Sentado à enorme mesa da sala de reuniões da sede do Centro Polaco de Ajuda Internacional, numa zona residencial um pouco fastada do centro de Varsóvia, Michal Kulpinski recorda as várias vezes em que já esteve na Ucrânia a dar apoio às populações locais. Algum susto?, queremos saber. Ao que o socorrista de cabelos encaracolados, com a camisola com as letras PCPM - iniciais do centro, em polaco - estampadas explica: “O local onde trabalhamos é o mais perigoso. Estamos a tentar não passar lá as noites. Estamos equipados com coletes à prova de bala, capacetes e tudo o resto.” E admite: “Temos alguns exemplos do nosso trabalho, das nossas reparações, que pouco depois foram novamente destruídas. Como um telhado que instalámos, foi frustrante.”Nestes dias finais do semestre de presidência polaca do Conselho da União Europeia, quem chega a Varsóvia depressa percebe que, por ali, a guerra na Ucrânia - e sobretudo a segurança dos polacos - não é uma coisa longínqua, mas sim uma preocupação diária. Isso reflete-se no próprio mote da presidência “Segurança, Europa!” e na sua prioridade: a Defesa Europeia. Afinal o gigante polaco partilha mais de 500km de fronteira com a Ucrânia e a ameaça russa é bem conhecida dos 40 milhões de polacos, depois da partição entre Rússia, Prússia e Áustria no século XVIII, que apagou o país do mapa durante 123 anos, e de mais de quatro décadas de um regime comunista só derrubado em 1989.Ladeado pelos colegas Daria Zebrowska, responsável pela integração dos refugiados ucranianos nas escolas, Przemyslaw Stachura, coordenador de operações do PCPM, além de Ewa Kwasnik, responsável pela Comunicação, Michal Kulpinski continua a explicar em que consistem exatamente os projetos do Centro de apoio à Ucrânia. E conta como uma das áreas em que deram ajuda foi com as chamadas “reparações humanitárias”. “Basicamente, são reparações ligeiras e médias - casas sem janelas, sem telhados.” O objetivo era, explica, “dotar estas casas dos chamados invólucros térmicos. Ter, pelo menos, uma divisão segura para se viver e onde as pessoas se pudessem aquecer no inverno”.Na fase inicial do conflito, o apoio passava muito por dinheiro, mas meses depois o PCPM decidiu distribuir esse dinheiro pelos deslocados internos na Ucrânia. “Depois mudámos para uma forma mais desenvolvida de ajudar, fornecendo dinheiro em troca de trabalho. A ideia era proporcionar salários aos deslocados internos nas zonas onde vivem. E o trabalho que faziam era para as autoridades locais. Estas, selecionavam coisas que precisavam de ser feitas. Não tinham dinheiro para, por exemplo, limpar ruas ou fazer remodelações. Mas graças ao nosso dinheiro, contrataram mais pessoas, mais funcionários, entre os deslocados internos da região. E puderam apoiar. Foi muito importante e interessante, ao mesmo tempo, porque não só ajudámos com dinheiro, como proporcionámos a estes deslocados internos algum tipo de dignidade, a possibilidade de fazerem alguma coisa, de trabalharem”, explica Kulpinski.Um dos projetos do PCPM é financiado pela Jerónimo Martins, uma das muitas empresas portuguesas instaladas na Polónia e ali conhecida, sobretudo, pela cadeia de supermercados Biedronka, cuja sorridente joaninha se encontra um pouco por todo o lado. “O projeto da Biedronka passa pela distribuição de bens alimentares e de kits de higiene aos grupos mais vulneráveis nas regiões de Kharkiv e Kherson”, explica Kulpinski. Segundo o site do PCPM, esta ajuda já terá chegado a 54 mil pessoas..A larga maioria - mais de 80% - dos refugiados ucranianos que a Polónia recebeu eram mulheres, muitas com crianças pequenas. Por isso o PCPM também se focou no apoio à integração dos menores no sistema de ensino polaco. Mas não só, desenvolveu um programa para contratar professoras ucranianas para dar apoio neste processo. Daria Zebrowska é uma das responsáveis desse programa e explica que este continua até hoje, com muitas professoras a terem-se instalado.Hoje ainda há 900 mil refugiados ucranianos na Polónia e têm surgido alguns relatos de abusos e xenofobia, mas no início da guerra o esforço de acolhimento foi quase unânime. E coube a todos. Uma dessas pessoas foi João Brás Jorge. O CEO do Bank Millennium, o braço polaco do português BCP, contou ao DN como a sua família se envolveu para ajudar. “As pessoas que queriam ir para Portugal, eram postas no comboio, nós recebíamo-las aqui e iam para a minha casa. Depois, a minha mulher ajudava-as a ir à embaixada para tratar das coisas”, explicou.A viver em Varsóvia desde 2006, sete anos antes de assumir a liderança do banco que tem o Millennium BCP como acionista maioritário, João Brás Jorge conta como, na altura, se mobilizaram no banco - “limpámos e preparámos 500 laptops para os miúdos ucranianos poderem usar para as aulas remotas na Ucrânia”, conta o CEO de uma instituição bancária que serve três milhões de clientes na Polónia, acrescentado que a tradição se manteve e hoje ainda “damos regularmente computadores, quer para a Ucrânia, quer para as zonas mais pobres aqui na Polónia”.Viver de olho na ameaça de MoscovoFoi a uma Varsóvia ainda a recuperar da reviravolta que dera a vitória do nacionalista Karol Nawrocki sobre o centrista Rafal Trzaskowski na segunda volta das presidenciais que cheguei no início do mês. Acabada de chegar do aeroporto, segui para um encontro com Marek Prawda. Antigo embaixador na Suécia, na Alemanha e na UE, o secretário de Estado-Adjunto para os Assuntos Europeus polaco não escondeu a preocupação com o cenário atual. “A guerra na Ucrânia foi uma experiência dramática, que trouxe de volta esta imagem da Rússia como uma ameaça. Isto não se aplica apenas à Polónia, é um problema para a ordem internacional.”O governante recordava ainda como a geografia foi ingrata para a Polónia, ladeada historicamente por “dois vizinhos gananciosos”. Também o secretário de Estado da Defesa, Pawel Zalewski, confessava, no dia seguinte, que as ambições russas passam por “controlar os Estados Bálticos e expulsar a NATO da Polónia.” Numa salinha do Ministério da Defesa, no centro de Varsóvia, este filho e neto de veteranos de guerra não revelava qualquer dúvida: “A Rússia só pode ser detida por aqueles que detêm o poder. É a única forma. Putin só compreende o poder bruto.”Talvez por isso o primeiro-ministro Donald Tusk tenha anunciado, há uns meses, planos para dar treino militar a todos os polacos. O objetivo é ter uma população o mais preparada possível para a guerra. E reflete-se nos números. A Polónia é já o país da NATO que mais gasta em Defesa - 4,7% do PIB previstos para este ano - e “estamos a preparar-nos para ter 300 mil soldados profissionais mais um milhão de reservistas para o Exército. É um número grande. Mas a experiência da Ucrânia mostra que, mesmo que esta guerra tenha mudado o seu caráter para uma guerra de drones, as pessoas ainda importam muito”, explicou Zalewski.O foco na Defesa também fez nascer na Polónia publicações especializadas neste setor. Como a Defense 24, o maior portal polaco dedicado à temática da indústria de defesa das Forças Armadas e da geopolítica. Reivindicando ter 200 mil leitores diários, o Defense 24 tem sede no centro de Varsóvia. É numa sala com a reprodução de um quadro onde se veem as invasões napoleónicas ocorridas na Península Ibérica, no século XIX - e que serve para quebrar o gelo -, que conversamos com Aleksander Olech. Para o chefe da Cooperação Internacional do Defense 24, a Ucrânia é, claro, um tópico essencial. Mas garante que a sua audiência, na larguíssima maioria polaca, apesar de terem alguns textos em inglês, se interessa por quase tudo - desde a relação com os EUA, ao reforço das relações com França e com o Triângulo de Weimar (Polónia, Alemanha e França), à compra de equipamento militar à Coreia do Sul ou à nova corrida ao espaço. E destaca a conferência anual que organizam, que tem lugar em Varsóvia, e para a qual convidam vários players ligados à Defesa, dos mais variados setores.Estado-membro desde 2004 e sexta economia da UE, a Polónia pode estar hoje politicamente dividida, como se viu nestas eleições, mas numa coisa todos concordam - liberais e conservadores, esquerda e direita - a ameaça vem de Moscovo.Passados três anos e meio da invasão russa da Ucrânia, a guerra pode já não estar tão no centro das notícias - eclipsada, talvez, pelas tensões e trocas de ataques entre protagonistas no Médio Oriente, mas na Polónia todos estão empenhados em lembrar ao resto da Europa que a ameaça russa não é um problema só deles e que, se a Polónia cair, ninguém na Europa está a salvo.Em Varsóvia.DN viajou a convite da embaixada da Polónia.Ucrânia: Exército ucraniano impede avanço russo e recupera posições em Sumi