Mali 2021: a geringonça de Goita

Um golpe dentro do golpe para o coronel manter o controlo da transição até às eleições num país onde se cruzam os interesses da França, antiga potência colonial, da Rússia e também de Portugal.
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O golpe de agosto 2020 tratou-se de uma antecipação militar a uma pressão cada vez mais pública e unânime para se substituir o ex-presidente (PR) Ibrahim Boubacar Keita por um padre, o imã Mahmoud Dicko. O PR Keita estava em queda, sobretudo por não resolver o problema jihadista no Norte e por isso também estar a alavancar as vontades independentistas de grupos altamente politizados no Azawad tuaregue. O coronel Assimi Goita, perante este cenário, juntou os colegas de turma da Academia Militar de Kati e alinharam num golpe preventivo, na semana em que a agenda do imã Dicko tinha greves e manifestações agendadas, como até então nunca se vira. Na sequência do período de transição que decorre deste golpe, a 24 de maio Goita, já como vice-PR, manda prender o PR e primeiro-ministro (PM) de transição, respetivamente Bah Ndaw e Moctar Ouane, sem avisar ninguém, nem os colegas de turma. Porquê? Primeiro por uma razão corporativa e segundo por uma leitura do rumo do país, ao que se pode juntar o ego do coronel Goita enquanto terceira razão.

Da razão corporativa. Os militares foram perdendo influência no processo de transição e num novo governo constituído dez dias antes deste segundo golpe, que descartara do seu seio dois elementos (militares) do extinto Comité Nacional para a Salvação do Povo. Ora o vice-PR Goita viu neste gesto um afastamento dos militares e uma perda do controlo do período de transição que poderia levar a sua turma à prisão, já que a Constituição do Mali, não suspensa, criminaliza golpes de Estado. Por esta razão, o golpe de maio ser chamado de "um golpe dentro do golpe" (de agosto de 2020).

Da razão do rumo do país. Assimi Goita, profundo conhecedor das dinâmicas do país, do que move o secessionismo no norte e do mosaico islamista também no norte/Azawad, quer ficar na História como unificador e não como um pirata que tomou o poder e não cumpriu com o compromisso nacional e internacional dos 18 meses de transição assumidos. Por isso mesmo, este segundo golpe não foi equivalente a uma suspensão desse calendário ou a um regresso ao dia um. Garantiu que as eleições gerais se mantêm previstas para fevereiro próximo. Mas, para isso acontecer, tem que garantir a estabilidade, a paz e a participação do norte nas mesmas. Como pensa fazê-lo? Iniciando negociações com os jihadistas do AQMI e do Estado Islâmico, comentando-se nos corredores e confirmado pela França que estará mesmo disposto a ultrapassar uma linha vermelha, para a França e todo o Ocidente, a aceitação da sharia, a Lei Islâmica, como fonte do direito para todo o país.

Da razão do ego. Foi criado o cargo de vice-PR, propositadamente para Goita se sentir nos comandos da "operação transição". Ora neste golpe de maio o vice-PR autonomeou-se imediatamente de novo PR. Uma ilegalidade, já que a Carta da Transição não o previa.

A França condenou naturalmente ambos os golpes, mas o presidente Emmanuel Macron está mais preocupado com a reeleição em abril próximo. Por isso mesmo em janeiro anunciou uma redução do contingente francês na Operação Barkhane, quando um ano antes o tinha aumentado, jogando assim com a janela do tempo relativamente à proximidade das eleições. Agora simulou o seguinte. Após este segundo golpe, começou por interromper as patrulhas conjuntas com militares malianos e logo de seguida anunciou o fim da Operação Barkhane, mas que seria substituída pela Task Force Takuba, que enquadra um contingente português e que já deveria estar no terreno desde agosto de 2020. Ou seja, Macron criou assim a ilusão no eleitorado francês de uma retirada do Mali, mas continuará no terreno e ao comando da Takuba, que originalmente estava destinada a ficar sob os comandos da Barkhane. Mais, começam a circular informações, comprovadas com fotografias, que a França está a preparar uma base militar em Hombori, 247 quilómetros a sudoeste de Gao, para forças militares argelinas a ocuparem e estabelecerem uma linha da frente argelina, delegando neste aliado o ónus que não se pode assumir a menos de um ano das eleições. Por outro lado, Macron joga assim também a defesa do PR Tebboune, da Argélia, fragilizado pela luta dos clãs militares no país e pelos 70% de abstenção registado nas legislativas antecipadas de 12 de junho. Na Argélia não se toca e as chefias militares locais, terão aqui manobra de diversão francesa que lhes dará foco na reabilitação do seu prestigio no Sahel, permitindo a Tebboune respirar mais tranquilamente e lidar com os demais desafios internos, que não são poucos.

De registar também que, o início da Operação Serval em 2013, que trava o AQMI de passar para a margem sul do rio Níger, foi importante para impedir que estes marchassem sobre a capital, Bamako. Mas, muito mais importante, no contexto da Primavera Árabe e da guerra na Síria, a França que perdera influência no Médio Oriente para americanos e russos, com esta intervenção musculada e altamente mediática, com os Dassault Rafale a fazerem piruetas para as câmaras, quis antes de mais enviar a seguinte mensagem aos principais atores das relações internacionais, "o que perdemos no Médio Oriente para americanos e russos, não perderemos em África. Este é o nosso quintal e assim continuará"! Ora a França tem precisamente agora, os russos à perna no Mali.

A força da Rússia no Mali, tem-se manifestado através do número de bandeiras nas manifestações antes e pós-golpes, aproveitando o crescente sentimento antifrancês da população. A Rússia vem com um selo de qualidade da guerra na Síria aos olhos dos malianos e, para estes, que apenas têm o poder da pressão e não da decisão, representam a solução para o problema jihadista no norte/Azawad. Estão em alta junto do vox populi, mas também agora no novo Governo, já que "ganharam" um PM russófono, Choguel Kokala Maiga, um engenheiro de telecomunicações com formação na Rússia, é ainda mais do que isso, já que também é um opositor ferrenho dos Acordos de Argel de 2015, patrocinados pela França e com os quais o antigo colonizador criou uma plataforma para a pacificação do norte do país, vulgo Azawad. Este é o PM que os franceses não queriam ver nomeado e 48 horas antes da sua nomeação decidem tomar a primeira posição neste novo xadrez, suspendendo as patrulhas conjuntas com militares malianos, no seio da Barkhane. Choguel Maiga, marca também a sua posição ao assumir o novo cargo, tendo como primeira decisão enquanto PM, pedir formalmente aos russos que substituam os franceses nestas patrulhas conjuntas, pedido que saiu ainda mais reforçado quando a França anunciou o fim da Barkhane. O destino do Mali está para já assim traçado, com um PR a namorar fundamentalistas islâmicos e um PM a namorar os russos.

Por outro lado, a nomeação de Maiga coloca também esta nova entente PR/PM no patamar da geringonça maliana, já que o atual PM, homem do sistema, várias vezes ministro em diferentes governos, incluindo o do PR Keita deposto em agosto, é também uma figura muito próxima do imã Dicko, o padre a que Goita se antecipou e móbil principal para o golpe de agosto.

Portugal aguarda naturalmente pela ativação da Task Force Takuba, com um contributo de 14 militares para já e a Força Aérea Portuguesa iniciou neste 15 de junho participação no seio da MINUSMA, a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização do Mali, com 63 militares e uma aeronave C-295M, cuja missão é providenciar a capacidade de transporte aéreo tático às Nações Unidas e à MINUSMA, bem como proteger, através de uma equipa de Force Protection, o Campo Bifrost, em Bamako, a capital do Mali.

Prova de que este investimento militar que Portugal tem tido por opção, na África não tradicional, tem sempre consequências no também mercado não tradicional para as empresas portuguesas, é o facto, recente também, de a Mota-Engil ter visto adjudicado um contrato de mineração no valor de 294,7 milhões de euros, para a exploração de três minas de ouro. Portugal tem visto no Mali, pelos nossos próprios olhos e de terceiros, manifestado pelo reconhecimento e elogio alheio, a prova da rápida adaptação dos nossos militares a terrenos desconhecidos, pelo que será país/força que já conta no Sahel, podendo ainda fazer o que os outros que já lá estão há mais tempo fazem, na criação de sinergias entre o militar, o diplomático, o económico e o comercial.

Fazendo fé nas palavras do agora PR Assimi Goita, de que quer eleições gerais para fevereiro de 2022, terminando assim o período previsto de 18 meses de transição, o binómio russos-islamistas até poderá funcionar. Goita garante o sossego dos islamistas, respaldado pela garantia da fúria russa, que não traz apenas o selo de qualidade da Síria, também traz o selo da destruição de Grozni, Chechénia, garante de que numa eventual ação russa por esse Azawad acima não distinguirá islamistas de independentistas, ficando todos a perder e com o ónus da reconstrução a ficar também no norte.

O perigo deste entendimento até fevereiro, é o da reorganização islamista e independentista, que não será obrigatoriamente em conluio. Aliás, esta possível suspensão de tempo, vai também ao encontro e, reforçando ainda a reorganização e o modus operandi a que todos os grupos jihadistas foram obrigados desde o início da pandemia.

Outro perigo ainda será o de um crescendo da influência russa no Sahel, cuja tendência penderá mais para o conflito no Sahel, na lógica da guerra fria e com o imponderável de uma aliança militar russo-argelina contra a França. A força dos militares no xadrez político argelino, em muito dependerá de um reganhar do prestígio no Sahel, no controlo e manipulação dos grupos jihadistas, não deixando o PR Tebboune dormir descansado, apesar da distância. No Mali, jogar-se-á nos próximos meses todo o atual paradigma vigente no Sahel, Magrebe e norte de África, com novos atores e novas perspetivas sobre equilíbrios e alinhamentos.

Politólogo/Arabista

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