Moscovo nega combater Kiev, mas diz estar a destruir o seu exército

O regime russo ora diz que não está a lutar contra os ucranianos, ora avança com números estratosféricos de danos causados às forças armadas de quem diz não combater.

Há uma realidade paralela na Rússia. Não é uma opinião, são factos: o governo prepara-se para criminalizar quem use mapas do país sem as regiões anexadas; o Ministério da Defesa continua a apregoar números irreais; e o secretário do Conselho de Segurança, no dia em que um míssil matou duas mulheres e feriu seis ucranianos num mercado de uma localidade na região de Kharkiv, afirmou que o que se passa é tão-só uma "experiência sangrenta do Ocidente para destruir o povo fraterno da Ucrânia".

Há uma frase atribuída a Soljenítsin, mas escrita por Elena Gorokhova, que viveu na União Soviética antes de emigrar para os EUA, definidora da relação do poder soviético com a sociedade: "As regras são simples: eles mentem-nos, nós sabemos que estão a mentir, eles sabem que nós sabemos que estão a mentir, mas continuam a mentir à mesma e nós continuamos a fingir que acreditamos." O atual regime russo, que olha com saudosismo para o papel de superpotência da URSS, aparenta seguir o manual soviético descrito no livro de memórias de Gorokhova, A Mountain of Crumbs.

A dissonância com a realidade é tal que o porta-voz da presidência russa, Dmitri Peskov, se viu na contingência de afirmar que o Kremlin tem "plena confiança" nas informações prestadas pelo Ministério da Defesa.

No domingo, alegou que um "ataque em represália" ao bombardeamento de ano novo - que matou 89 soldados russos segundo Moscovo e cerca de 400 segundo Kiev - havia atingido Kramatorsk e eliminado 600 militares ucranianos. Uma jornalista do New York Times visitou os locais atingidos - um edifício industrial e uma escola de formação profissional - pouco depois de os sete mísseis terem caído e não viu vestígios de baixas. As autoridades ucranianas dizem que os danos limitaram-se aos edifícios daquela cidade da região de Donetsk.

Os aviões e helicópteros que o Ministério da Defesa russo diz ter destruído são mais do dobro do que aqueles que a Ucrânia possui.

No dia seguinte, o mesmo ministério fez um balanço dos danos provocados no exército ucraniano desde o início da "operação militar especial". Segundo o tenente-general Igor Konashenkov, porta-voz da Defesa, a Rússia abateu 367 aviões de combate, 200 helicópteros, 2856 veículos aéreos não tripulados, 400 sistemas de mísseis terra-ar, 7460 tanques e outros veículos blindados de combate, 972 lançadores de foguetes múltiplos, 3793 armas de artilharia e morteiros e 7978 veículos motorizados militares.

Só para dar um exemplo dos dados inflacionados, a Ucrânia não tem sequer metade dos aviões e dos helicópteros que a Rússia diz ter destruído. O site Oryx, que documenta os equipamentos destruídos de parte a parte com base em fotografias e vídeos, contabiliza 56 aviões e 28 helicópteros ucranianos destruídos ou capturados.

Enquanto o Ministério da Defesa diz ter esmagado o equipamento das forças armadas ucranianas, Nikolay Patrushev, tido como um dos conselheiros mais próximos de Vladimir Putin, nega que a Rússia esteja sequer a combater os ucranianos. "Os acontecimentos na Ucrânia não são um confronto entre Moscovo e Kiev. É um confronto militar da NATO, primeiro que tudo dos EUA e do Reino Unido, com a Rússia. Temendo um envolvimento direto, os instrutores da NATO empurram os homens ucranianos para a morte certa", afirmou em entrevista à agência estatal TASS.

Não satisfeito, Patrushev, que chefia a segurança da Rússia, voltou a repetir desinformação sobre uma alegada perseguição aos russófonos: "Milhões de pessoas estão proibidas de falar russo, a sua língua nativa, e forçadas a esquecer as suas origens."

Quem vai ser forçado a usar mapas com as regiões anexadas são os cidadãos russos - caso contrário arriscam-se a multas e prisão, noticia a TASS. Para já, o governo russo deu parecer positivo à iniciativa da Duma de equiparar a distribuição de mapas que não estejam em conformidade com as pretensões de "integridade territorial" do Kremlin a material extremista.

Nas últimas horas, Moscovo diz ter capturado uma localidade perto de Bakhmut, Bakhmutske, e renovou os ataques àquela cidade, bem como a Soledar. Neste último caso, o dono do grupo mercenário Wagner, Yevgeny Prigozhin, fez saber que o assalto é feito em exclusivo pelas suas tropas. Além destas incursões, a Rússia atingiu nas últimas horas múltiplos civis, fosse num supermercado em Kherson (um morto e um ferido) ou num hospital em Mykolaiv (dez feridos), no sul; ou fosse a um mercado numa aldeia em Kharkiv (dois mortos e seis feridos), no norte; fosse ainda na localidade de Nevske, em Lugansk, onde foi reportado um número indeterminado de baixas entre civis.

cesar.avo@dn.pt

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