre 1991 e 1993 e já tinha tentado alcançar a presidência nas eleições de 2001. O também escritor e poeta termina este ano o seu segundo mandato, passando o testemunho a José Maria Neves.

susana.f.salvador@dn.pt

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