Lula e Bolsonaro à procura da cara metade para 2022
A redemocratização do Brasil, em 1988, começou com um vice-presidente, José Sarney, no lugar do presidente morto antes da posse, Tancredo Neves. Quem concluiu o mandato do primeiro presidente eleito no voto popular, Collor de Mello, foi o seu vice, Itamar Franco. E o país ainda não cicatrizou a troca em 2016 de Dilma Rousseff por Michel Temer, o número dois que conspirou nos bastidores para se tornar número um. Ao contrário do que o nome pressupõe, o vice-presidente não é ator secundário. E Lula da Silva e Jair Bolsonaro, principais candidatos em 2022, sabem-no.
Por experiência própria: Lula teve um casamento feliz com o vice José Alencar, um bem-sucedido empresário, falecido em 2011, que serviu de para-choque na relação entre o ex-sindicalista e o capital, ao longo dos dois mandatos no cargo, de 2003 a 2010. "O José Alencar foi o melhor vice que um presidente já teve no planeta Terra", disse o líder das sondagens nos últimos dias.
Já Bolsonaro, no mesmo dia, lamentou a relação estremecida com o general Hamilton Mourão, escolhido em 2018 após se equacionarem os nomes de Janaína Paschoal, a co-autora do texto do impeachment de Dilma, de Luiz Phelippe de Orléans e Bragança, pretendente ao título de príncipe brasileiro, e de Magno Malta, pastor e vocalista da banda de pagode gospel Tempero do Mundo. "O Mourão por vezes atrapalha um pouco a gente, mas vice é igual a cunhado, quando a gente casa, tem de aturar".
Depois desta frase, de 26 de julho, o "cunhado", logicamente, é carta fora do baralho na lista de Bolsonaro em 2022. Foi até especulada uma saída de cena antecipada, desmentida pelo próprio. "Muitas pessoas falam que votaram na lista Bolsonaro-Mourão por confiar em mim, por respeito a essas pessoas e a mim mesmo, pois nunca abandonei uma missão, não importam as intercorrências, sigo neste governo até o fim", respondeu Mourão.
Lula quer, pois, repetir o casamento feliz. Bolsonaro sonha com a felicidade em segundas núpcias. Qual a receita?
"No Brasil, é importante ter um vice-presidente que, mais do que uma região, agregue uma base social, por isso Bolsonaro pensa num vice da área do agronegócio, como [a ministra da Agricultura] Tereza Cristina, ou do segmento evangélico, como [a ministra dos Direitos Humanos] Damares Alves, da mesma forma que em 2018 quis alguém [Mourão] para sinalizar o apoio do exército", diz ao DN o cientista político Vinícius Vieira.
Todos os outros nomes especulados pela imprensa como candidatos a vice na lista de Bolsonaro são membros do governo: Fábio Faria, o ministro das comunicações, e Ciro Nogueira, o recém-empossado ministro da Casa Civil, ambos com o bónus de serem do Nordeste, região onde o presidente fraqueja e Lula domina.
Lula tem a mesma estratégia. Primeira prioridade: alguém que some uma base social à candidatura. Segunda prioridade: se esse alguém vier de uma região eleitoralmente interessante, melhor.
"Lula, em 2003, pensou num vice da área do capital e agora tende a fazer o mesmo movimento, embora tenha em consideração sempre alguém de um colégio eleitoral forte, como [o presidente do Senado] Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais, ou como [o ex-presidente da Câmara dos Deputados] Rodrigo Maia, do Rio de Janeiro", continua Vinícius Vieira.
"Tenho que encontrar alguém que tenha afinidade económica e social comigo, que conheça como é que vive o povo pobre desse país", resumiu o antigo presidente. A empresária Luiza Trajano, uma milionária com forte atuação social, vem sendo apontada como tendo um perfil próximo de José Alencar, mas precisaria de ser convencida a entrar na política.
Márcio França, ex-governador de São Paulo pelo PSB, partido de centro-esquerda que o PT quer trazer para a sua órbita, também. Mas o político parece mais interessado em reconquistar o governo do estado mais rico do país na eleição paralela à presidencial.
Alternativas à esquerda - como Fernando Haddad, segundo mais votado em 2018 e sucessor natural de Lula, como Manuela D"Ávila, candidata a vice de Haddad naquela eleição, ou como Flávio Dino, o governador do Maranhão considerado presidenciável antes de Lula se tornar elegível - não faltam. Porém, não somam votos ao centro ou até na direita moderada que o antigo presidente acredita ser capaz de conquistar.
Na terceira via, como não há sequer candidato a presidente, a especulação em torno de eventuais duplas é ainda mais difícil. "Para a terceira via ter competitividade acho que vai seguir o modelo americano de ter um presidente de uma costa e um vice de outra costa, ou seja, não me surpreenderia se [o governador de São Paulo] João Doria concorresse com [o governador do Rio Grande do Sul] Eduardo Leite, como vice".
Mas como Doria e Leite, ambos do PSDB, disputam primárias no seu partido, caso ganhe o segundo já é discutida na imprensa uma eventual dupla com Luiz Henrique Mandetta, o ex-ministro da Saúde que é do DEM, partido que se divide entre o apoio à terceira via, a Bolsonaro e até a Lula.
José Luiz Datena, popular apresentador de programas de crime recém-filiado ao PSL, ex-partido de Bolsonaro, foi dado como candidato a vice do atual presidente e de outro pré-candidato, Ciro Gomes, que sugeriu o nome.
"Fico muito lisonjeado com a possibilidade de parceria com o Ciro mas sou candidato à presidência", deixou claro. "Quanto a ser vice do Bolsonaro, como posso ser vice de alguém que passa o tempo a dizer que não vai haver eleição?", perguntou-se Datena, a propósito das recorrentes dúvidas presidenciais sobre a fiabilidade do voto eletrónico.
Em época de especulações, causou alvoroço nas redes sociais a sugestão do jornalista Miguel de Almeida, no jornal O Globo, de Lula concorrer como vice-presidente de Tasso Jereissati, outro presidenciável pelo PSDB, ao lado de Doria e Leite. "Faça um gesto e candidate-se a vice-presidente nas próximas eleições, surpreenda, como Pelé, o adversário com um drible seco e inesperado", pediu o colunista.
Outra conjetura que fez furor na internet foi a da eventual reunião de Hamilton Mourão e Sergio Moro, o ex-juiz da Operação Lava-Jato e ex-ministro de Bolsonaro, na mesma lista. "Moro, Mourão... só falta o [treinador de futebol José] Mourinho", parodiou o humorista Renato Terra.
"O eleitor comum presta pouca atenção ao vice, apesar de logo o primeiro vice, Floriano Peixoto, ter assumido no lugar de Deodoro da Fonseca", adverte Vinícus Vieira. Os casos sucedem-se: "Depois, Rodrigues Alves, vitimado pela gripe espanhola, não toma posse no segundo mandato, a seguir, temos Getúlio Vargas, que, ao se suicidar, dá lugar ao vice Café Filho e, finalmente, há o caso do Jango [alcunha de João Goulart], que sucede ao populista de direita Jânio Quadros".
"Mas nesse tempo havia a anomalia de a eleição para vice ser independente da eleição para presidente, só a partir de 1989, se inicia a 'lista casada', ou seja, em que se vota presidente e vice juntos mas, nem por isso, a instabilidade diminuiu".
Para o politólogo, "o vice, quando deixa de ser leal, passa a ser perigoso para o titular e eventual fator de instabilidade, não foi o caso de Itamar, que ao substituir Collor gerou um governo de união nacional e permitiu um período de prosperidade e de consolidação democrática, mas foi o de Temer, cujo governo, combalido com as denúncias de corrupção, precipitou este clima de instabilidade que estamos vivendo".