Lincoln Gakiya: "Classificamos o PCC como uma organização criminosa de caráter mafioso"
Nos últimos 17 anos da sua carreira o promotor de Justiça do Ministério Público de S. Paulo Lincoln Gakyia, especializou-se nas investigações que envolvem elementos do Primeiro Comando da Capital (PCC), que considera a maior organização criminosa da América do Sul. Nesta entrevista explica as suas capacidades, confirma a presença de alguns operacionais em Portugal e alerta para a lavagem de dinheiro que pode suceder.
Desde quando acompanha as investigações do Primeiro Comando da Capital (PCC) e porque começou?
Sou promotor de justiça do estado de São Paulo há 31 anos. As minhas investigações visam o crime organizado, especialmente o PCC desde 2005, há 17 anos, portanto.
Comecei a trabalhar especificamente sobre esta organização criminosa porque exerço a minha profissão numa região aqui do estado de São Paulo onde existe uma grande concentração de presídios.
Só nesta região há 26 unidades prisionais, cada uma com 1200/1300 presos. É uma grande população carcerária. No caso especificamente do PCC, os criminosos mais perigosos do estado de São Paulo são levados para uma prisão de segurança máxima, precisamente ao lado da cidade onde trabalho, a cerca de 50 quilómetros, uma penitenciária que ficou conhecida como "Penitenciária P2 de Presidente Venceslau".
Foi aqui que estiveram o Marcola e outros líderes do PCC. Trabalhei nessa cidade de Presidente Venceslau em 2005, comecei a investigar e nunca mais parei.
Quais são neste momento as capacidades, meios, áreas de atuação e grau de poder e perigosidade do PCC?
O PCC foi criado dentro de cadeias no ano de 1993, começando apenas como um movimento de presos que reivindicavam melhorias nas condições de cumprimento das suas penas no cárcere. Mas foi ganhando também adeptos nas ruas.
Normalmente comparsas de criminosos e desses presos que acabaram também por ser "batizados" para integrar o PCC.
A organização começou pequena e hoje tem mais de 40 mil integrantes só no Brasil. Está presente em todos os estados, mas também em toda a América do Sul, nos Estados Unidos e também há registo de integrantes em vários países da Europa, de forma ainda tímida, mas há registo da sua presença, sobretudo naqueles países em que o PCC tem interesse que seja um país recetor da cocaína que envia.
Já lá vamos ao PCC na Europa. Além do tráfico de cocaína, quais são as outras áreas de ação do PCC?
Por ter sido uma organização criminosa criada em unidades prisionais, juntamente para defender direitos dos presos, o tráfico de drogas foi um meio que encontraram para financiar advogados, algum tipo de transporte para familiares, entre outros. Isso expandiu-se.
Eles praticamente dominam o tráfico aqui no estado de S. Paulo, tal como em vários outros estados do Brasil. Mas, aqui, há o maior porto da América do Sul, que é o porto de Santos, a maior porta de saída da cocaína para a Europa.
O que financia hoje o PCC é especialmente é o tráfico de drogas, sobretudo o tráfico internacional. O PCC esteve envolvido em alguns roubos a bancos, mas esse não é o objetivo principal da organização. Esses outros crimes servem apenas para financiar o tráfico.
De onde vem essa cocaína?
Principalmente do Perú, Bolívia e Colômbia. É comprada ainda em pasta base e depois transformada aqui em São Paulo em cocaína. Uma parte é distribuída internamente, com o estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil, em primeiro lugar na sua hegemonia de distribuição. Recordo que o Brasil é considerado o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, a seguir aos EUA. Outra parte importante tem como destino o tráfico internacional.
E como caracteriza o grau de perigosidade do PCC?
O PCC hoje, por se ter expandido, não só no Brasil - em todos os estados - mas também na América do Sul e agora na Europa, tem sido classificada por nós como uma organização criminosa de caráter mafioso. Porque tem atuação internacional, usa métodos muito parecidos com os da máfia, incluindo corrupção de agentes públicos.
Usa também violência para intimidar, seja contra concorrentes, seja contra agentes públicos compelidos a auxiliar - principalmente os funcionários dos portos, que podem acabar assassinados. Acresce a questão da lavagem de dinheiro que caracteriza uma máfia.
O PCC já tem hoje uma lavagem de dinheiro bastante estruturada, inclusive fora do Brasil. Para mim a maior organização criminosa da América do Sul hoje é o PCC.
É a que mais cresce, acredito até que no mundo, justamente por conta do tráfico internacional para a Europa. Antes era só um tráfico interno, mas a partir do ano 2010 em diante começaram a enviar droga para a Europa, onde o lucro é muito grande.
Podem comprar um quilograma de cocaína na Colômbia por 1200/1300 dólares e vendem na Europa por 30/35 mil euros ou mais. A estimativa que fizemos com base nas nossas apreensões em 2020, por exemplo, já indicava uma receita de 500 milhões de dólares por ano.
Portugal é um dos países de expansão do PCC? Que indícios / provas há para fundamentar isso?
Eu sou um promotor de Justiça que atua no âmbito estadual, não tenho jurisdição federal. No entanto, as nossas investigações acabam por produzir informações que são de interesse internacional.
O PCC está a enviar esta droga para a Europa e o que nós fazemos normalmente é compartilhar informações com outras autoridades, designadamente com a Polícia Federal, que é a polícia encarregada de fazer os contactos com a polícia em Portugal e noutros países.
Tem havido muita troca de informações entre as autoridades. Destacaria Portugal e Espanha e também a Bélgica e a Holanda, países com grandes portos, e ainda a Alemanha, um país cujas autoridades nos têm procurado com grande preocupação. Isto porque o Brasil tem inundado a Europa de cocaína.
Mas será natural que o PCC queira utilizar Portugal como porta de entrada da cocaína na Europa, certo?
Não tenho dúvida. O PCC sempre procura oportunidade de negócios. Portugal tem várias vantagens, como os portos e a língua que favorece a ida de muitos brasileiros.
Já houve aqui documentos da inteligência que indicavam que, no final de 2021, havia 42 integrantes do PCC em Portugal. Já foram feitas algumas detenções, outras ligações estão a ser investigadas. Já existem brasileiros que são integrantes presos em cadeias de Portugal.
Qual é a facilidade? Uma parte dessa droga desce nos portos e aeroportos de Portugal, Espanha, mas uma quantidade bem expressiva vai por África com ligação também a estes países ibéricos. Um dos maiores traficantes da América do Sul, um brasileiro cujo apelido era "Fuminho", foi preso em Moçambique, onde estava a viver.
Para eles, África é um continente importante porque é menos policiado e é uma porta de entrada para a Europa. Mas destacaria que o PCC não elegeu Portugal como mercado. Elegeu a Europa como mercado consumidor preferencial. Às vezes só passa mesmo por Portugal para poder chegar ao país de destino, onde até pode ganhar mais com essa cocaína. No entanto, algumas cargas são descarregadas em portos portugueses e já houve vários casos da utilização de pequenos aviões particulares.
O que preocupa mais as autoridades que combatem estes criminosos?
A preocupação é que este tipo de organizações criminosas associam-se a outras. O PCC, por exemplo, tem atuado muito com máfias italianas, principalmente a "Ndrangheta, que distribui cocaína na Europa toda. O PCC associa-se com mafiosos europeus porque tem a facilidade de adquirir essa droga de boa qualidade, por exemplo no Perú e na Colômbia, para ser exportada.
Do outro lado, na Europa, existe uma grande demanda, com uma procura cada vez maior, infelizmente, e temos os portos da Europa e da África. 90% da cocaína é transportada em navios. Costumo dizer que é um caminho sem volta.
O lucro é tal que quando perdem alguma carga é só uma que perdem, não mais de 10%, porque 90% chega sempre ao destino. É um risco muito pequeno e uma lucratividade muito grande.
A outra dificuldade são as fronteiras. Uma carga que chegue a Portugal, por exemplo, tem como destino a Inglaterra, ou a França, ou a Alemanha. Isso tudo envolve investigações com muitas polícias - inclusive a partir mesmo aqui do Brasil onde cada uma, estadual, federal, etc., tem as suas competências e as suas limitações - e os criminosos não têm fronteiras. Eles contam com isso. Às vezes os canais oficiais são demorados na troca de informações.
Devíamos caminhar para uma polícia única com uma competência maior nesta área em toda a Europa e na América do Sul, com uma grande capacidade de sincronia.
Sobre esses integrantes do PCC que podem estar em Portugal, que tipo de perfil podemos esperar? Vão usar o nível de violência a que estamos habituados na América Latina, que começou já a ter ecos graves em países como a Bélgica e a Holanda? Vai ser diferente em Portugal ou temos de nos ir preparando?
No primeiro momento, penso que não. Os integrantes que estão indo para a Europa e também para Portugal - muitos nem se sabe quem são, só conhecemos apenas o apelido - têm como função principal favorecer a logística do tráfico internacional.
Normalmente não se vão envolver com outro tipo de crime. Por exemplo não vão precisar de financiar a compra da droga. Na medida em que se vão estabelecendo na Europa e conseguem as conexões de que necessitam, eliminam outra rede de criminosos a quem, noutro cenário, eram obrigados a pagar para poder distribuir a droga.
Por isso penso que, num primeiro momento, a presença do PCC não vai provocar um aumento de criminalidade. Isso não lhes interessa. Querem a polícia longe. Só para ter uma ideia, aqui no estado de São Paulo há algumas favelas onde eles não deixam que se cometam crimes no seu interior, porque é onde estão a produzir a droga e não querem a presença da polícia.
Porém, num segundo momento, trata-se de um fenómeno mundial, inclusive nos países que liberalizaram a droga de qualquer natureza. Há um aumento da criminalidade associada ao crescimento de consumidores que para sustentar ofício passam para os pequenos furtos, depois para roubos e crimes com violência.
Não deixa de estar associado, mas não diretamente, ao autor do tráfico internacional. Esse até acaba punindo quando verifica alguma situação que possa denunciá-lo, oferecendo até uma certa proteção, típica das organizações mafiosas.
Tendo em conta a experiência de tantos anos no combate ao PCC, qual é a estratégia que recomenda às autoridades portuguesas?
O primeiro passo é conhecer os criminosos que estão aí. A partir das apreensões de droga, as investigações não devem parar só nas pessoas que foram presas.
Devem ver todas as conexões que têm em Portugal, quem as visita na cadeia, suas ramificações, para que comecem a mapear a presença do PCC, tal como outros criminosos internacionais ou brasileiros no território português. Desta forma, podem depois ter já um conhecimento básico para iniciarem investigações a partir de Portugal, em vez de serem só as que vêm do Brasil ou de outros países, e para ficarem em cima desses criminosos e evitar que eles proliferem.
Também devem dar uma atenção muito grande à lavagem de dinheiro, no tipo de produto que eles vão adquirir com os lucros das vendas da cocaína. Os que moram aí vão acabar vivendo cada vez melhor, com uma situação financeira melhor, e isso tem de ser atacado de raiz, até para não estimular a ida de outros criminosos.
Artigo originalmente publicado no DN a 19 de janeiro de 2023.