“Musk não quereria ser presidente dos EUA. Tem muito mais poder com as suas empresas”
EPA/Aaron Schwartz

“Musk não quereria ser presidente dos EUA. Tem muito mais poder com as suas empresas”

A jornalista francesa Christine Kerdellant falou ao DN de 'Mais Poderosos do Que os Estados', onde alerta para o poder de Elon Musk, Bill Gates, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg e Sergey Brin e Larry Page.
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O seu livro Mais Poderosos do Que os Estados é sobre o poder dos multimilionários das empresas tecnológicas. No mínimo é um assunto quente...

Sim, quando o escrevi não fazia ideia de que haveria um tal conluio entre Donald Trump e Elon Musk. Mas tudo o que eu disse continua válido, mais válido do que nunca. Não fazia ideia até que ponto Elon Musk se ia envolver com o novo governo americano, sem estar no governo.

Essa é uma questão: Musk lidera o Departamento de Eficiência Governamental, mas não é um membro da Administração...

Não é. Para evitar conflitos de interesses, embora existam muitos. É um conselheiro. E ser conselheiro não implica as mesmas obrigações. Ele não tem de abdicar das suas empresas, o que nunca teria aceitado fazer. A verdade é que ele tem um poder enorme sobre os cortes na despesa. Tudo o que ele aconselha, Trump parece, para já, aceitar. Mesmo que pudesse, acho que ele não estaria interessado em ser presidente dos EUA. Musk tem muito mais poder com as suas empresas. Um presidente fica quatro anos... Um presidente não é tão poderoso como um empresário como Mark Zuckerberg ou Elon Musk, porque tem o Congresso, os senadores, a impedi-lo de fazer o que quer. Nos seus negócios, Musk faz absolutamente o que quer. Para voltar à Lua, ele tem um contrato com a NASA, eles pagam-lhe para isso. Mas para ir a Marte, por exemplo, teve de convencer a NASA ou o governo americano a financiá-lo. E quando Trump diz que o próximo objetivo é Marte, tudo isso é vantajoso para Musk, porque a ideia é dele. Na minha opinião, foi por isso que ele financiou Trump. O facto de ter influência sobre Trump significa que pode acelerar os seus planos - para ir a Marte ou monitorizar a legislação posta em prática pela Administração Biden sobre Inteligência Artificial, por exemplo. O que ele quer é o mínimo de regulamentação possível, para que toda a gente possa fazer o que quiser. De uma forma muito libertária. Mas para ele, o poder de influenciar algumas decisões políticas é suficiente, não deseja ser presidente, nem decidir os mais pequenos pormenores do que acontece nos EUA. A redução da despesa é uma ótima ideia libertária. Ter o mínimo de governo possível, porque menos governo significa menos constrangimentos para as empresas. Atualmente, há 19 investigações sobre as atividades de Musk no que respeita ao sistema de condução autónoma nos carros da Tesla. No caso da SpaceX, há investigações sobre os danos ambientais que causou durante o lançamento do seu maior foguetão. Por isso é do seu interesse assegurar que todas as agências que conduzem estas investigações sejam desmanteladas, que sejam destituídas dos seus recursos ou que sejam controladas de uma forma ou outra. Esta é a sua ideologia, mas é também do seu interesse direto, porque está a atacar as agências que o estavam a investigar. Ser presidente, não creio que isso lhe interesse. De qualquer modo, ele nunca o poderá fazer, pois não nasceu nos EUA. Mas mesmo que pudesse, ele não quereria ser presidente, porque estaria a fazer muitas coisas improdutivas em relação aos seus negócios, como inaugurar monumentos, viajar para o estrangeiro, etc. O que ele quer é ter uma influência nas decisões que, em última análise, afetam o seu negócio.

Musk está envolvido na política de países europeus como Alemanha ou Reino Unido. Estes multimilionários não só são mais fortes do que os Estados, como tentam controlar os Estados?

É um pouco isso. Ao desestabilizar os eleitores e os partidos políticos em certos países, o que Musk quer é minar o poder europeu e as regulamentações europeias. Ao apoiar a extrema-direita, Musk quer levar ao poder pessoas que, como ele, são libertárias, que defendem menos Estado, menos governação, menos regulamentações na Europa. É isso que ele está a tentar fazer. Mas também está a tentar dividir os países europeus quando negoceia satélites de comunicação seguros com a senhora Meloni, num momento em que a Europa estava a preparar a mesma coisa coletivamente.

Com dois egos tão grandes, não é de esperar um choque entre Trump e Musk?

Sim. Vai durar algum tempo, mas tenho a certeza de que não vai durar quatro anos. Não é possível. Haverá demasiados conflitos de interesses entre os dois. Já houve um, no projeto da SoftBank com a OpenAI - 500 mil milhões de euros em Inteligência Artificial. Musk não gostou nada do facto de a OpenAI ser sua concorrente. Desta vez limitou-se a um tweet, mas Trump irá anunciar mais coisas que não agradarão a Musk. Por isso, inevitavelmente, a dada altura, haverá algo mais sério. Veja-se o caso da China. Musk tem interesses na China, tem lá uma grande fábrica, vende lá muitos Tesla. Também disse que Taiwan deve fazer parte da China. Não é de todo o que Trump quer. É suposto os EUA defenderem Taiwan contra a China. Trump opõe-se vigorosamente à China, enquanto Musk está a defender o governo chinês até certo ponto.

Mais Poderosos do que os Estados

Christine Kerdellant

Edições 70

222 páginas

Passemos a Bill Gates, o fundador da Microsoft é conhecido pela sua filantropia. Mas tem sido atacado pelo controlo que exerce sobre a OMS. Deixar um só homem ter tanto controlo sobre um sector vital, como a Saúde, é perigoso para a Humanidade?

Apesar de não ser o maior doador, Bill Gates faz o que quer na OMS porque o financiamento de centenas de milhões de dólares que ele dá todos os anos está condicionado à sua satisfação. É perigoso porque, no final, é ele quem decide em que país uma determinada vacina será administrada e quando. É verdade que Gates quer que os seus fundos sejam eficazes. Mas um dia ou outro, pode tomar uma decisão que não é a mais favorável em termos globais, mas que lhe convém a ele. No que se refere, por exemplo, às vacinas RNA para a covid-19, alguns governos gostariam que abrissem as patentes, para que os países africanos pudessem vacinar mais barato. Mas Gates telefonou a todos os chefes de Estado que conhece - e são muitos - para defender a não-liberalização das patentes. Apesar de tudo, Bill Gates é muito menos incómodo do que Musk ou Zuckerberg ou Jeff Bezos. A rede social da Microsoft, por exemplo, o LinkedIn, é a menos perigosa.

É diferente do Facebook ou do Instagram.

A Microsoft é obviamente uma grande potência. Mas Bill Gates já não está no comando. É, acima de tudo, um filantropo e, como tal, investiu grande parte da sua fortuna na Saúde mundial. Por isso, para mim, ele é menos nocivo. O meu argumento contra estes homens é que eles estão a impor-nos o seu modelo de sociedade: transumanista, com chips no cérebro, com as redes sociais a alterarem profundamente a sociedade. Tivemos um aumento de 56% de suicídios [entre 2007 e 2017] entre os jovens dos 10 aos 24 anos. E são as redes sociais que tornam isto ainda mais grave, porque o medo de ser julgado pelos outros, etc., leva a distúrbios alimentares, problemas de ansiedade, depressão e até mesmo ao suicídio entre os adolescentes. Nesse sentido, Bill Gates é menos perigoso - inventou o computador, mas não as redes sociais.

Estávamos a falar de cuidados de saúde e Jeff Bezos é outro multimilionário que tentou entrar no setor. Não conseguiu, mas é uma questão de tempo?

Sim, é uma questão de tempo, porque vai voltar a tentar. Nomeadamente no que se refere às associações mutualistas, às companhias de seguros. Estamos a falar de um dia em que cada um terá um chip no corpo que dirá tudo o que fez, quanto álcool consumiu, a que velocidade conduziu, que drogas tomou, quão perturbado esteve. E esse chip definirá quem pode ou não ter um seguro. Não sei se isto irá beneficiar diretamente Jeff Bezos, mas irá beneficiar aqueles que conhecem os dados das pessoas. Bezos é um dos acionistas da Synchron, uma empresa que, tal como a Neuralink, está a colocar chips para ajudar as pessoas com deficiência a comunicar diretamente com a máquina. Mas, noutra fase será para toda a gente. E se o fluxo de informação passa entre cérebro e máquina, também passará entre máquina e cérebro, o que significa que um dia poderão controlar os seres humanos com os chips. Hoje parece ficção científica, mas receio que lá cheguemos rapidamente.

O que também parece ficção científica é a ideia de Larry Page e Sergey Brin, os fundadores da Google, de tornar o homem imortal. As regras éticas não existem para os multimilionários, ou, pelo menos, eles pensam que não se lhes aplicam?

São libertários e muitas vezes utilitaristas. No livro, ouvi alguns utilitaristas, pessoas que dizem que é melhor tratar 800 crianças com 40 mil euros do que dar um cão-guia a um cego, porque é mais interessante em termos do número de pessoas salvas. Os libertários só querem saber de eficiência absoluta, sem se preocuparem com considerações éticas. É a eficácia económica a qualquer preço. Menos quando lhes toca de perto. Sergey Brin, por exemplo, a mãe dele tem Parkinson e ele sabe que é provável que também venha a ter, por isso começou a colocar fundos na investigação desta doença. Mais uma vez, o objetivo é chegar ao ser humano imortal, atacando o envelhecimento. Independentemente de qualquer regra de ética coletiva. Eles tomam decisões sozinhos no seu canto, a pensar no que é melhor para eles.

Christine Kerdellant é jornalista de  economia no Les Échos.
Christine Kerdellant é jornalista de economia no Les Échos.

Chegamos então a Zuckerberg, o criador do Facebook que tem os dados de 3000 milhões de pessoas. É o novo petróleo?

Neste momento, é mais valioso do que o petróleo, por causa da publicidade direcionada que eles vendem aos anunciantes. Ao saberem o que cada pessoa vê, no que está interessada, podem vender publicidade programática a um preço mais elevado. E isso multiplicado por 3 mil milhões. Pode dizer-se que Zuckerberg é mais poderoso do que um chefe de Estado, porque Trump, por exemplo, “só” governa 330 milhões de americanos. A certa altura, disse-se que Zuckerberg queria ser presidente dos EUA. Mas penso que, tal como Musk, ele disse a si próprio que ser presidente só beneficiaria indiretamente os seus negócios. Eles perceberam que têm mais poderes do que um presidente tradicional. O problema é que o seu poder é extremamente nefasto. É a democracia que está em perigo quando as redes sociais só nos alimentam com coisas que vão ao nosso encontro, deixamos de estar abertos aos outros, deixamos de discutir com pessoas que não concordam connosco. Zuckerberg arbitrou a favor destas técnicas, que tornam as redes sociais mais viciantes, que nos tornam cada vez mais ligados, e passamos cada vez mais horas nelas, e tornamo-nos cada vez mais extremistas, e infelizes.

Falámos da democracia e da dificuldade em combater a influência destes multimilionários e no seu livro também fala da China. Para controlar estes homens, é preciso um Estado autoritário?

Uma vez que os EUA não fazem nada para proteger a dignidade humana, e com Trump, pelo contrário, fica-se com a impressão de que só os regimes autoritários conseguem conter estes homens. É óbvio que não posso defender regimes autoritários. O que foi feito a Jack Ma (fundador da Alibaba) e aos outros multimilionários chineses foi horrível. Não quero viver numa sociedade assim. O Governo chinês deixou-os crescer e, logo, começaram a desenvolver métodos não-competitivos, mais de 40 milhões de crianças chinesas ficaram com uma saúde mental deficiente devido às redes sociais, disse uma vez Xi Jinping. As mesmas causas produziram os mesmos efeitos na China, só que Pequim decidiu assumir o controlo, usando métodos antidemocráticos, prendendo, matando, colocando-os na prisão, retirando-lhes as ações. A China não é um Estado de Direito. Fizeram coisas que nós deveríamos poder fazer, mas utilizando métodos democráticos. Esse é o próximo desafio.

Apesar dos efeitos nefastos que podem ter, as sociedades democráticas enfrentam o dilema: podemos correr o risco de perder os avanços tecnológicos que estes homens nos proporcionam, em troca de mais controlo?

Esse é o problema. A Inteligência Artificial (IA), por exemplo, tem aspetos muito positivos. Pode ajudar a resolver problemas ambientais, com uma melhor gestão dos resíduos. Mas também pode ter um efeito muito negativo se não for controlada. É fácil imaginar a IA a provocar crises financeiras, a provocar guerras, a tomar decisões sozinha. Assim, a IA tem aspetos positivos e negativos. É uma pena passar sem os aspetos positivos, mas temos de evitar os negativos. Isso só pode acontecer, como a Europa está a fazer, através de regulamentos, controlos e equilíbrios.

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