"Diáspora tem contribuído para Cabo Verde não só com remessas financeiras, mas com remessas de ideias"
Entrevista a José Maria Neves, que levou em 2001 o PAICV de volta ao governo em Cabo Verde e se manteve primeiro-ministro 15 anos. A ambição agora deste político experiente, mas que se identifica como de uma nova geração, é ganhar as presidenciais de outubro. A sua mensagem é de reforço do desenvolvimento de Cabo Verde, de um esforço nacional para recuperação do efeito devastador da pandemia. Elogia a força da democracia, mas deseja menos crispação na vida política.
O resultado das legislativas de abril condiciona as suas expectativas para as presidenciais de outubro, já que o PAICV perdeu para o MpD? Ou em Cabo Verde não há automatismo na hora de se votar?
Definitivamente não. A candidatura presidencial não é de base partidária e é minha firme intenção fazer uma candidatura suprapartidária, que seja resultado de um movimento cidadão e que contribua, inclusive, para aliviar a tensão existente entre os dois principais partidos e criar um ambiente favorecedor do diálogo. Um diálogo produtivo, entre o governo e a oposição, entre o governo e o Parlamento, entre o governo e as autarquias locais, entre o Estado, a sociedade civil e os cidadãos, de modo que tenhamos as condições necessárias para acelerar o processo de modernização do país, de crescimento da economia e de reconstrução do país no pós-pandemia.
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Como primeiro-ministro durante 15 anos, teve a experiência de coabitar com um Presidente que vinha de outra área política. Se agora for eleito Presidente, vai ter a mesma experiência, mas ao contrário. Como é que funciona essa coabitação em Cabo Verde? Ou como já funcionou, quando foi o seu caso?
Veja, eu já trabalhei com os três Presidentes da democracia. Fui nomeado pelo Presidente Mascarenhas Monteiro, com quem trabalhei nos primeiros meses da minha governação. Depois trabalhei com o Presidente Pedro Pires, durante 10 anos. E cinco anos com o Presidente Jorge Carlos Fonseca. Ou seja, com Presidentes de quadrantes políticos muito diferenciados, com percursos políticos também diversificados. O sistema do governo é muito flexível - um sistema semipresidencialista - e depende sobretudo de quem seja Presidente e também de quem seja chefe do governo. E aqui as coisas funcionaram muito bem, garantimos o equilíbrio e a estabilidade institucional e política e criámos as condições para que o país se transformasse e que, sobretudo, o Estado de direito democrático se consolidasse. Garantimos que os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos fossem, efetivamente, respeitados e defendidos e criámos as condições para que o país evoluísse e os cabo-verdianos tivessem melhores condições de vida. De modo que acho que tenho uma experiência muito positiva de convivência institucional, de cooperação estratégica entre os diferentes órgãos de soberania, que, com certeza, porei ao serviço da República caso seja eleito Presidente.
Cabo Verde é muito elogiado como exemplo de democracia em África, nomeadamente depois da abertura ao multipartidarismo em 1991. Nessa altura o MpD ganhou tanto as legislativas como as presidenciais, mas depois, no ciclo seguinte - o senhor faz parte dele, uma década depois -, é o PAICV que ganha e o processo de transição do poder é pacífico uma vez mais. Isto é algo excecional em África, mas em Cabo Verde é um dado adquirido? Quem perde, perde, quem ganha, ganha?
A democracia em Cabo Verde já está consolidada. Norberto Bobbio diz que quando a democracia se transforma num costume, ela é irreversível. Hoje a democracia, os procedimentos, são efetivamente uma rotina. De modo que considero que foi uma experiência muito positiva a transição para a democracia. Depois, o trabalho que fizemos, nestes anos todos, de consolidação das instituições democráticas, instituições políticas e económicas, que são muito inclusivas e que, na linha do Acemoglu e do Robinson no famoso livro sobre Porque Falham as Nações, acabam por ser os fermentos do processo de desenvolvimento de qualquer país. E se Cabo Verde tem dado certo é porque tem instituições democráticas sólidas e inclusivas e que contribuem para que o nosso país tenha uma cultura democrática muito forte e uma cultura, sobretudo, voltada para o desenvolvimento e para a dignidade da pessoa humana.
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"Eu sou da nova geração de políticos cabo-verdianos. Eu tenho uma outra cultura, uma outra perspetiva, não faço parte das disputas e dos ressentimentos políticos que vêm de trás e que acabam por condicionar o processo político cabo-verdiano."
O que diria que o distingue do seu principal rival, Carlos Veiga? São os partidos políticos dos quais são originários, ou são as ideias que os dois defendem, ou as personalidades?
Eu sou da nova geração de políticos cabo-verdianos. Tenho uma outra cultura, uma outra perspetiva, não faço parte das disputas e dos ressentimentos políticos que vêm de trás e que acabam por condicionar o processo político cabo-verdiano. E, portanto, sou uma pessoa de diálogo, que trabalha intensamente com todas as partes, que contribui para a construção de consensos e que faz com que todos participem no processo político e no processo de desenvolvimento sem qualquer discriminação. Na década de 90 tivemos o processo de transição. Mas também tivemos uma grande instabilidade institucional. O próprio partido no poder dividiu-se em três - MpD, PRD e PCD.
Está a falar nos anos em que Carlos Veiga era primeiro-ministro?
Claro. E depois houve, no final, um conflito muito forte com o Presidente Mascarenhas Monteiro, aquando da existência de dois primeiros-ministros - um caso insólito que levou o Presidente praticamente a forçar o pedido de exoneração de Carlos Veiga. Houve também uma tensão muito forte entre o governo e a oposição, num esforço grande de limitação do espaço de atuação do principal partido da oposição democrática, numa perspetiva de revanche política e de busca de criminalização do então partido da oposição. Portanto, não me incluo nessa parte menos conseguida. E precisamente por isso sou um novo tempo, uma nova geração política que quer o diálogo, a participação de todos, a despartidarização do espaço público e a construção de consensos entre os principais partidos políticos - que são pessoas de bem, são pilares essenciais do processo de construção da democracia. Mas também entre a oposição e o governo, entre os principais órgãos de soberania e, ganhando as eleições, serei, com certeza, um fator de equilíbrio e de estabilidade política e institucional.
Cabo Verde é um país que tem tido sucesso a nível político. A nível económico também, mas com limitações devido à escassez de recursos. Com esta pandemia, que afeta muito o turismo, como é que está, neste momento, a economia de Cabo Verde? O que imagina que Cabo Verde pode fazer para ser um país mais desenvolvido?
A crise pandémica foi devastadora para Cabo Verde. Temos uma enorme devastação económica e temos uma grande devastação sanitária, com impactos muito fortes no país. Não sabemos quais são depois as consequências emocionais e sociais desta pandemia. Haverá com certeza muito mais problemas entre as famílias, o empobrecimento, a perda de rendimentos, a precarização da vida quotidiana das pessoas, e isto vai ter certamente um enorme impacto em Cabo Verde. Do ponto de vista económico, temos uma grande devastação. A economia regrediu perto de 15%. O défice e a dívida estão a aumentar exponencialmente e o desemprego aumentou, o turismo está praticamente paralisado e há reflexos também na educação, com o ensino à distância, a exclusão das famílias mais carenciadas. E, tudo isto vai condicionar o pós-pandemia. O Presidente da República que será eleito terá como principal prioridade a reconstrução do país no pós-pandemia.
"O turismo será sempre motor de crescimento da nossa economia. Mas temos que rapidamente diversificar a economia cabo-verdiana, de modo que não se estribe na monocultura do turismo."
Isso significa que a aposta não pode ser demasiado no turismo. A economia cabo-verdiana tem que ser mais diversificada?
O turismo será sempre motor de crescimento da nossa economia. Mas temos que rapidamente diversificar a economia cabo-verdiana, de modo que não se estribe na monocultura do turismo. É preciso acelerar o processo de transformação e de modernização da nossa economia, tendo o turismo como o motor do crescimento. Imediatamente temos de tomar medidas, designadamente de massificação da vacinação, para imunizar a população e garantir uma abertura mais rápida do país ao turismo, para que a recuperação seja mais rápida também a nível do país.
Tem feito campanha junto da Diáspora? Como é que essa Diáspora enorme, que se espalha pela Europa, América e África, vê Cabo Verde hoje? Ela sente ligação ao país e está disposta a contribuir para o desenvolvimento das ilhas?
A Diáspora tem um grande orgulho em Cabo Verde. Porque viu que o país deu certo no pós-independência, quando muitos duvidavam das possibilidades de triunfo de um país com as carências de Cabo Verde. Mas a Diáspora também tem sido um dos principais motores do crescimento do nosso país. Cabo Verde é o que é hoje porque é um Estado transnacional. Nós somos migrantes antes de sermos cabo-verdianos e hoje somos transmigrantes. Vivemos em vários mundos ao mesmo tempo. E as novas tecnologias informacionais acabaram por aproximar os diferentes espaços desta nação global. Portanto, temos um Estado desterritorializado. E a Diáspora tem contribuído não só com remessas financeiras, mas com remessas espirituais. Remessas de ideias. Se Cabo Verde é um país com instituições sólidas é porque a Diáspora, inspirada nos países de acolhimento, também tem contribuído para que as instituições sejam mais inclusivas e mais sólidas em Cabo Verde. Se temos avanços consideráveis no domínio da educação, da saúde, da água, do saneamento, é porque a Diáspora também tem levado ideias, tem levado propostas, tem levado sugestões sobre como fazer. Temos médicos, professores e especialistas em outras áreas que também têm contribuído. Ou seja, a contribuição da Diáspora é enorme, é incomensurável. Há aspetos que são tangíveis e que podem ser medidos, mas há muitos outros intangíveis. Ou seja, Cabo Verde é o que é hoje por causa da sua Diáspora e o que temos de fazer é um pouco mais, para permitir uma maior ingerência da Diáspora no processo global de desenvolvimento político e económico do país.

© Rita Chantre / Global Imagens
O senhor estudou no Brasil. portanto, tem uma experiência de vida também lusófona. É um visitante regular de Portugal. Acredita neste espaço da lusofonia? E ele pode ser vantajoso para um pequeno país como Cabo Verde?
É fundamental. Um pequeno Estado como Cabo Verde deve apostar, e apostou desde 1975, no multilateralismo. E esse espaço multilateral da lusofonia é um espaço estratégico fundamental para Cabo Verde. Desde logo a valorização da língua. A língua portuguesa, como já dizia o poeta, é a nossa pátria comum. E temos é que valorizar essa nossa pátria comum. Depois, os países da CPLP estão em espaços geopolíticos muito importantes. Temos a África Ocidental, temos a África Austral e temos o Mercosul, temos a Ásia, temos a África Central, temos a União Europeia... portanto, temos espaços geopolíticos extraordinariamente importantes, que podem dar uma projeção política e económica muito forte à CPLP. Eu acho que estamos aquém das potencialidades e temos que fazer um pouquinho mais - os Estados e os povos - para que a CPLP possa atingir a dimensão geopolítica que efetivamente tem a nível mundial.
Mesmo dentro da lusofonia, Portugal continua a ser um parceiro essencial para Cabo Verde?
Portugal é um parceiro fundamental. Eu, por exemplo, estudei no Brasil, mas fiz a primeira parte do meu doutoramento aqui, que já está concluída. No domínio da educação, Portugal tem sido fundamental para o desenvolvimento de Cabo Verde.
"A Diáspora tem um grande orgulho em Cabo Verde. Porque viu que o país deu certo na pós-independência, quando muitos duvidavam das possibilidades de triunfo de um país com as carências de Cabo Verde."
É uma relação que não é afetada pela alteração do ciclo político em Cabo Verde nem em Portugal?
Não, claro que não. É uma relação entre Estados, entre os povos. São dois povos que se entendem muito bem, que se admiram. E há um enorme orgulho mútuo. Há uma grande confiança mútua nesse relacionamento. Portanto, ultrapassa os ciclos políticos eleitorais e eu acho que tem tudo para dar certo. As relações são de excelência. Eu, enquanto primeiro-ministro, trabalhei com seis primeiros-ministros portugueses...
Começou com António Guterres e foi até António Costa...
Fui até António Costa, sim. E antes, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes, José Sócrates, Pedro Passos Coelho. E todos se revelaram grandes amigos. Todos hoje são meus grandes amigos. E eu percebia a intensidade com que viam as relações e trabalhavam para que Cabo Verde e Portugal tivessem excelentes relações. O mesmo acontecia do lado cabo-verdiano. E, portanto, nós com o primeiro-ministro Sócrates elevámos a cooperação para cimeiras bianuais ao mais alto nível. Portanto, entre os dois governos conseguimos coisas muito importantes, como a parceria especial Cabo Verde-União Europeia, em 2007, com o apoio, muito determinante, de Portugal. Eu diria que se não fosse Durão Barroso, num primeiro momento primeiro-ministro de Portugal e, num segundo momento, presidente da Comissão Europeia, dificilmente teríamos a parceria especial que temos. Mas temos que destacar o papel de Freitas do Amaral, o papel de Adriano Moreira, o papel de Mário Soares neste processo de construção da parceria especial Cabo Verde-União Europeia.
Sem querer pedir que dê lições ao resto de África, o que é que um governante de Cabo Verde, país bem-sucedido do ponto de vista da democracia e do desenvolvimento, pode recomendar ao continente? Àquela África que teima em não ter sucesso...
As realidades são muito diferenciadas...
São muitas Áfricas, claro....
Sim. Temos muitas Áfricas. E é preciso, antes de mais, ter um médico especialista e em cada caso fazer-se o diagnóstico e ver as principais questões que se colocam em cada momento e em cada país. Nesses casos não haverá em nenhuma circunstância receitas predeterminadas. Eu diria que há a experiência cabo-verdiana, que é muito positiva. Cabo Verde representa a África positiva. A África com ambição. A África que quer afirmar-se, que quer desenvolver-se. A África que quer que os seus filhos vivam com dignidade. Mas há muitas Áfricas que se assemelham a Cabo Verde. Há muitos espaços em África que se assemelham a Cabo Verde. E, portanto, o que eu acho é que cada país, sobretudo as suas lideranças, deve pensar no futuro dos seus filhos, dos seus netos, para que amanhã África seja, efetivamente, um continente onde os seus filhos se sintam orgulhosos de viver. E isto criando, por exemplo, instituições inclusivas e construindo uma visão partilhada do futuro. E trabalhar arduamente para realizar o bem comum. E se todos fizermos isso, teremos uma África unida, forte, moderna, inclusiva e com oportunidades que possam ser partilhadas por todos.
leonidio.ferreira@dn.pt
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