Michael Cunningham: “Trump é como a maioria dos políticos, é a favor de tudo o que lhe trouxer mais votos”
Paulo Alexandrino/Global Imagens

Michael Cunningham: “Trump é como a maioria dos políticos, é a favor de tudo o que lhe trouxer mais votos”

Vencedor do Pulitzer com 'As Horas', adaptado ao cinema com grande êxito, Michael Cunningham veio a Portugal apresentar 'Dia' (Gradiva), romance que fala de relações familiares, mas que lança pistas sobre a sua visão da política americana, o tema da conversa com o DN.
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Neste seu  livro Dia, que se passa em 2019, 2020 e 2021, é curioso que nunca tenha mencionado a presidência de Donald Trump ou a eleição de Joe Biden. Foi totalmente intencional da sua parte, porque este é um livro sobre relações familiares e portanto…
Sim, é verdade. Quer dizer, não omito acontecimentos como esse na maioria dos meus romances. O meu anterior romance, A Rainha da Neve, foi sobre o período que antecedeu a eleição de Barack Obama e o futuro que as pessoas imaginaram, em oposição ao futuro que realmente aconteceu. Não acho, pois, que os romances devam acontecer fora das questões de quem governa o país, de quem realmente governa o país, de quem dirige as corporações. É uma tendência americana ignorar a política. Mas é difícil imaginar um romance sul-americano que não seja sobre política, ou um romance africano que não seja sobre política. Eu senti que, para esta história, neste meu novo livro, a pandemia foi um evento grande o suficiente para deixar que fosse esse o foco.

Olhando para Isabel e Dan, duas personagens centrais de Dia, podemos dizer que eles são de alguma forma representantes típicos dos nova-iorquinos, pessoas liberais, e que, por exemplo, durante a presidência de Trump, eram uma espécie de exceção. Por viver em Nova Iorque estavam protegidos da tendência nacional conservadora, resultado das políticas de Trump?
Eles estão mais protegidos em certo sentido, mas também são, de uma forma engraçada, mais vulneráveis porque estão bem, têm o que a maioria das pessoas no planeta, como se costuma dizer, mataria  para ter: dinheiro suficiente e um bom lugar para viver. Isto é, no mundo, a exceção, não a regra. E parte do que o casal não consegue ver é que faz parte do sistema capitalista que prevalece na América, mas não percebem isso sobre si mesmos. Eu, como os inventei, entendo o que eles são, pessoas que cresceram a pensar que se conseguirem alcançar essas coisas materiais vai dar tudo certo, e, porém, não está tudo bem. E eles estão agora a chegar a essa conclusão. Portanto, sim, eles fazem parte de um sistema político e económico que não os está a servir bem.

Há uma personagem, Chess, num momento em que estava a lidar com os alunos , em que fala para si mesma sobre ser lésbica nascida nos Dakotas, e como sofria por ser diferente naquela parte mais conservadora da América. Essa é uma pista, também incluída no seu livro, de que aquele ambiente familiar quase perfeito, liberal e tolerante ao máximo, que está a mostrar não é regra no  mundo, nem sequer nos Estados Unidos. Esse tipo de liberdade, ser abertamente gay, ser abertamente lésbica, é possível porque se vive em Nova Iorque, São Francisco, ou outras grandes cidades, mas nos Dakotas é algo que até hoje não é aceitável para todos?
Sim, sim, sim, para a maioria das pessoas esta vida é impossível, mas eu não acho que seja apenas uma coisa americana. Há uma Prada e uma Gucci aqui mesmo em Lisboa, e eu simplesmente não creio que poder fazer compras nessas lojas deixe as pessoas mais felizes.

Mas, em geral, é possível ser mais livre numa cidade grande, na América ou fora dela, porque as pessoas são mais tolerantes ou porque as pessoas são mais invisíveis?
Provavelmente ambos. Mais tolerantes e mais invisíveis. Mas acho que provavelmente não é muito correto dividir as pessoas politicamente em termos de urbano versus rural. Entendo, mas não acho que seja necessariamente tão simples.

Olhando para a personagem Robbie, também professor como Chess mas de mais jovens, há um pedido aos alunos para que escrevessem sobre Cristóvão Colombo. No momento em que escreveu este livro continuava a polémica nos Estados Unidos com as estátuas , algumas sujas, outras até decapitadas. É uma espécie de declaração política sua essa encomenda de trabalho escolar de Robbie?
 Antes de mais nada, simplesmente reflete o que estava e ainda está a acontecer  na América, todo esse repensar sobre quem era Colombo, o que ele representava. Acho que tive por causa deste assunto a minha única discussão com um tradutor, que foi o meu tradutor de espanhol, que achava que eu estava a acreditar em histórias falsas sobre Colombo, que era na verdade um herói e que não deveria fazer piadas sobre ele. Desculpe-me, disse eu, porque não vejo dessa forma.

Mas mesmo nos Estados Unidos, continua a haver pessoas que comemoram o dia da chegada de Colombo às Américas?
Mas mudámos para Dia dos Povos Indígenas , já não queremos que se chame de Dia de Colombo.

Mas por exemplo, estou curioso sobre isso, ninguém quer mudar o nome do distrito federal, ou há algumas ideias sobre isso?  Washington, DC, ou distrito de Columbia.
Bem, ainda não ligamos muito. Como também ainda não ligamos a George Washington. Está OK.

Não se pode dizer o mesmo sobre Thomas Jefferson, muito vilipendiado por nunca ter reconhecido os filhos da amante negra, e ter mantido escravos.
Eu ensino em Yale, e todos os edifícios com nomes de pessoas que possuíam escravos foram alterados.

E quando se fala sobre donos de escravos na América, isso inclui muitos Pais Fundadores, muitos até dos primeiros presidentes.
Muitos Pais Fundadores, sim. Mas nenhuma mãe fundadora que conheçamos. Se é eficaz ou não este movimento, não sei, mas já há algum tempo na América uma séria reconsideração de homenagear figuras históricas que podem não ter sido assim tão honradas.

Este seu livro é sobre família e quão importantes são as relações familiares. Mas estamos a falar de um país, os Estados Unidos, onde as pessoas mudam com mais frequência de estado para estado, a milhares de quilómetros, do que acontece em outras partes do mundo.
Sim.

Em primeiro lugar, porque é fácil de movimentar-se. Na Europa hoje em dia é fácil também mudar de país, mas penso que o sistema económico na América dá mais oportunidades de mudar completamente de vida, indo, por exemplo, de Nova Iorque para a Califórnia.
Sim.

Há uma menção a esta tendência quando Chess fala em ir com o bebé Odin para a Califórnia. Mas de qualquer forma, esta ideia de família é afetada por esta mobilidade incrível dos americanos? Podem morar longe dos pais.
Sim, acho que é uma tradição americana. A ideia de que se não der certo aqui, podemos simplesmente mudar para o outro lado do país e tudo passará a funcionar melhor, o que tenho certeza que às vezes é verdade, mas às vezes não.

Mas é sempre uma escolha radical. Estar preparado para cortar com as raízes.
Acho que às vezes pensamos sobre isso: você cria uma nova vida. Pode até querer fugir da sua família. Conheci todo o tipo de pessoas aqui em Lisboa que vêm de uma pequena cidade do interior e que se mudaram para cá por qualquer motivo. Acho que em qualquer país que tenha liberdade de movimento, algumas pessoas tirarão vantagem disso. Algumas pessoas vão querer sair de onde vieram e ir para outro lugar.

Mas curiosamente no seu livro, mesmo Isabel e Dan, quando se separaram, decidem viver nas proximidades um do outro. Por causa dos filhos?
Sim. Eles defendem a ideia de manter a família unida. Então, de certa forma, eles são conservadores quanto a isso. Eles não querem, ou um deles não quer, fazer uma mudança radical. Dan não quer e ela quer. Claro que é prosaico, mas quando há crianças a liberdade de simplesmente ir embora fica um pouco mais complicada.

Algo que me surpreendeu de certa forma, e que me faz voltar à ideia da sociedade liberal e aos nova-iorquinos, é que todo o tema  gay é completamente visto como normal nesta família e em redor dela. Não é um assunto. Não há nenhum comentário, nem mesmo as crianças fazem qualquer tipo de comentário.
Esta é a realidade agora, pelo menos em Nova Iorque e em alguns lugares dos Estados Unidos. É possível ser assim quando a homossexualidade já não é um assunto. Eu acho que está certo ser assim. Não tenho certeza sobre outros países, mas sim, isso simplesmente já não é um problema. Já não é um problema nos Estados Unidos e não apenas em Nova Iorque.

Nos Estados Unidos em geral?
É um pouco diferente noutras partes do país, mas quando eu estava a promover o livro viajando por toda a América, fui a lugares como Tulsa, no Oklahoma,  ou Albuquerque, no Novo México, que não são liberais, e não toco no assunto, mas se surgir, eu digo, ‘bom, foi o meu marido’ e nada. Nenhuma reação. Foi apenas parte da conversa. Acho que se eu tivesse dito isso noutras partes de Tulsa, no Oklahoma, a reação poderia ter sido diferente, mas acho que provavelmente cabe aos gays, às pessoas queer, insistirem que isso não é grande coisa. Não é uma das cinco coisas mais importantes sobre mim.

Deixe-me voltar a Biden e Trump, porque o seu livro termina em 2021, mas estamos em 2024 e, quase com certeza, nas presidenciais de 5 de novembro vamos ter de novo Biden contra Trump.
Sim, quase de certeza.

Quando imagina o futuro, o futuro hipotético, fará muita diferença entre ser uma América com Biden ou uma América com Trump?
Ah, acho que sim. Sim, sim. Quer dizer, conheço pessoas, especialmente pessoas mais jovens, que acham que ambos são terríveis e que realmente isso não importa. Eu acho que isso importa, e acho que, se Trump for eleito, será o fim do sistema judicial. Será o fim de qualquer tentativa de controlo climático, mesmo que ainda haja sentido para o controlo climático. E pode ser o fim das eleições. Então, sim, estou muito nervoso com isso.

É interessante que tenha mencionado as ameaças ao sistema judicial e ao combate às alterações climáticas, mas não mencione, por exemplo, a questão das ideias liberais. É porque Trump, na realidade, sendo até um nova-iorquino, não é um verdadeiro conservador?
Não, não. Quando Trump começou a parecer uma presença séria antes de 2016, acho que alguns de nós pensámos, bem, ele não vai ser eleito, mas se for eleito, ele é de Nova Iorque, ele aceitará bem os direitos LGBTQ. Mas já como presidente, por exemplo, ele criou o Supremo Tribunal que iria anular Roe v. Wade

Mas agora está a tentar ser mais, digamos assim, moderado. Está a tentar não ser tão conservador quanto os juízes que nomeou.
Trump é como a maioria dos políticos, é a favor de tudo o que lhe trouxer mais votos, e não acho que haja muito sentido em se perguntar quais são as verdadeiras convicções de Trump, porque elas não fazem parte realmente do cenário. O que realmente interessa é o jogo que faz com a sua base de apoio, que é muito conservadora, e por isso Trump é conservador.

Falamos sobre os seus romances, e neste claramente não quis introduzir muita política. Sente-se motivado para o ativismo político ou, de certa forma, os seus livros, mesmo não sendo ativamente políticos, transmitem uma mensagem?
Sim, sinto que há uma espécie de separação entre a ação política como cidadão e a política nos romances. Sinto que um romance é realmente sobre seres humanos, e embora a pandemia tenha assumido dimensões políticas, sabemos que tivemos de usar máscara, foi de outra forma como Godzilla a atacar a sua aldeia, e foi muito mais sobre o que você vai fazer com o lagarto de 15 metros de altura do que se somos um liberal. Ou seja, tanto liberais como conservadores estavam a fugir daquele lagarto gigante, e acho que isso fazia parte do sentido aqui, que aqui está algo tão perigoso que, na verdade, por um tempo, transcende a política. E Trump versus Biden quase parece um pouco trivial perante isso. Para mim, num romance, a política é importante, mas a humanidade dos personagens é mais importante, e é provavelmente uma das tarefas de um romancista tentar compreender o que é ser um conservador, como todos se sentem. São os heróis da sua própria história. Você sabe, os piores políticos conservadores da América vão para casa à noite e pensam, bom trabalho, e acho que esse é um dos propósitos de um romance, ajudar-nos pelo menos a entender como é ser as pessoas a quem nos opomos. E então, como cidadão, é sua função opor-se a essas pessoas. Fui ativista durante anos, e agora quando vou a marchas e manifestações é um pouco mais difícil, é mais difícil saber o que fazer agora. Mas o que estou a dizer é que não creio que as obrigações políticas, quando se é um romancista, residam principalmente nos  romances, e escrever romances não significa que não se tome medidas políticas como cidadão.

A minha última pergunta é sobre um exemplo de como acaba por ser político no seu livro, mesmo que não queira fazer isso. Há um momento em que há um comentário sobre a história americana, feito por Robbie, e a certa altura ele diz “há pessoas a morrer para cruzar a nossa fronteira, só para ser trabalhador ou jardineiro”. Isto é muito político.
Ah, claro. Sim, não quero dizer que a política esteja ausente. 

Mas é muito subtil ao fazer isso.
Central, para mim, são sempre os seres humanos, independentemente do que eles acreditem.

Quando Robbie faz esse comentário, imaginando que é um personagem que de alguma forma também reflete a sua mentalidade, fica surpreendido por a América ainda ser o El Dorado para tantas pessoas no mundo?
Bem, especialmente se percebermos que muitas dessas pessoas estão a fugir para salvar as suas vidas. Eles não estão a vir para a América para ter máquinas de lavar ou de secar. Até podem querer essas coisas eventualmente, mas acho que é uma espécie de invenção da direita imaginar que todas essas pessoas querem apenas ser americanos ricos. Muitas dessas pessoas querem apenas permanecer vivas. 

E olham para a América como o melhor lugar…
Para onde podem ir, sim. E onde podem conseguir algum tipo de emprego. Acho que as pessoas tentam chegar à América por todo o tipo de razões, mas a ideia de que essas pessoas só querem uma vida melhor do que a que tinham é uma coisa de direita. E o que eles gostariam é que não pensássemos que estas pessoas morrerão se regressarem aos seus países. Isso é um pouco desconfortável.

Dia
Michael Cunningham
Gradiva
313 páginas
18,50 euros

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