"Na América vamos continuar a trabalhar no sentido de abraçar a diversidade, a equidade racial e a paridade de género"
Gospel, jazz e hip-hop interpretados por artistas lusófonos no Teatro da Trindade, em Lisboa, é uma forma encontrada pela embaixadora americana de assinalar o Mês da História Negra. Em conversa com o DN, centrada no contributo dos afro-americanos para o mosaico que são os Estados Unidos, Randi Charno Levine assume-se "uma criança dos anos 60" e diz que morte de Martin Luther King foi um momento de viragem. Já a eleição de Barack Obama para presidente e mais recentemente a de Kamala Harris para vice são inspiradoras.
Comecemos por falar do concerto de terça-feira, o L'USA-Fonia, no Teatro da Trindade, em Lisboa, no âmbito do Black History Month. Estarão em palco artistas lusófonos, mas as músicas serão verdadeiros clássicos afro-americanos. Qual o objetivo do espetáculo, que é de entrada gratuita e já esgotou os bilhetes?
Há muitas semelhanças culturais entre Portugal e os Estados Unidos, muitos laços. Não só pela Diáspora portuguesa e a nossa longa história, mas também porque Portugal é um parceiro fundador da NATO. É por isso que me sinto tão afortunada por estar em Portugal, há tantas similaridades. O que estamos a tentar fazer é juntar os portugueses e os americanos em torno de temas comuns através da arte e cultura, que é a espinha dorsal deste programa de atividades. Sinto que, como alguém que tem um background muito forte nas artes, a melhor forma de comunicar com as pessoas é através de uma linguagem comum. E o que é melhor do que arte, música e dança? Fizemos tudo nesse sentido, da diplomacia hip-hop até esta exibição de arte que vê aqui na residência oficial, com muitos artistas afro-americanos representados, e agora este maravilhoso concerto. Desde que estou em Portugal que adoro a arte e a música que vou descobrindo. Na verdade, tenho viajado pelo país e vou ouvindo música em pequenos lugares e vejo que há tantos artistas de Cabo Verde, Moçambique ou Angola. Então pensei que seria ótimo se no Black History Month, o Mês da História Negra, em vez de nos focarmos apenas nas artes visuais, nos focássemos também na música e em como as nossas duas culturas veem a música e honram a influência da cultura negra, a influência negra, nas artes e na música. Começámos a trabalhar em conjunto com algumas pessoas que conhecemos com o objetivo de identificar artistas luso-africanos e lusófonos que sejam conhecidos e que estivessem confortáveis a tocar géneros musicais americanos, como, por exemplo, gospel.
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É especial para si o gospel?
O gospel, para mim, é um tipo de música pungente e as pessoas sentem isso, fá-las pensar, traz tristeza, mas também sempre alegria. Por isso decidimos tocar gospel, jazz, um pouco de hip-hop, até tive a honra de conhecer o Sam the Kid através do programa de diplomacia de hip-hop que fizemos. Neste caso, na terça-feira, não contamos com o Sam, mas vamos reunir estes artistas diferentes para que possamos todos honrar o Mês da História Negra, tudo o que alcançámos, e trazer luz sobre alguns dos problemas, lutas e alegrias da cultura negra, tanto na América quanto em Portugal.
Quando falamos sobre a cultura negra e a sua influência na sociedade americana, a música é provavelmente uma das contribuições mais fortes dos negros.
Acho que sim. Se olhar para esta casa e para a arte nas paredes, verá que temos em exposição um artista mexicano-americano e também um asiático-americano, que temos mulheres na coleção, mas mesmo assim ainda estamos a trabalhar para conseguir a paridade de género e para honrar a contribuição das mulheres para a nossa sociedade. Acho que é realmente importante ter a certeza de que estamos a olhar com uma visão contemporânea de diversidade. E, claro, a contribuição dos afro-americanos, particularmente nas artes e muito na música, não só faz parte espinha dorsal da América, através da arte e da cultura - que é o meu interesse particular -, como também é algo muito forte e importante em todas as áreas. Esta é a nossa forma de honrar as contribuições, particularmente durante o Mês da História Negra, dos afro-americanos e da cultura afro-americana.
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Como nasceu esta ideia do Mês da História Negra?
A História Negra não nasceu como um mês, foi primeiro, na verdade, uma semana. Originalmente, nos anos 1920 coincidiu com a data de nascimento de Abraham Lincoln e também com o aniversário de Frederick Douglass, que era um grande líder negro. Foi o presidente Gerald Ford que em 1976 expandiu a celebração para ser o Mês da História Negra. E isso deu-nos a oportunidade de refletir e de ter celebrações, participações, coisas que nos lembram que, para ter a certeza de que seguimos em frente de forma positiva, temos de reconhecer o nosso passado. São coisas que nos ajudam a lembrar que estamos sempre a tentar fazer melhor no sentido da equidade racial e da justiça social.
Relativamente à diversidade crescente da sociedade americana, por exemplo, reflete-se no staff da embaixada? Trabalham consigo asiático-americanos, afro-americanos...
O Departamento de Estado, em geral, está a trabalhar muito para que tenhamos uma representação diversificada no staff. Estamos sempre a tentar que assim seja e fizemos grandes esforços nesse sentido. Queremos ter a certeza de que mostramos uma imagem de diversidade e que temos uma comunidade diversa através do nosso programa. A nossa interface Face Forward com a comunidade é através do nosso programa. Estamos a concentrar-nos realmente na diversidade através do nosso programa e estamos a tentar "empurrar" isso para a comunidade. Por exemplo, em outubro trouxemos um programa chamado Next Level, de diplomacia de hip-hop,. Pegámos em 20 artistas profissionais de hip-hop, dos Estados Unidos, viajámos por Portugal inteiro para identificar pessoas jovens e talentosas e depois trouxemos essas pessoas para um simpósio de hip-hop, de duas semanas. Procurámos músicos, dançarinos, rappers, pessoas que se concentram na música, porque este é um programa que se realizou já em 40 países e tem mais de dois mil alunos. Trouxemos os alunos para falar sobre conflitos e resolução, sobre empreendedorismo e até o Sam the Kid veio e disse-lhes algo muito importante: "O sucesso não é vender, é ser empreendedor e correr riscos para obter benefícios." Posto isto, eu disse que ele já estava a correr esse risco de andar pelo país e fazer o que faz, é algo muito importante enviar mensagens através da música e retirar os benefícios disso.

Quadro Entry into Paris of the Dauphin, de Kehinde Wiley, o artista que pintou o retrato de Barack Obama que está na National Portrait Gallery, em Washington.
© PAULO SPRANGER /Global Imagens
Percebo que através destes programas consegue demonstrar como a cultura americana pode ser diversificada, mas quando olhamos para os colaboradores da embaixada, especialmente os que são americanos, acha que esse esforço do Departamento de Estado já está a conseguir refletir a diversidade?
Diria que o governo americano e o governo português estão a trabalhar muito, por exemplo, para termos o primeiro gabinete com paridade de género. Estamos todos a trabalhar para fazer sempre melhor e é também um trabalho em progresso. O Departamento de Estado tem muitas iniciativas para criar uma equipa de colaboradores diversos, pois isso é algo em que estamos sempre a trabalhar. A América não é perfeita, acho que se vê que a natureza da nossa democracia é sobre debate e sobre desafio. Ficamos felizes em falar sobre coisas positivas, mas toda a gente também está disponível para falar das coisas negativas. Acho que o Mês da História Negra representa o nosso constante esforço em direção à diversidade, em direção a ter a certeza de que a representatividade que temos representa a América como um todo. E isso é uma luta constante e um esforço por parte do Departamento de Estado, por parte da nossa equipa e também por parte de Portugal e do seu governo. Uma das coisas que fazemos são celebrações, acho que já tivemos uma celebração muçulmana, uma celebração hindu e uma celebração judaica, aliás eu própria sou judia. Estamos constantemente a trabalhar para diversificar a nossa equipa. O Departamento de Estado muda as equipas a cada três anos, e, como temos a possibilidade de ocupar novas posições, queremos sempre ser cuidadosos para que os americanos que aqui estão representem a diversidade da América. Mas é um trabalho em progresso, como disse.
Imagino que tenha memórias de criança da altura do movimento pelos direitos civis liderado por Martin Luther King, ou pelo menos que tenha algumas memórias de episódios contados pelos seus pais.
Sim.
Esse foi um momento importante para a história americana, de luta pela igualdade. De que forma o movimento de direitos civis a afetou?
Sou uma criança dos anos 60, foi nessa década que se deu o assassínio de John Kennedy e depois de Robert Kennedy. Acho que um verdadeiro ponto de viragem para mim, quando comecei a pensar e a ter algumas conversas sobre isso, foi quando Martin Luther King foi assassinado, em 1968. Penso que a morte dele fez eco por toda a América de muitas formas diferentes. Ele era ideal para a liderança, ainda hoje permanece como pessoa ideal para a liderança da sua comunidade e para a mudança. Quando olho para trás, para quando era jovem e para coisas que aconteceram que realmente mexeram comigo, vejo que foi um ponto de viragem para ter essas conversas. A América nos anos 60 era um lugar muito diferente do que é hoje. Diria que, para mim, foi provavelmente um evento formativo que trouxe essas conversas à mesa em minha casa, na América e no mundo.
Quando viu, em 2008, alguém como Barack Obama ser eleito presidente dos Estados Unidos ou, em 2020, Kamala Harris ser eleita vice-presidente, foi algo de quase inacreditável para si? Demonstra de facto a mudança dos últimos 60 anos?
É incrível. E sim, acho que Obama ter sido eleito presidente foi muito importante, não apenas por ter sido o primeiro presidente negro, mas especialmente pela forma como se dirigiu à nação, pelas mensagens que transmitiu às pessoas e pela forma como essas mensagens mexeram com as pessoas. Toda a mudança que ele estava a incutir nos Estados Unidos nessa altura foi mesmo muito importante. Como sabe, estou, obviamente, muito envolvida com os Biden e, quando Kamala Harris apareceu, achei maravilhoso ver alguém como Joe Biden - um homem branco, tradicional e proveniente de uma família da classe trabalhadora - escolher Kamala Harris para estar ao seu lado. Creio que foi uma mensagem muito importante que o presidente conseguiu enviar a toda a América. Ela é afro-americana, tem também ascendência asiática, é mulher, e isso para mim levantou o véu sobre aquilo que podíamos esperar da liderança Biden-Harris. Por exemplo, eu sou apenas a segunda mulher a ser embaixadora em Portugal, depois de Elizabeth Frawley Bagley, nomeada pelo presidente Bill Clinton. Portanto, acho que Biden e Harris mostraram a mensagem que queriam passar, mas, mais do que isso, puseram-na em prática.
Na sua opinião, eleger uma mulher presidente dos Estados Unidos - e Hillary Clinton esteve perto - será ainda mais significativo do que eleger alguém de uma minoria racial?
Não acho que haja uma coisa mais significativa do que a outra, creio que todos os passos que damos mostram que, enquanto povo americano, estamos a começar a entender que, independentemente da ascendência das pessoas ou do seu género, todos estes grupos deram uma grande contribuição para a construção da nação. A América é um mosaico, é muito diversa, acho que o facto de os americanos estarem a reconhecer que todos estes grupos contribuíram para o que é hoje a América e para o que significa a América, já é uma grande vitória.
Mas provavelmente a América é mais uma taça de salada do que um caldeirão? E recupero aqui as duas expressões tradicionais de salad bowl e de melting pot para tentar descrever a sociedade americana.
Percebo o que está a dizer, mas penso que é por isso que é tão importante termos o Mês da História Negra e o Mês Internacional das Mulheres, para reconhecermos a importância destes grupos e garantirmos que há justiça social, equidade e respeito. Talvez essas coisas nos comecem a transportar da taça de salada para o caldeirão. Como disse, somos um trabalho em progresso, mas definimos estes objetivos para nós próprios enquanto país e democracia. Na América vamos continuar a trabalhar no sentido de abraçar a diversidade, a equidade racial e a paridade de género. Creio que estamos a ir na direção de nos aproximarmos de onde queremos estar.

leonidio.ferreira@dn.pt
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