Uma barricada separa caldoches (habitantes de origem europeia) de um canaca (nativo).
Uma barricada separa caldoches (habitantes de origem europeia) de um canaca (nativo).DELPHINE MAYEUR/AFP

Na crise entre canacas e Paris o Azerbaijão mete a colher

Revolta pela aprovação da nova lei eleitoral deixa arquipélago do Pacífico em estado de emergência e em carência de víveres - e cria uma crise diplomática com Baku.
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O Governo francês decidiu enviar um reforço de mil agentes das forças de segurança para a Nova Caledónia, um arquipélago no Oceano Pacífico cujos autóctones, os canacas, se revoltaram contra a reforma eleitoral aprovada em Paris na Assembleia Nacional, na terça-feira. O estado de emergência foi imposto na quarta-feira pelo presidente Emmanuel Macron em resultado da violência que eclodiu e da qual resultou na morte de cinco pessoas (três manifestantes e dois polícias) e centenas de feridos. Enquanto tenta pacificar a capital, Numéa, Paris envolveu-se numa outra frente, ao acusar o Azerbaijão de ingerência. 

Em revolta, os canacas pró-independência, além de confrontos com as autoridades, deixaram um rasto de escolas incendiadas, lojas saqueadas e automóveis vandalizados em três noites de tumultos. O representante da República Francesa no território, o alto comissário Louis Le Franc, disse que a Nova Caledónia entrou numa “espiral mortífera” dado o clima “de insurreição”, e apelou para o fim da violência por parte dos “jovens desordeiros”. Em resposta, a população caldoche (de origem europeia) ergueu barricadas e montou vigílias. 

Com o estado de emergência em vigor, o primeiro-ministro, Gabriel Attal, anunciou o envio de soldados para os portos e o aeroporto. Também avançou com a interdição do TikTok, tendo alegado que este serviço de vídeos curtos é usado para o apelo aos motins entre os jovens. Mas a proibição é também para limitar a desinformação oriunda de países terceiros. Foi ainda anunciada uma ponte aérea (de 17 mil quilómetros) entre o continente e o arquipélago para suprir as carências que estão à vista, dos hospitais e farmácias sem medicamentos aos supermercados sem bens alimentares, bem como aos postos de combustível sem gota. 

O cerne da revolta é o projeto de lei que altera o corpo eleitoral para os escrutínios ao Congresso e às assembleias provinciais da Nova Caledónia (nome cunhado pelo navegador James Cook em homenagem à Escócia, cujo nome latino era Caledónia, e que os independentistas querem alterar para Kanaky). Até agora, fruto dos acordos entre Paris e Numéa, estava previsto que os eleitores dos três referendos sobre a autodeterminação, mas também nas eleições locais - a partir do qual é escolhido um governo e respetivo presidente -, estavam limitados aos cadernos eleitorais de 1998 e aos seus descendentes diretos.

Esta era uma exigência dos canacas pró-independência, para que os autóctones não ficassem em minoria em relação aos outros cidadãos franceses migrados entretanto para o arquipélago que conta hoje mais de 270 mil habitantes (dos quais pouco mais de 40% são canacas, segundo o último censo). A nova lei, aprovada no princípio do mês no Senado e confirmada na Assembleia, concede poder de voto aos cidadãos que vivam no território há mais de dez anos, diluindo a representação dos canacas.

“Se Macron forçar a entrada em vigor, vai ser tão complicado como foi durante os ‘acontecimentos’”, diz a sindicalista Rosine Streeter em referência aos anos de violência entre canacas e caldoches. “Eu vivi esse período e parece que a França não aprendeu nada”, afirmou à France TV.

“Sobre o Azerbaijão, não é uma fantasia, é a realidade. Todos sabemos que é uma ditadura que massacrou uma parte dos arménios e lamento que alguns dos independentistas da Nova Caledónia tenham feito um acordo com o Azerbaijão”, disse Gérald Darmanin questionado sobre a ingerência daquele país. GUILLAUME SOUVANT / AFP

Para complicar a situação, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, acusou o Azerbaijão, presidido pelo autoritário Ilham Aliyev, de ingerência. De facto, em julho do ano passado foi criado o Grupo da Iniciativa de Baku com o objetivo professado de combater o colonialismo. No entanto, as suas iniciativas são todas direcionadas contra França, no que é visto pelos analistas como uma resposta ao apoio de Paris à Arménia na questão do Nagorno-Karabakh. Em abril, uma congressista da Nova Caledónia deslocou-se a Baku onde assinou um acordo com o parlamento local, tendo agradecido ao Estado azerbaijano ao seu lado “no caminho para a independência”.

Nas manifestações em Numéa, bandeiras do Azerbaijão são vistas ao lado da bandeira do movimento independentista - e em cópia aos protestos recentes na África francófona, há mensagens favoráveis a Vladimir Putin. Depois de Darmanin ter dito que a ingerência daquele país à beira do Mar Cáspio é “uma realidade”, o porta-voz do MNE do Azerbaijão sugeriu ao ministro francês recordar a história do seu país, que “assassinou brutalmente milhões de pessoas inocentes no âmbito da sua política colonial”. 

Secessão rejeitada em três referendos

Colonizada em meados do séc. XIX pela França, a Nova Caledónia deixa de ter aquele estatuto no final da II Guerra Mundial, mas o desenvolvimento das infraestruturas não foi acompanhado de reformas suficientes, o que gerou um clima de guerra civil nos anos 80 entre os independentistas do FLNKS e seus opositores. A violência deu lugar a um acordo, em 1988, aprovado por referendo em França, que previa a autodeterminação. Dez anos depois, novo acordo político oferece um estatuto especial, larga autonomia, e a realização de três referendos no arquipélago sobre a independência, os quais foram rejeitados em 2018, 2020 e 2021.

cesar.avo@dn.pt

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