O aborto foi um dos grandes temas das presidenciais americanas de 5 de novembro. E muito polarizador…Sim. Curiosamente, muitas pessoas pensaram que seria vantajoso para Kamala Harris, mas isso não aconteceu..Não foi. Porquê?Eu não sou especialista em eleições, e não voltei a casa depois das eleições e, por isso, talvez não compreenda até que ponto estamos polarizados. Mas tenho um grande projeto em que estamos a codificar as leis dos 50 estados sobre o aborto. Qual é o nível de acesso ao aborto? Qual é o grau de dificuldade para as mulheres? Em parte tem sido um fluxo e refluxo, quase uma oscilação do pêndulo. Quando as coisas voltaram para os estados, as pessoas tiveram de se confrontar pela primeira vez com o que estas leis sobre o aborto significavam efetivamente para as mulheres. Por isso, algumas foram submetidas a referendo nos estados. A 5 de novembro houve dez referendos. E esta foi a primeira vez, desde Dobbs [v. Jackson, a decisão do Supremo Tribunal que considerou que a Constituição dos EUA não confere o direito ao aborto, anulando Roe v. Wade, de 1973] que os referendos não resultaram todos num maior acesso. Até agora, tínhamos estados como o Kansas, que ninguém considera profundamente progressista, onde num referendo há dois anos em que se perguntava se queriam banir totalmente o aborto, eles votaram não. Foi um voto a favor de maior acesso ou, pelo menos, da preservação do acesso. Ora, o Kansas não tem uma lei muito permissiva em matéria de aborto, mas optaram por não a tornar mais restritiva, e foi o que aconteceu com todos os referendos até novembro. Aí houve referendos de diferentes tipos, mas em três deles, no Nebraska, Dakota do Sul e Florida, votaram contra o aumento do acesso, o que foi inédito. Isso significa que talvez tenhamos chegado a um equilíbrio em torno do aborto, em que os americanos aceitam as restrições nalguns locais e não noutros. O Arizona, por exemplo, fez um referendo. A pergunta colocada no boletim foi se deveríamos passar de 15 para 24 semanas, ou seja, um prolongamento. Votaram “sim”, mas o estado foi ganho por Donald Trump. É desconcertante. Harris foi uma ótima defensora da ideia de que precisamos de mais acesso ao aborto. Mas muitos americanos acreditavam que se fossem votar a favor do aborto, estariam a votar em Harris. A teoria é que ao meter o referendo no boletim de voto dava permissão a algumas pessoas para votarem “sim” ao aborto e fazerem o que quisessem na eleição presidencial. Era aquilo a que chamaríamos um “divisor de ticket”. Parte do ticket era o aborto, e parte do ticket era Trump ou Harris. E os americanos podiam dizer “sim ao aborto, não a Harris”. Por isso, pode ter feito bumerangue..Quando olhamos de fora, parece haver uma clara divisão política nesta matéria: democratas são pró-escolha, republicanos são pró-vida. Mas não é tão simples assim, pois não? Até vimos a primeira dama Melania Trump vir garantir que é pró-escolha…Não é simples. E vimos muitas hesitações. Dizerem isto, depois dizerem aquilo. Trump, por exemplo, fez isso. Não conseguimos perceber completamente as posições dos vários protagonistas. No debate entre Harris e Trump, ele diz que não vai haver uma proibição nacional. Ela diz que precisamos de acesso. Ele depois acusa-a de ter “opiniões extremas sobre o acesso”. Ambos os lados chamam extremista ao outro. E, no final, os americanos não fazem ideia do que qualquer um deles defende. Eu tenho estado a codificar as leis dos 50 estados. E o que é muito claro é que - isto vai parecer contra-intuitivo - temos um consenso hiper-maioritário sobre o aborto na América. Agora, se os políticos o vão aplicar já é uma coisa diferente. Penso que temos um problema nesse domínio. Mas os americanos acreditam no seguinte, e têm-no feito desde Roe v. Wade, durante mais de 50 anos: acreditam que o aborto precoce deve ser permitido e que não é tão mau como um aborto a meio do ciclo ou um aborto tardio. Em 1976 surgiu a Emenda Hyde - que diz que nenhum dinheiro federal pode ser usado para o aborto - um consenso bipartidário que se manteve e é renovado anualmente porque é aquilo a que chamamos uma cláusula orçamental, afeta o orçamento. Mas o que importa são as exceções - não podem ser utilizados fundos federais para o aborto, exceto para salvar a vida da mãe, em caso de violação ou de incesto. Essas exceções têm tido um apoio muito consistente, com 60, 70%. Para mim, tem sido uma experiência incrivelmente enriquecedora estar em Portugal nesta altura, porque aqui a interrupção voluntária da gravidez é legal até às 10 semanas. Portanto, é muito semelhante à paisagem americana no que respeita ao aborto. A lei estatal que foi contestada em Dobbs [v Jackson] era uma lei do Mississippi. Ora, o Mississippi é profundamente religioso - chamamos àquela zona o Cinturão da Bíblia - e profundamente conservador em termos políticos. E tinha um limite de 15 semanas. Ou seja, um terço superior ao de Portugal. E no resto da Europa tende a ser legal até às 12 ou 15 semanas. Portanto, esta lei com a qual estávamos a lutar, que nos deu Dobbs, era tão generosa como quase toda a Europa. Temos de parar e pensar nisto. O Supremo Tribunal entretanto devolveu esta questão aos estados e agora temos todo o tipo de variabilidade. Mas este caso mostra como nem todas as leis que estão a ser contestadas são draconianas. Agora houve, por exemplo, um referendo no Missouri, onde a proibição era total.Sem exceções?Só em caso de risco de vida para a mãe. E então quem precisava de fazer um aborto tinha de ir para um estado onde isso fosse legal. .Há tempos o New York Times tinha um mapa que mostrava as deslocações de mulheres de estados onde o aborto é proibido para os estados onde não é…Sim, eu tenho esse mapa num PowerPoint que vou usar na minha intervenção. O meu ponto principal é que, quando analisamos as leis dos estados de onde as mulheres estão a sair, é possível que na verdade estas lhes permitissem fazer um aborto, mas a forma como estamos a consumir a informação sobre essas leis é demasiado superficial para ajudar as pessoas e, por vezes, estas estão simplesmente erradas. Levam as pessoas a pensar que não têm acesso. Uma coisa que poderia ser muito proveitosa na América era compreender melhor o acesso que as pessoas realmente têm, porque podem estar a viajar sem motivo..Falou há pouco de Donald Trump e como diz uma coisa e o seu contrário sobre o aborto - que é o mais pró-vida dos presidentes, que vetaria uma proibição federal do aborto. Mas uma coisa em que tem sido consistente é que para ele esta é uma questão que cabe aos estados. O que podemos esperar do seu segundo mandato nesta matéria, sabendo que a revogação de Roe v Wade marcou o primeiro?No nosso sistema federal, a primeira cláusula de consciência em matéria de cuidados de saúde surgiu semanas depois de Roe. É a Emenda Church, do nome do senador Frank Church. E diz que ninguém pode ser obrigado a fazer um aborto contra as suas convicções religiosas ou morais. Agora, claro, a lei federal pode dizer uma coisa e a lei estadual, ironicamente, pode dizer outra. Mas, de um modo geral, essa ideia de consciência foi replicada pelos estados. Penso que uma das coisas que vai acontecer na segunda Administração Trump - como aconteceu na primeira - é que dentro do nosso departamento federal de saúde há um Gabinete dos Direitos Civis. E este Gabinete vai defender os médicos que não querem realizar certos procedimentos. É muito claro que eles podem recusar fazer um aborto, como como os estabelecimentos de saúde também podem recusar. E isso é uma dificuldade para nós, porque uma em cada seis camas de hospital é gerida por estabelecimentos católicos. São 17% de todos os internamentos hospitalares. Por isso, se uma mulher precisar de fazer um aborto ou numa situação de emergência, pode não saber onde ir. O governo pode minimizar os problemas para ela, forçando a notificação, a informação e o encaminhamento. Não creio que se veja isso na segunda administração Trump. Vemos isso na Administração Biden. Tê-lo-íamos visto na Administração Harris. Não o veremos com Trump. Uma das coisas que aconteceu na primeira Administração Trump foi que eles pegaram nesta ideia de consciência, que era sobre o aborto e a esterilização, e alargaram-na aos cuidados das pessoas LGBT. E vamos voltar a ver isso. O nosso país tem tido confrontos terríveis, muito destrutivos, sobre os transgéneros, de uma forma que considero desnecessária e que não é digna de nós. Penso que agora será muito pior para as pessoas transgénero. Poderão perder o acesso aos cuidados de saúde. A mudança de género tem sido paga por planos de saúde federais, paga pelos militares. Mas agora, sob a égide da consciência e destas proteções para o aborto, vamos ver isso ser retirado e utilizado de forma a tornar a vida muito difícil para as pessoas trans..Outra das consequências da primeira Administração Trump foi a nomeação de três novos juízes para o Supremo, que tornaram a mais alta instituição judicial dos EUA muito conservadora. Nos próximos quatro anos, pode nomear ainda mais. Leis como o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o acesso à contraceção podem estar em risco?Não discordo de si. É um Supremo conservador. Recentemente houve pressões para que a juíza Sonia Sotomayor se demitisse para poder ainda ser Biden a nomear outro juiz liberal, mais jovem, para o seu lugar. É o que a futura Administração Trump está a tentar fazer: colocar pessoas jovens em lugares de destaque nas agências federais. E muitas pessoas ainda estão a pensar que se calhar não teríamos tido Dobbs se a juíza Ruth Bader Ginsburg se tivesse demitido. Quanto ao que pode acontecer com Trump… A questão com Dobbs é Clarence Thomas. O juiz Thomas começa o seu apoio a esta decisão a dizer que não devíamos ter o direito ao aborto, que é um processo fundamental, não devíamos ter contraceção, não devíamos ter casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ironicamente, ele tem um casamento interracial. O Juiz Thomas é casado com uma mulher caucasiana e o único caso de processo fundamental que ele não incluiu nessa lista foi Loving v. Virginia, que anulou a proibição do casamento interracial na Virgínia. Eu liderei um grupo de académicos que trabalharam em todas as leis sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo que foram voluntariamente adoptadas na América, à exceção de uma. Todas essas leis têm uma forma de combinar os direitos das pessoas religiosas e dos casais homossexuais a casar. Uma forma é dizer que as igrejas não devem estar preocupadas com estes casamentos se não forem obrigadas a fazê-los, se não tiverem de os reconhecer, se se afastarem. Quando o juiz Thomas começa a dizer que temos de recuar em certas coisas, muitos casais homossexuais ficam muito preocupados com o estatuto dos seus casamentos. Assim, o Congresso aprovou, uma lei chamada Respect for Marriage Act (Lei do Respeito pelo Casamento) que diz que os grupos religiosos não têm de reconhecer estes casamentos, que estes só terão de ser reconhecidos pelos estados, se forem reconhecidos em qualquer lado. Ou seja, se casarmos no Massachusetts e formos para o Mississippi, este terá de reconhecer o casamento. Mas o juiz Thomas criou muito medo..E quanto à contraceção?Falar com as equipas dos principais membros do Congresso e do Senado foi muito interessante. Pensei que se temos um acordo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo também seria possível ter um acordo sobre o direito à contraceção. Mas foi muito revelador porque o direito à contraceção é muito próximo do aborto. E o Congresso está como que bloqueado no que respeita ao aborto. Para passar no Senado são precisos 60 votos, para acabar com o filibuster, quando alguém fica de pé a falar sem parar, sem interrupção. Neste momento há uns 47 senadores que são pró-vida.Todos republicanos. Não sobrou nenhum democrata pró-vida. E os que querem um direito nacional à contraceção são também 47. Nem sequer se consegue chegar aos 50 para qualquer dos pontos de vista, muito menos aos 60. Por isso, estamos presos no mesmo sítio. Temos de voltar aos estados para resolver o assunto, porque o próprio Congresso está demasiado polarizado. Os estados aprovam leis, e podemos não concordar com todas as partes dessas leis, mas eles fazem alguma coisa. O Congresso muitas vezes não faz. Por isso, de certa forma, estou contente por esta questão ter voltado para os estados. Não pelas mulheres, não estou contente pelo facto de as pessoas não terem o acesso que cresceram toda a sua vida a acreditar que tinha. Mas fico feliz por os estados serem o repositório de algumas destas questões, porque eles agem realmente.