"Na Hannover Messe mostrou-se um país muito moderno, um Portugal com poder inovador"
Empresas germânicas representam 50 mil postos de trabalho em Portugal, sublinha a embaixadora da Alemanha, realçando o excelente momento das relações, económicas mas não só. Na conversa com o DN, que foi feita em português, Julia Monar aborda também o impacto da guerra na Ucrânia, destacando a resposta da UE, que mostrou coesão frente à Rússia.
Como é que esta guerra que a Rússia está a fazer na Ucrânia afetou a Alemanha? E em primeiro lugar, do ponto de vista económico?
O ataque da Rússia à Ucrânia afetou não só a Alemanha, mas muitos outros países. Foi uma agressão, um crime, e muitos países, sobretudo os países emergentes, sofreram muito economicamente porque aumentaram os preços da energia e aumentou a inflação. Claro que também a economia alemã foi muito impactada - nós temos uma inflação de cerca de 9% - e isso exigiu uma mudança completa dos nossos abastecimentos de energia. Estávamos com uma dependência bastante grande da importação de petróleo e gás da Rússia, de que precisamos para as nossas indústrias, mas conseguimos e, neste momento, não importamos nem petróleo, nem carvão, nem gás da Rússia.
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Então pode-se dizer que a Alemanha tem, neste momento, a segurança energética garantida?
Talvez não se possa dizer nunca que é garantida, mas o desafio foi enorme. Por exemplo, Portugal só tinha 10% do gás importado da Rússia e nós tínhamos uma percentagem muito mais elevada, mas, como disse, conseguimos parar essa importação. Agora, por um lado foi pela poupança de energia, o que foi um grande esforço do povo alemão que tentou poupar energia em todos os lados, mas também tivemos de substituir o gás que vinha da Rússia por outros fornecedores. Vem muito gás da Noruega, mas também vem gás natural liquefeito através de dois terminais que construímos e que já estão em funcionamento, e que podem ajudar-nos a manter essa segurança energética até que o nosso fornecimento de energia mude ainda mais na direção das energias renováveis, que é a nossa meta final. Temos o objetivo de ter mais energia solar, mais energia eólica e aumentar essa percentagem no abastecimento energético alemão.
A questão de uma das centrais nucleares não ter fechado em final de 2022 como previsto não significa que o nuclear seja uma opção, foi só uma situação de emergência?
Exatamente, foi só uma situação de emergência. Alargámos o tempo em que essas centrais nucleares funcionam só em meio ano e isso não significa que a política nacional que não aposta na energia nuclear para produção de eletricidade tenha mudado.
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Estamos a falar de uma ou de duas?
Eram apenas três as que ainda iam fechar, mas foi alargado o prazo destas três até abril deste ano.
Um impacto do ataque russo que foi muito notado foi a Alemanha, de repente, fazer um compromisso com o aumento da sua despesa militar. Isso aconteceu em geral, noutros países, mas a Alemanha e o também Japão foram aqueles que se pronunciaram por um aumento maior em relação às suas despesas originais. É consensual na sociedade alemã este aumento do investimento militar?
Foi o nosso chanceler, que é o líder da coligação de governo, que anunciou dias depois do ataque russo na Ucrânia uma Zeitenwende: que os tempos mudaram e que tínhamos de reforçar a nossa defesa. Muitos países na Europa estão na mesma situação e sentem necessidade de reforçar as suas forças armadas. Nos últimos anos na Alemanha talvez as forças armadas não tenham tido os meios financeiros necessários para a manutenção do equipamento, por isso era muito preciso que o orçamento para a defesa fosse aumentado. O chanceler anunciou este fundo especial de 100 000 milhões de euros para fazer os investimentos prioritários para as nossas forças armadas. O nosso governo é constituído por uma coligação de três partidos e foi uma decisão unânime desses três partidos. Também vejo da parte da oposição alemã que há acordo em que estes investimentos sejam feitos nas forças armadas e na defesa da Alemanha e, também, no âmbito da União Europeia e da NATO.
Este ataque da Rússia também levou a NATO a mostrar uma coesão maior do que tinha, embora já com o presidente Biden ser muito diferente do que era com o presidente Trump . Neste momento, a NATO está coesa . A União Europeia também está coesa?
Sim, eu sinto que a UE tem mostrado durante este ano, que se completou no dia 24 de fevereiro desde o ataque da Rússia, que está muito unida. Como símbolo dessa união foi acordado nesse dia o décimo pacote de sanções. As sanções são medidas que têm impacto, como já falámos, nas economias dos diversos países da UE e o facto de 27 países europeus terem concordado com um décimo pacote para tratar de demonstrar as consequências económicas para a Rússia dessa guerra é um símbolo mais da coesão da UE face a este conflito.

© Leonardo Negrão / Global Imagens
Faz sentido, na gestão desta crise e na resposta da UE, falar do eixo franco-alemão? Há coordenação de posições entre Berlim e Paris?
A relação e a ligação entre a Alemanha e a França tem sido sempre muito estreita. Nós celebrámos em janeiro os 60 anos do Tratado do Eliseu com muitos eventos e sobretudo com um conselho de ministros que aconteceu em Paris. É claro que todas as decisões que são importantes para a UE e também todas as decisões importantes no mundo são decisões em que a Alemanha e a França falam, coordenam-se e consultam-se antes. Pode ser que também haja às vezes fricções nestas relações, mas eu acho que quando os dois países encontram soluções que sejam aceitáveis para os dois também elas muitas vezes se revelam aceitáveis para os outros países da UE. Nós somos países com estruturas políticas e económicas diferentes e, portanto, o facto de termos encontrado uma solução pode ser um exemplo, um modelo, para uma solução europeia.
Como é que imagina o futuro da relação da Alemanha com a Rússia, pensando que esta guerra acabará um dia? E, também, como é que imagina o futuro da relação da Alemanha com a China, tendo em conta que o chanceler Scholz fez uma visita à China e mostrou que a Alemanha, como o resto da Europa, faz uma diferença entre a Rússia e a China? Ou seja, como é que imagina que possa ser a relação com estes dois gigantes, tão diferentes?
Eu acho que, neste momento, temos de esperar para nos pronunciarmos sobre uma futura relação com a Rússia. Nesta situação de agressão contínua, a nossa meta principal é apoiar a Ucrânia e encontrar uma solução para o fim desta guerra e para que a Ucrânia não seja vencida pelas forças da Rússia, as forças agressoras. No que respeita à relação com a China já tivemos uma estratégia, no quadro da UE, que era uma espécie de tríade, porque tinha três aspetos diferentes - um em que a China é um parceiro económico, outro em que a China é um concorrente económico e outro ainda em que a China é um rival sistémico da UE. Este último aspeto revelou-se muito mais importante e prioritário nos últimos tempos. A Alemanha está a elaborar uma estratégia nacional com a China. Não quero antecipar-me ao governo, mas a estratégia elaborada pelo Ministério Federal das Relações Externas vai ser anunciada em breve. Acho que tem estes aspetos de rival sistémico com aspetos difíceis de aceitar, mas não queremos ter uma dissociação com a China, como já foi sugerido em anos passados, sobretudo pelos Estados Unidos. Precisamos da China para muitos desafios mundiais, como por exemplo, a luta contra as alterações climáticas, por isso temos de desenvolver, e queremos desenvolver, as relações com a China para enfrentarmos estes desafios mundiais.
Com a guerra na Ucrânia não se tem falado muito de outros problemas, mas a Alemanha, em 2015, surpreendeu o mundo quando foi tão recetiva à vaga de refugiados que veio da Síria e, ao mesmo tempo, ajudou a fazer o debate sobre como lidar com a questão dos refugiados, nomeadamente, ajudando o mundo mais pobre. Sei, por exemplo, que em relação a África houve um grande aumento da ajuda ao desenvolvimento. Para a Alemanha é importante também esta diplomacia de ajuda para evitar crises de refugiados e outro tipo de crises?
Sim. Eu acho que temos vários pontos de partida e um deles deve ser acolher os refugiados que chegam à Europa e partilhar o número de refugiados entre os diferentes países europeus, por isso temos de reformar o sistema de asilo europeu. Isso é uma necessidade, e vários eventos como o terrível acidente da semana passada mostra-nos que temos de atacar este problema. Claro que a Alemanha também tem sido um grande doador de ajuda humanitária para África, penso que ocupa o segundo lugar a nível de assistência humanitária para os países africanos. Pensamos que são os países em que vivem estas pessoas que se põem a caminho da Europa que têm de receber a nossa ajuda humanitária, mas também económica. Temos de ajudar para que as crises de segurança, as crises climáticas, nesses países possam ser resolvidas para que as pessoas não tenham de fugir dos seus países.
O nosso embaixador em Berlim deu uma entrevista recente ao DN em que disse que as relações entre Portugal e a Alemanha estão talvez num dos seus melhores momentos. Como é que classifica estas relações entre os dois países?
Concordo com o meu colega em Berlim. Desde que eu estou aqui, e já há muitos anos, que as relações são muito estreitas - este ano já tivemos a visita da ministra das Relações Externas, que esteve em reunião com o seu homólogo português. Não são só as visitas recíprocas, como nos conselhos europeus, os nossos ministros e ministras estão sentados lado a lado e isso faz com que se conheçam muito bem, além de que concordam em muitos temas de muitas áreas importantes para a Europa, como a política externa, a política de energia e a política social.
Portugal foi o país convidado na Hannover Messe do ano passado. Isso também teve feitos nesta relação, sobretudo a nível económico?
Eu acho que sim. Penso que a participação de Portugal foi um grande sucesso e também esteve muito presente na comunicação social alemã e apresentou um lado que talvez não fosse tão conhecido na Alemanha. Claro que conhecemos Portugal como destino turístico e como um país onde muitos alemães querem viver e trabalhar. Na Hannover Messe, onde estiveram cerca de 120 empresas portuguesas, mostrou-se um país muito moderno, um país com poder inovador, um país onde a digitalização está a progredir e um país interessante para parceiro económico e comercial nessa via da digitalização.
Muitas vezes, quando falamos das empresas alemãs em Portugal, há quem diga que a seguir ao Estado, com os funcionários públicos, são o maior empregador do país. Há condições para mais investimento alemão em Portugal?
Temos cá umas 400 empresas alemãs e são, de facto, um grande empregador. Contando com emprego direto e indireto somamos mais de 50 000 postos de trabalho em Portugal, o que já é muito. Também os produtos que estas empresas exportam são uma grande percentagem das exportações portuguesas. Penso que as condições são boas, as empresas vêm em busca de mão de obra qualificada e encontram-na, porque o sistema de educação português é muito desenvolvido e oferece, sobretudo, engenheiros informáticos que são agora muito importantes para as empresas alemãs que fazem pesquisa e desenvolvimento em Portugal. Essas empresas têm os seus laboratórios e fazem produtos de informática que antes não eram produzidos em Portugal. Portanto acho que há boas condições e eu gosto muito de ver e visitar as empresas alemãs no país e falar com os empresários. Temos a Câmara de Comércio Luso-Alemã para ver sempre como podemos melhorar as condições e podermos contribuir para que os jovens portugueses vejam as empresas alemãs como empregadores ativos.
A cultura alemã é muito admirada em Portugal, mas do ponto de vista da expansão da língua, tal como acontece com outras línguas, como o francês, nota-se cada vez mais o domínio do inglês, seja na aprendizagem, no ensino e nas referências. Como é que acha que a cultura alemã - e a língua -, pode tentar contrariar um pouco esta predominância do inglês?
Francamente acho que a predominância do inglês é um facto que não temos a missão de contrariar. Acho que na Alemanha também, como em muitos outros países, o inglês é a língua de comunicação para muitas pessoas, mas fiquei surpreendida com a forte tradição que o alemão tem aqui em Portugal, sobretudo na jurisprudência. Antigamente, os futuros estudantes de Direito tinham de aprender alemão, pelo menos durante dois anos, para poderem entrar no curso. Encontrei professores de Direito que leem correntemente textos em alemão; temos aqui o Instituto Goethe, que celebrou os 60 anos do ensino da língua; o teatro e o cinema alemães são muito admirados aqui. Aprender a língua alemã é uma mais-valia para poder trabalhar nas empresas alemãs; é uma mais-valia para trabalhar no turismo aqui em Portugal; e é uma mais-valia para se poder trabalhar na Alemanha ou noutro país onde se fale alemão. Penso que há muitos incentivos para se querer aprender alemão. Estive há poucos dias numa das escolas profissionais DUAL (Serviço de Qualificação Profissional da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Alemã), concretamente no Algarve, que está a formar jovens para trabalharem na hotelaria e claro que a língua alemã também serve muito para se conseguir esse emprego e trabalhar nesta área.
leonidio.ferreira@dn.pt
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