Luís Salomão: “A Europa acabou por se acomodar um pouco na administração da Justiça”
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Luís Salomão: “A Europa acabou por se acomodar um pouco na administração da Justiça”

Ministro (juiz) do Superior Tribunal de Justiça (STJ) esteve em Portugal recentemente para participar do 12.º Fórum Jurídico e conversou com o Diário de Notícias.
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Luís Felipe Salomão é juiz do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e também corregedor nacional de Justiça do Brasil, com foco na aceleração dos processos judiciais. É coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário - da Fundação Getúlio Vagas na área da Justiça - e um defensor do uso de tecnologias no Poder Judiciário.

Como  vê o poder judiciário se movendo para a discussão do uso da tecnologia?
O judiciário brasileiro é, incrivelmente, um judiciário reconhecido no mundo todo como muito autónomo, muito independente, porque desde a nossa primeira Constituição, do Império, nós já tínhamos as garantias da magistratura. A nossa magistratura é toda selecionada por concurso público. Nós temos aí um processo seletivo que é muito qualificado. Temos também autonomia administrativa, financeira. Judiciário nenhum do mundo tem a autonomia financeira que nós temos. Então, nosso poder judiciário é hoje muito eficiente, principalmente em lidar com essas novas tecnologias. Nós tivemos o primeiro tribunal no mundo a tornar os processos 100% eletrónicos, que foi o Superior Tribunal de Justiça. Nosso trabalho com a tecnologia é um trabalho muito eficiente. Nós temos recursos financeiros, estamos investindo nesse processo. São centenas de projetos de Inteligência Artificial que nós temos dentro do Judiciário hoje, alguns já bastante desenvolvidos. Avançámos bastante na triagem de processos, na colocação de precedentes. 

De que forma isso ajuda no volume de causas que o Brasil possui?
Nós temos hoje no Brasil 80 milhões de causas dentro do poder judiciário, o que dá uma média de um processo para cada dois habitantes. Nós temos 170 milhões de pessoas, então é um processo para cada dois habitantes e 30 milhões novos por ano. É algo inimaginável para qualquer poder judiciário do mundo. O juiz brasileiro tem a maior carga de trabalho, dá uma média de 7 mil processos por ano para cada juiz julgar. É muito processo. Ainda assim, o nosso tempo médio de duração de um processo não é um tempo médio tão excessivo. A média é de dois anos, dois anos e alguns meses. A grande maioria dos juízes trabalha e trabalha muito duro para fazer frente a essa carga de trabalho. Só tem uma saída para esse volume de causas. É investir em gestão, em tecnologia, em situações como nós já investimos no processo eletrónico, na informatização. É a única saída para dar vazão a isso. Porque o brasileiro não desiste mais desse processo de judicialização. Ele judicializou a vida social, a vida política, a vida económica. Não sai mais. O judiciário é o árbitro dessas soluções todas. Nós temos de pensar em soluções de gestão para administrar esses conflitos. 

Acha que o Brasil pode servir de exemplo para Portugal e Europa em relação ao uso da tecnologia?
A Europa tem muita tradição na área do direito. Portugal nos ensinou muito, nós tivemos a regência das leis portuguesas por muito tempo. Mas o que eu noto é que os países da Europa, por não terem tanta quantidade de causas, acabaram se acomodando um pouco na administração da Justiça. Entra aí um outro componente. Para você aparelhar a administração da Justiça, investir em tecnologia, em informatização, em novas formas de gestão, isso custa dinheiro. Então tudo parte desse princípio. Como no Brasil o judiciário tem um orçamento próprio, já previamente previsto, como eu te disse, é um dos poucos países do mundo que tem autonomia administrativa e financeira. Ele faz a sua própria autogestão, tem plano de gestão, plano de administração, plano de governo. Em termos de funcionamento, de funcionalidade, é um poder judiciário que tem uma previsibilidade, investe nos seus próprios ritos e funcionamentos, diferente dos países da Europa. Eu acho que por essa experiência, para lidar com o volume de causas que nós temos, realmente podemos servir de modelo para uma gestão maciça de processos. Mas a Europa tem muita tradição, tem muito ensinamento colhido ao longo dos anos e para poder chegar a um patamar de 100% dos processos informatizados, processos eletrónicos, todos os procedimentos ali já estabelecidos, demanda muito investimento, mas também outras soluções criativas para evitar a judicialização.

Recentemente em Portugal foi anunciado um tribunal administrativo específico para a imigração, porque o serviço público não dá resposta e as pessoas procuram a justiça, por exemplo, quando passam os 90 dias da falta de uma resposta a um pedido de Autorização de Residência. Há quem espere anos e decida tentar a via judicial...
Essa solução de se criar tribunais de exceção para quando tem um problema, não é uma boa solução. Porque realmente você direciona para uma determinada forma de resolver o problema, que não é muito a ideal. O que seria melhor é reforçar o serviço. Pela descrição da questão que você me fala, que eu também li nos jornais daqui, esse problema poderia ser solucionado com um reforço. Quando o serviço público não funciona, que é o que acontece em muitas situações no Brasil, não é um defeito da judicialização, é um problema da máquina administrativa. Quando se fala em imigração, é preciso pensar em tudo, nas consequências disso no serviço público, na educação, na saúde, etc. Acho que tem de trabalhar a forma de resolver esses problemas e não criar tribunais para isso, não me parece a melhor solução.

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